domingo, 8 de julho de 2007

falocentrismo - apontamento simples

Toda a nossa cultura (e por certo, a nossa linguagem, a gramática que a informa e a constitui) está imbuída de falocentrismo. O útero, o receptáculo, é de certo modo o lado passivo, que nutre a forma, mas de certo modo também deve constituir-se como uma espécie de "irrepresentável", aquilo onde se geram todas as possíveis formas.
O falo transporta consigo, ao penetrar nesse receptáculo, o gérmen da forma, do que será finalmente expulso do receptáculo e que poderá ter um nome, inscrever-se na ordem simbólica, quer dizer, adquirir uma significação, uma identidade própria. Para Irigaray, se não erro, o feminino é uma espécie de "excluído inominável", algo que recebe e nutre, mas que é omisso do discurso político fálico.

Nós em geral não dizemos, por exemplo, que uma casa acolhe e inclui, modificando-os, os seus visitantes ou moradores, mas sim que entramos na casa, que penetramos nela, para a tornar no nosso espaço convivial ou habitável. Nós - insisto - penetramos na casa, entramos nela; a "casa" (como muitos outros redutos ou cenários) é um receptáculo passivo.
Os salamaleques que as pessoas fazem ao passar uma porta bastariam para nos advertir dessa simbologia dos limites, desses rituais de passagem de que falam van Gennep e Victor Turner, na ordem do espaço, do tempo, etc.
O dentro, o fora, e sempre a acção de fora para dentro, do falo para o útero. Talvez toda uma nova arquitectura feminista - e um discurso para a conceber - precisassem de ser construídos (mas há certamente muita gente a pensar nisso). Eu é que estou aqui no campo sem apoio bibliográfico nem tempo para ir às fontes, pedindo até desculpa pelos erros que possa cometer nestes apontamentos ocasionais.

A revolucionária importância de uma epistemologia feminista é que ela desconstrói (ou tenta há décadas desconstruir) aquela centração fálica que se encontra na ordem simbólica, desde Platão e por certo desde muito antes dele. Também aqui a psicanálise é crucial.
A mulher (mas que pode um homem dizer sobre isso?...) não se sente penetrada, possuída, mas antes assume-se como absorvendo, como usufruindo o prazer de introduzir, de possuir o prazer seu e do outro; o centro passa da ordem solar fálica, geométrica, para a ordem labiríntica e subtil do espaço nocturno, cheio de dobras sobre si mesmo.
A racionalidade já não é linear, funcional, mas barroca e decorativa, prenhe de versatilidade e plasticidade, de inesperado. O próprio discurso pode traduzir isso, fugir pelo seu barroquismo à racionalidade linear, tendencialmente fascista (numa nova modalidade subtil, neo-liberal e acariciadora do ego consumista e individualista).
O jogo poderá adquirir o seu aspecto constitutivo do laço entre os seres: o jogo puro? Mas onde está a política do espaço-tempo que nos liberte para esse jogo? Pelo contrário, o que se impõe cada vez mais (ou julga impor-se...) é a ordem castrante da tecnocracia, da burocracia, tantas vezes conduzida paradoxalmente por "mulheres" (que são de facto "homens" na ordem simbólica).

À dualidade simples do falo (erecto, poderoso, actuante, portador da criatividade, ou, cumprida/falhada a sua missão, em estado de repouso) substitui-se a pluralidade complexa da topografia e da performance feminina, não centrada nem ansiosa pela consecução da penetração (angústia, ansiedade tradicional masculina, acentuada pela medicamentalização da sociedade), pelo cumprimento da missão procriadora, mas antes simbolizando o inominável (ainda...) desse prazer da fruição gratuita, libertada da intenção teleológica em que se baseia toda a nossa filosofia, toda a nossa acção, legitimada pelo mercado, pela ideologia puritana do dinheiro, pela miséria da contabilidade, que destrói a economia libidinal livre, algo de fundamental a inventar, a conceber, rompendo dia a dia pequenas regras, obrigações, ritos, indo contra a corrente do que se deve fazer, a toda a hora e a todo o momento.
Esta formidável revolução - ainda em curso durante séculos, pois há que inventar uma nova gramática, não já feminista, mas simlesmente adaptada à complexidade e variedade do humano - não se poderia compreender, contudo, sem o aparecimento de métodos contraceptivos nem sem a decomposição da família patriarcal tradicional (um mito, claro, mas também uma ordem legal que, ao implodir, levará a um novo direito, espaço tradicional da masculinidade, da tradição, apesar da proliferação das juízas e outras mulheres intervenientes nesse espaço).
A questão feminista não é uma "questão de mulheres" (que é uma mulher, quem aceita tal universal?), é uma problema de inteligência e de cidadania. Uma cidadania onde todos tenham um lugar.
Mas tal é muito difícil, porque é pela linguagem que nos incluímos desde bebés na ordem simbólica e essa linguagem continua a transportar o falocentrismo tradicional. Este é tanto mais dominante quanto mais inconsciente, isto é, ele aparece especularmente como espontâneo, como óbvio. Melhor dizendo: não aparece, e as "pobres pessoas" (les braves gens) não estão preparadas para pressentir essa ausência presente do Grande Outro, da ordem simbólica.

O óbvio é a arquitectura da prisão, o domínio da ideologia consagrada. A des-sacralização do óbvio (a revolução gramatical) passa pela poesia, quando ela sair do texto para se tornar contexto. Quer dizer, quando a poesia deixar de ser decoração, beleza, acrescento ornamental, mas se tornar acção chocante, criadora de fissuras na ordem simbólica, revolução do pensamento contra os seus ligamentos fálicos e castradores. Essa revolução só se pode também fazer ao nível individual, fazendo uma pausa diária, gentil, nas pequenas obrigações que se nos impõem (até como lazeres ou alegrias ritualizadas ou prazeres de que todos devemos usufruir para "uma vida saudável").
Desculpem os simplismos e o tom um pouco profético. Até para enunciar estas pobres intuições uma pessoa se tem de arrimar ao velho bordão fálico que até hoje nos atormenta.
Eu sou um arqueólogo (como podia ter sido um antropólogo) porque quero compreender por que raio é que esta ordem havia de se ter de constituir como tal, isto é, porque é que um horizonte aleatório e castrante nos haveria de aparecer como a moldura do mundo, no próprio acto de enunciação.
Eu não quero sair utopicamente da ordem simbólica que me inscreve, que fala por mim (isso é impossível); mas quero conhecer as modalidades outras do humano que me podem pelo menos relativizar as angústias de ter nascido aqui e agora, viver por segundos a utopia do conceito libertador, onde a verdade, o bem e a beleza do enunciado (fálico, eu sei...) se unem.
Essa é a poesia. Por isso é tão grande a curiosidade por uma escrita no feminino, e não tanto por uma escrita feminista ou por uma escrita de mulheres (que será isso?). O facto de isto ser enunciado por um homem vai ser já objecto de contestação... mas aí, nada a fazer.

Voltarei sempre ao assunto. Há muita gente, incluindo arqueólogos, que ainda não percebeu a importância destas coisas para se ser, e em particular para se ser arqueólogo de uma maneira muito mais interessante do que até aqui.
Ser provocante - mas tanto quanto possível não pedante ~é difícil. Desculpem qualquer coisinha.

6 comentários:

Anónimo disse...

Contestar o fálico começa pelo nome dos pais no BI, primeiro devia vir o da mulher.

Anónimo disse...

Queimar os soutiens nos anos 60 não deu...O BI é floreado. Há que atacar o boi pelos cornos. Onde está o boi?

Anónimo disse...

Confundir vestuário com legislação parece-me preocupante. A legislação é obrigatória, o vestuário não é.
Tudo dito.

Isabel Victor disse...

Salomé

Insónia roxa. A luz a virgular-se em medo,
Luz morta de luar, mais Alma do que lua...
Ela dança, ela range. A carne, álcool de nua,
Alastra-se para mim num espasmo de segredo...

Tudo é capricho ao seu redor, em sombras fátuas...
O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou...
Tenho frio... Alabastro! A minha´alma parou...
E o seu corpo resvala a projectar estátuas...

Ela chama-me em Íris. Nimba-se a perder-me,
Golfa-me os seios nus, ecoa-me em quebranto...
Timbres, elmos, punhais... A doida quer morrer-me:

Mordoura-se a chorar - há sexos no seu pranto...
Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me
Na boca imperial que humanizou um Santo...

Lisboa 1913 - novembro 3.



Mário de Sá-Carneiro
Poemas Completos
Edição Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim
2001

Anónimo disse...

O boi é o sistema censório falocêntrico incontornável.Ver,entre outros, Judith Butler.

Anónimo disse...

Ver entre muitas e poucos e saber olhar. Incontornável não direi, mas chato é de certeza.