MONIQUE WITTIG
BELL HOOKS
SUSAN BORDO
ANDREA DWORKIN
ELAINE SCARRY
Por que é que o pensamento feminista - apesar de ter tão pouco tempo para o estudar - e penso em Judith Butler, Luce Irigaray, Hélène Cixous, Donna Haraway, Julia Kristeva, Michèle Le Doeuff, Elizabeth Grosz - sempre me interessou? É óbvio porquê, mas para a maior parte das pessoas parece que não é, uma vez que não sou mulher, e que se precisasse de me identificar com uma etiqueta (se fosse interpelado nesse sentido, como diria Althusser) o faria como heterossexual.
Obviamente, a grande "revolução" do nosso tempo é o "aparecimento" da "mulher" (passe a generalidade altamente abusiva e perigosa do termo), quer dizer, o facto de algumas mulheres "pensadoras" - e de na vida de todos os dias muitas pessoas, intuitivamente - terem percebido que todo o nosso modo de ser, de viver, de comunicar e de pensar/sentir (a ordem simbólica que nos constitui pela linguagem, se aceitarmos esses termos lacanianos que muitas feministas contestam) é intrinsecamente constituído no masculino. No masculino heterossexual.
A própria reivindicação da "diferença da mulher" põe essa dificuldade de mediação da "mulher", e da sua objectificação por si mesma, bem à vista, como Irigaray mostrou ("An Ethics of Sexual Difference", ed. americana de 1993, mas original francês de 1984).
A mesma atitude de auto-descentramento que me levou em arqueologia para a chamada (desgraçadamente, mas de modo significativo) "pré-história", a mesma necessidade que me levou a interessar-me pela antropologia (nomeadamente pela convencionalmente designada antropologia social ou cultural), a mesma curiosidade que me despertou sempre a psicanálise, a mesma vontade que sempre tive de forjar um "pensamento crítico", distanciado tanto quanto possível do lugar comum, foi a que me levou a perceber há muito a importância para mim dos estudos feministas, como ser masculino, heterossexual, branco, cristão (ateu, ou agnóstico-cristão), ocidental, etc.
A mesma curisidade imperiosa que me despertou também o marxismo, a crítica da sociedade em que nasci, com o correlativo desgosto das alternativas que se apresentavam: sovietismo, maoismo, etc, etc. Nunca me deixei conquistar - como muitos da minha geração - por estas novas formas de religião.
Durante muito tempo a "pré-história" foi o modo de me tentar aproximar de uma humanidade outra, que não fosse o espelho invertido, ou a imagem embrionária, infantilizada, da humanidade actual. Um modo que eu hoje sei estar ao serviço da manutenção de uma visão desfocada, pelo que é prioritário começar por perceber um pouco melhor as diferentes interpretações, visões, perspectivas, sobre o ser humano na sua incrível diversidade, antes de estar a construir narrativas ingénuas e ridículas sobre o seu passado distante, renovando cosmogonias e outros mitos sem os quais provavelmente não podemos viver, não nos podemos simbolizar. Mas evitando pelo menos os mais caricatos, de tão simples e primários.
Não se trata pois de me constituir à última hora como filósofo ou intelectual que nunca fui nem talvez quis ser. Trata-se de pôr em situação de espanto, de inaudito, aquilo que passa por natural e de já dito, já vivido e já aceite como incontestável. Não pela vontade adolescente de contestar, mas pela necessidade absoluta de me descentrar, não para procurar um novo centro, uma ordem acolhedora, mas para me habituar a viver sem centro, sem convicção fundadora, improvisando.
Isso não é uma atitude de flâneur. Isso dá bastante trabalho.
Trabalho de escrita e de leitura. Trabalho de reconstituição permanente. Trabalho compulsivo, porque cada resultado a que se chega neste rizoma é uma encruzilhada cheia de caminhos: não há princípio nem fim, não há hierarquia, não há ponto final a não ser o que a nossa energia nos dita (e o que a nossa morte - esgotamento dessa energia - nos impõe). Cada resultado é apenas um novo começo, mas um começo que não replica o anterior: há mudança, mas nunca se pode fazer o balanço rígido, tecnocrático, se estamos agora melhor ou pior. Talvez por momentos se entreveja a felicidade na beleza do que se escreve ou se diz, ou na beleza do olhar do(a) outro(a) que nos devolve essa felicidade, esse curto-circuito da comunicação instantânea.
Pormo-nos em causa, ler e estudar, não é fugir à vida de todos os dias e ao contacto com as pessoas. É perceber que esse contacto é fundamental mas de algum modo "secundário" (permita-se o esquematismo), sempre, em relação à necessidade intrínseca (ao desejo, se se quiser) de uma pessoa se constituir e reconstituir a si própria através de um trabalho sério, continuado, que lhe dê alguma credibilidade. Senão fica feito papagaio, figura ridícula e pretensiosa. Falando de tudo, saltitando como um tolo de novidade em novidade, sem nunca viver verdadeiramente nada de espesso, de sólido, de sentido e de incorporado. Sem encontrar a "voz própria", que é sempre uma maneira (salvo raríssimas excepções) de organizar um conjunto de citações. Mas com convicção e prazer, improvisando.
Espanto. Sempre recuperar esse olhar do espanto, que é o olhar da poesia, de toda a arte, que não tem tema, tem atitude, a de olhar para uma coisa qualquer, um bocado de pó no chão, e aquilo deixar de ser um bocado de pó no chão, porque entrou na linguagem, no olhar, se quiserem, na ordem simbólica.
Vimos emergir também no nosso tempo muitas atitudes públicas que lutam pela dignidade dos seres humanos na sua diversidade, e a que pomos apressadamente tabuletas, classificações: gays, lésbicas, trans-sexuais, etc. Quando sabemos que tanta gente teve na sua vida experiências, ou pelo menos sonhos, fantasias, que são tudo menos monoliticamente heterossexuais. A obsessão como o sexo e com o "desempenho" é uma tara actual, aditiva, e entra dentro das doenças da economia libidinal ligadas ao consumo: disse obsessão, não disse práticas do corpo e suas representações, temas que estão numa penumbra imensa e sobre os quais se disse muitas banalidades e estereótipos. Aliás já não se pode ouvir falar de corpo, tanta corporalidade conceptual e imagética já cansa até ao vómito.
Uma pessoa contrapor-se à sociedade da distracção contínua, do "entertainment" e procurar pensar, mesmo que isso não passe de um entretenimento como qualquer outro, é capaz de dar mais felicidade, a prazo, do que derramar-se pura e simplesmente na espuma dos dias e na deriva das propostas superficiais.
Assim, quando uma pessoa se entrega a algo ou a alguém, reconstitui a solenidade de um antigo contrato: uma solenidade que hoje não é rodeada de palmas de pessoas "sérias", mas da risota, que com frequência lembra a brincadeira dos bobos. Não faz mal. Os bobos fazem chacota porque são infelizes. Não é uma brincadeira autêntica, porque dessa temos sempre necessidade: o humor e o riso que desfazem toda a ridícula solenidade do saber.
(Agradeço ao leitor(a) que veja este discurso como um discurso de auto-exaltação e de auto-comprazimento, e que portanto o leia e o desconstrua, isto é, aproveite o que quiser e o que não quiser deite fora. Nada de me monumentalizar que eu não sou património. Obrigado pela compreensão).
Obviamente, a grande "revolução" do nosso tempo é o "aparecimento" da "mulher" (passe a generalidade altamente abusiva e perigosa do termo), quer dizer, o facto de algumas mulheres "pensadoras" - e de na vida de todos os dias muitas pessoas, intuitivamente - terem percebido que todo o nosso modo de ser, de viver, de comunicar e de pensar/sentir (a ordem simbólica que nos constitui pela linguagem, se aceitarmos esses termos lacanianos que muitas feministas contestam) é intrinsecamente constituído no masculino. No masculino heterossexual.
A própria reivindicação da "diferença da mulher" põe essa dificuldade de mediação da "mulher", e da sua objectificação por si mesma, bem à vista, como Irigaray mostrou ("An Ethics of Sexual Difference", ed. americana de 1993, mas original francês de 1984).
A mesma atitude de auto-descentramento que me levou em arqueologia para a chamada (desgraçadamente, mas de modo significativo) "pré-história", a mesma necessidade que me levou a interessar-me pela antropologia (nomeadamente pela convencionalmente designada antropologia social ou cultural), a mesma curiosidade que me despertou sempre a psicanálise, a mesma vontade que sempre tive de forjar um "pensamento crítico", distanciado tanto quanto possível do lugar comum, foi a que me levou a perceber há muito a importância para mim dos estudos feministas, como ser masculino, heterossexual, branco, cristão (ateu, ou agnóstico-cristão), ocidental, etc.
A mesma curisidade imperiosa que me despertou também o marxismo, a crítica da sociedade em que nasci, com o correlativo desgosto das alternativas que se apresentavam: sovietismo, maoismo, etc, etc. Nunca me deixei conquistar - como muitos da minha geração - por estas novas formas de religião.
Durante muito tempo a "pré-história" foi o modo de me tentar aproximar de uma humanidade outra, que não fosse o espelho invertido, ou a imagem embrionária, infantilizada, da humanidade actual. Um modo que eu hoje sei estar ao serviço da manutenção de uma visão desfocada, pelo que é prioritário começar por perceber um pouco melhor as diferentes interpretações, visões, perspectivas, sobre o ser humano na sua incrível diversidade, antes de estar a construir narrativas ingénuas e ridículas sobre o seu passado distante, renovando cosmogonias e outros mitos sem os quais provavelmente não podemos viver, não nos podemos simbolizar. Mas evitando pelo menos os mais caricatos, de tão simples e primários.
Não se trata pois de me constituir à última hora como filósofo ou intelectual que nunca fui nem talvez quis ser. Trata-se de pôr em situação de espanto, de inaudito, aquilo que passa por natural e de já dito, já vivido e já aceite como incontestável. Não pela vontade adolescente de contestar, mas pela necessidade absoluta de me descentrar, não para procurar um novo centro, uma ordem acolhedora, mas para me habituar a viver sem centro, sem convicção fundadora, improvisando.
Isso não é uma atitude de flâneur. Isso dá bastante trabalho.
Trabalho de escrita e de leitura. Trabalho de reconstituição permanente. Trabalho compulsivo, porque cada resultado a que se chega neste rizoma é uma encruzilhada cheia de caminhos: não há princípio nem fim, não há hierarquia, não há ponto final a não ser o que a nossa energia nos dita (e o que a nossa morte - esgotamento dessa energia - nos impõe). Cada resultado é apenas um novo começo, mas um começo que não replica o anterior: há mudança, mas nunca se pode fazer o balanço rígido, tecnocrático, se estamos agora melhor ou pior. Talvez por momentos se entreveja a felicidade na beleza do que se escreve ou se diz, ou na beleza do olhar do(a) outro(a) que nos devolve essa felicidade, esse curto-circuito da comunicação instantânea.
Pormo-nos em causa, ler e estudar, não é fugir à vida de todos os dias e ao contacto com as pessoas. É perceber que esse contacto é fundamental mas de algum modo "secundário" (permita-se o esquematismo), sempre, em relação à necessidade intrínseca (ao desejo, se se quiser) de uma pessoa se constituir e reconstituir a si própria através de um trabalho sério, continuado, que lhe dê alguma credibilidade. Senão fica feito papagaio, figura ridícula e pretensiosa. Falando de tudo, saltitando como um tolo de novidade em novidade, sem nunca viver verdadeiramente nada de espesso, de sólido, de sentido e de incorporado. Sem encontrar a "voz própria", que é sempre uma maneira (salvo raríssimas excepções) de organizar um conjunto de citações. Mas com convicção e prazer, improvisando.
Espanto. Sempre recuperar esse olhar do espanto, que é o olhar da poesia, de toda a arte, que não tem tema, tem atitude, a de olhar para uma coisa qualquer, um bocado de pó no chão, e aquilo deixar de ser um bocado de pó no chão, porque entrou na linguagem, no olhar, se quiserem, na ordem simbólica.
Vimos emergir também no nosso tempo muitas atitudes públicas que lutam pela dignidade dos seres humanos na sua diversidade, e a que pomos apressadamente tabuletas, classificações: gays, lésbicas, trans-sexuais, etc. Quando sabemos que tanta gente teve na sua vida experiências, ou pelo menos sonhos, fantasias, que são tudo menos monoliticamente heterossexuais. A obsessão como o sexo e com o "desempenho" é uma tara actual, aditiva, e entra dentro das doenças da economia libidinal ligadas ao consumo: disse obsessão, não disse práticas do corpo e suas representações, temas que estão numa penumbra imensa e sobre os quais se disse muitas banalidades e estereótipos. Aliás já não se pode ouvir falar de corpo, tanta corporalidade conceptual e imagética já cansa até ao vómito.
Uma pessoa contrapor-se à sociedade da distracção contínua, do "entertainment" e procurar pensar, mesmo que isso não passe de um entretenimento como qualquer outro, é capaz de dar mais felicidade, a prazo, do que derramar-se pura e simplesmente na espuma dos dias e na deriva das propostas superficiais.
Assim, quando uma pessoa se entrega a algo ou a alguém, reconstitui a solenidade de um antigo contrato: uma solenidade que hoje não é rodeada de palmas de pessoas "sérias", mas da risota, que com frequência lembra a brincadeira dos bobos. Não faz mal. Os bobos fazem chacota porque são infelizes. Não é uma brincadeira autêntica, porque dessa temos sempre necessidade: o humor e o riso que desfazem toda a ridícula solenidade do saber.
(Agradeço ao leitor(a) que veja este discurso como um discurso de auto-exaltação e de auto-comprazimento, e que portanto o leia e o desconstrua, isto é, aproveite o que quiser e o que não quiser deite fora. Nada de me monumentalizar que eu não sou património. Obrigado pela compreensão).
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