A história, por mais bem contada que seja, nunca me interessou enquanto tal. E no entanto foi a minha licenciatura: tinha de começar por algum lado...
(É claro que uma afirmação peremptória destas dava para desenvolvimentos infinitos. Mas a afirmação incisiva, sendo redutora, e portanto facilmente ridicularizável, na sua pompa e no seu escamotear da complexidade, tem a sua estética e a sua eficácia, como sabem bem todos os que actuam nos media, ou seja, todos os que existem no espaço público).
Também nunca me interessou uma história disto ou uma história daquilo (hoje historia-se tudo). Nem uma história universal ou geral (quem determina as condições da legitimidade desta ou daquela perspectiva global, fechando-a na síntese, que é um tique de poder?). Muito menos uma história da filosofia.
É fácil dizer que a filosofia surgiu contra o mito, no Ocidente, etc, etc. A democracia, a cidade, depois mais tarde a monarquia absoluta, depois ainda e finalmente a democracia moderna, o contrato social (Stiegler), etc.
E como se pensa o chamado "estado de excepção", que para Agamben é inerente à democracia, ou seja, ao poder político? Esse é que é (talvez...) o ponto!
E onde ficam os outros povos, a experiência de um planeta inteiro, de milhões de anos?
Ah, claro, isso é (ou era) para a antropologia. Mas a antropologia nasceu da modernidade para assimilar os outros a nós. Essa Outridade, ou Alteridade de que nos fala somos nós que a instituímos...
Ah, mas agora há muitos antropólogos alternativos, não ocidentais... outras vozes, a multivocalidade, a antropologia pós-colonial, as vozes no feminino, etc.... que abrangência maravilhosa...
Ah, sim? Mas formado(a)s onde? Em Cambridge, Chicago ou Londres? E portanto na nossa bela ontologia ocidental... continuamos a querer ser os primeiros a chegar, a ser os mais inteligentes, a fazer a síntese, "aquele abraço" conceptual?...
A história é política, claro, mas a política é como um gás, enche todos os interstícios e é inodoro. Qualquer pensamento crítico procura distância, sim... mas essa distância é a do poder político ocidental.
Lembra o património, que tem de estar sempre a distância para ser melhor fotografado, para se constituir como objecto, quer dizer, como inerte. Um inerte que logo se pretende (re)animar, pois claro. Com inertes não se ganha nada, há que instilar energia, movimento, acção, evento, ruptura.
Por isso muitos andam a voltar ao conceito de ideologia, que parecia enterrado.
Aqui há gato.
Os gatos aliás dormem sempre com um olho meio aberto, salvo erro. Estão escaldados...
7 comentários:
Devo dizer que não compreendi a sua mensagem...
Se me puder explicitar a razão da sua incompreensão, talvez eu possa esclarecer o meu ponto de vista. Posso dizer a motivação da mensagem: o filme THE ISTER que tenho estado a ver e onde intervêm Bernard Stiegler, Jean-Luc Nancy e outros. É um filme inspirado no Danúbio, na nossa tradição grega e...em Holderlin.
No fundo, quero dizer nesta postagem que precisando nós de história, de memória,ela é evidentemente sempre em última análise uma ficção, ou seja, uma perspectiva cujas motivações são em última análise inconscientes e portanto, também, uma fantasia. Mas a fantasia é indispensável...incluindo a mais cientificamente protocolada e a mais juridicamente sustentada. Vivemos como seres que se interrogam sempre sem nunca chegar a uma resposta satisfatória, por definição. Por isso precisamos da arte para (tentar) preencher esse vácuo. Voilà.
A ideia do primitivo em Stiegler e a sua análise da História da Europa fazem-me lembrar aquela velha ideia do fim do mundo plano, uma espécie de dobra, que surge como precipício.
As ideias que o Stiegler avança neste filme são como que um resumo do Volume 1 do Techniques et les Temps (Le faute d'Epimethée).
Grande parte dos problemas do pensamento de Stiegler vêm da sua leitura de Leroi-Gourhan. Passam por isso algumas ideias feitas sobre o primitivo e a Evolução que nós como arqueólogos suspeitamos.
Há uma frase de Murray Gell-Man (o célebre Nobel da Física) que me ficou para sempre na memória. Está no livro "O Quark e o Jaguar" (trad. portuguesa publicada pela Gradiva). Dizia ele que sempre que lia um texto onde encontrava um erro, abandonava logo a leitura, porque a existência do erro o perturbava ao ponto de não poder dar mais crédito a esse autor.
O meu encontro com os "erros" de Stiegler produziu exactamente o contrário.
Já aqui tinha mencionado das fragilidades de Stiegler (ver https://www.blogger.com/comment.g?blogID=7072141940444623665&postID=5947327330798166196). Mas são essas mesmas fragilidades que me atraiem, sobretudo pelo pensamento de algo que creio ser fundamental em Arqueologia: a Technê, Poiesis e Poietike. Estas duas últimas penso que seriam conceitos mais interessantes do que o de "Life" de Ingold (e vão ao encontro da ideia de "produção" e "criação").
Recomendo a esse propósito a visita as vários dicionários de Grego, bem como à obra de E. F. Peters publicada pela Gulbenkian: Termos Filosóficos Gregos. Não porque os gregos sejam uma espécie de origem a que tenhamos de retornar, mas justamente porque a etimologia nos ajuda a pensar (veja-se a esse propósito a própria introdução de Peters, onde ele recorda que uma das grandes questões da filosofia grega é justamente a sua atenção, ligação e preocupação com a língua).
Daqui íamos à "La Langue" de Lacan.
Mais do que o erro, vejo em Stiegler a falha, o lapso, que em psicanálise é justamente o que nos abre, o que revela (afinal o que seria de nós sem os nossos "actos falhados").
Um dos problemas de muita da filosofia e antropologia é precisamente ser "a-histórica" colocando-se o sujeito e o objecto fora do tempo e das circunstãncias históricas. Olha-se para as sociedades ditas "primitivas" como se tivessem mantido inalteradas desde tempos remotos até ao primeiro contacto com o antropologo.
Não me parece que a História seja mais fantasista do que outras ciências, nomeadamente do que a antropologia.
O interesse duma "história geral" ou "universal" pode ser sem dúvida muito discutível. Mas não se podem desligar as ideias e sistemas filosóficos das circunstâncias históricas concretas em que nasceram e se desenvolveram.
Se é verdade que a história é um campo de batalha da luta política e ideológica, não o é mais do que as restantes ciências sociais. Se calhar actualmente até é menos do que na sociologia, antropologia ou na economia.
Boas sugestões...em catadupa!
Ver sobre as complexidades e ambiguidades do poder e da soberania, com os quais a história está evidentemente implicada, dois livrinhos fundamentais, entre mil: Georgio Agamben - State of Exception, Chicago University Press, 2005 e Jacques Derrida, O Soberano Bem, Viseu, Palimage Editores, 2004...
Correcção: no comentário anterior queria evidentemente escrever: Giorgio Agamben, autor de grande pregnância política. Incontornável.
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