domingo, 11 de maio de 2008

arquivo - 1


A questão do arquivo é absolutamente central na nossa sociedade, mas é-o já há muito tempo, na medida em que através da semântica complexa e infinita dessa palavra podemos entrar num dédalo de conceitos e numa vasta gama de genealogias.
Aqui, neste curto espaço, emoldurado pelo formato de mensagem, tentarei apenas esboçar uma cartografia de questões e conceitos, que me sirvam para "me pôr em ordem" e para partir para mais desenvolvidas e vastas peregrinações. Dentro do espírito de "uma intimidade ao contrário" que é o de um blogue - um modo de "cuidar de si", de se encenar, de se pensar e de se escrever pensando, mas tendo como auditório um público, e portanto uma realidade que ultrapassa as fantasias do "eu", do diário particular - talvez estas reflexões possam encontrar interlocutores e serem úteis a todos. Aliás, um diário por muito privado que seja destina-se sempre, mais ou menos secretamente, a ser revelado... esse o seu paradoxo constitutivo. Tal como um segredo só existe porque pode (e se destina potencialmente a) ser revelado, dentro de uma determinada economia.

Ao falar-se de sociedade de informação, e ao tomar esta informação como vital, portanto como um bem económico, que se compra e vende, que se revela ou se esconde, que se publica ou se guarda, a questão do armazenamento, classificação, conservação e recuperação de tal informação (segundo uma miríade possível de critérios, objectivos, e de acordo com milhões de potenciais utentes em situações muito diversificadas) tornou-se um problema técnico vital. Que todos os dias se multiplica de forma exponencial.

O facto de haver hoje uma indeterminação entre o real e o virtual, cujas fronteiras se esbateram com a entrada na sociedade digital, numérica, quer dizer, des-substancializada, metafísica, ainda mais acentua o problema, apesar das máquinas ao nosso dispor e por causa mesmo delas. Como guardar o que é fluido por natureza? O que não está sobre um suporte durável, como era o antigo papel, pergaminho, papiro, argila, pedra, o que fosse?
Não é só fluido o suporte (na realidade num computador não podemos já falar de suporte), nem o conteúdo da coisa em si (a dita informação, manipulável e mutante), mas é também e sobretudo fluido o que queremos e precisamos de fazer com tal fluidez: isto é, cada utilizador terá de organizar ou de reorganizar a seu modo, sem regras fixas, a informação a que tem acesso. Há uma individualização do processo, mas também uma especificação, uma particularidade e mesmo uma fluidez total em cada processo de procura.
Informar-se não é saber uma coisa determinada, fixa, que deixou de existir como valor, mas sim antes uma estratégia - sempre em devir - de movimentação num fluxo. O indivíduo contemporâneo é irrequieto por isso mesmo: é que há uma des-territorialização generalizada de todos os valores e identidades, temos de nos procurar continuamente lá onde não estamos, e a maior parte das vezes andamos em busca de algo que já não há, que já não faz sentido.
Então, parece haver permanentemente um problema de conflito entre algo que queremos fixar (bem na tradição das sociedades da escrita), arquivar, por um lado, e por outro e a vida e os valores contemporâneos, que vão no sentido da liquefacção, da fragmentação, da deslocação rápida, num processo generalizado de des-identificação. Tudo e cada coisa se tornou instável.
Como se codifica e se controla a instabilidade? Eis o problema que nos assola. Mas ele é afinal muito antigo na nossa cultura ocidental, é o problema de toda a inscrição. Uma vez uma coisa (imagem, texto, sinal) escrita, inscrita, mesmo que num rochedo, faz sentido procurar o seu sentido primeiro, original, ou único? Obviamente que não -
tal coisa nunca existiu! Isso é ignorar o a-b-c da semiótica. Porém, esse é o logro em que por exemplo ingenuamente germinam muitas buscas da chamada "arte rupestre" em arqueologia: buscas vãs, para não dizer alucinadas.
Mas o problema só se torna agora mais nítido, acutilante, porque a proliferação informativa é hoje algo de jamais imaginado antes, por um lado, e porque a sua volatilidade se liga a uma objectualidade um pouco estranha: é que nós podemos ver essa informação, desdobrá-la constantemente, nas nossas máquinas. Desdobramento que afinal não é mais do que o que já fazíamos na vida, antes ou ao lado do texto, mas mais lentamente: improvisar, perceber rapidamente, integrarmo-nos em cada situação, dar resposta aos problemas. Quer dizer, uma realidade que está sobre um "suporte" virtual, um software (ou seja, não está), apesar de tudo tem ainda um hardware (fantasmático) de referência, uma máquina que tão concreta e tão intimamente está ligada à produção diária do nosso eu, como dantes a escrita em papel (outra ilusão, porque a máquina é apenas um descartável como qualquer outro, uma forjma efémera de produção de signos efémeros)!
Foucault tematizou a questão do arquivo, em "A Arqueologia do Saber", e numa acepção muito ampla. Para ele o arquivo é o sistema que comanda, por assim dizer, a emergência dos discursos, sendo o
discurso um conjunto de enunciados de um certo contexto histórico. Escreve Alex Scott (2001) que, para Foucault, " Um arquivo de uma sociedade, cultura ou civilização é um sistema de transformações de afirmações [enunciados] e é caracterizado pela descontinuidade no sentido de que nos indica o que já não podemos dizer [isto é, baliza o conjunto de possíveis coisas que podem ser ditas e pensadas]. Assim, a descrição de qualquer formação discursiva é uma arqueologia." (http://www.angelfire.com/md2/timewarp/foucault.html). E um outro autor (aliás, difícil de identificar: http://www.stefan-szczelkun.org.uk/phd501.htm) precisa melhor: "One of the institutional sites of a discursive formation is the archive. For Foucault the archive is not just a passive collection of records from the past, it is an active and controlling system of enunciation. The archive gives ever-changing form to the 'great confused murmur' that emanates from the discursive formation. The archive has a set of meanings (a 'form') that changes with the mental frame that we bring to it.
"There is an active relationship between the archive, statements and discursive formations. Foucault describes the archive acting on the statement. Statements are also a dynamic part of communication and will change the archive - both physically, with new requests changing the collection profile, but also changing the conceptual frames through which we can interpret the archive.
"Archives are usually thought of as formal things within an architectural setting but they may also exist in a more diffuse way. Howard Slater describes the common archive as any set of cultural preferences held in common which may or may not take material forms such as record collections. The public considered here bring moving picture statements into complex sets which may be considered as dynamic archives."

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