Aprendi a ler e escrever - julgo que mais ou menos bem - quando tinha entre 4 e 6 anos.
Estou-me absolutamente marimbando para todo e qualquer acordo ortográfico: não tenciono respeitá-lo, seja qual for. Escreverei sempre, sempre, sempre na língua e da maneira que tão bem me ensinaram, quer o meu pai, quer na pré-primária e depois primária.
Isto não é conservadorismo nem apego nacionalista: é simplesmente que não tenho tempo a perder com mais regras. No tempo de vida que me resta quero tratar de substâncias, de coisas que respirem, não de embrulhos ou de carcaças. Estou-me nas tintas para a imagem própria estar ou não de acordo com a "doxa" e para todas essas coisas que certas pessoas passam a vida a compor, porque não têm realmente nenhuma ocupação, embora possam ter muita coisa que fazer e ganhar muito dinheiro. Que lhes faça bom proveito.
É evidente que uma língua não é propriedade privada de ninguém, nem mesmo de um Estado (aliás, um Estado é hoje uma realidade que cada vez se dissolve mais). Uma língua é o conjunto dos seus falantes. Ora, no Brasil, nos países de expressão portuguesa, nas nossas comunidades emigradas, e ao longo do país apesar de pequeno (mas que inclui ilhas, regiões autónomas, por exemplo, com modos de falar próprios) sempre se há-de falar e escrever de modos diversificados, sobretudo hoje que também estamos a passar a uma época pós-textual, quer dizer, onde o próprio texto é visto como imagem (um blogue é um bom exemplo).
Agora, se politicamente, e economicamente, nos interessa ter um acordo - um acordo que ouça todos os parceiros envolvidos - muito bem, venha tal acordo, seja qual for. Cumpra-se onde e como for preciso. Compreende-se que o português do Brasil, que é falado e escrito por milhões de indivíduos, se sobreponha ao velho português de Portugal, que, como qualquer língua viva, não tem essência nem identidade senão como uma ficção, mas resulta precisamente de normativas e normalizações anteriores.
Mas nos meus escritos e nas minhas publicações, eu hei-de continuar a escrever como me ensinaram. Direito à minoria, mesmo que seja representada só por um cidadão.
Há dias recebi um mail em que uma senhora se escandalizava por num jornal inglês terem publicado um mapa em que vinha destacado o Algarve, tendo a palavra Espanha escrita mais a norte, onde será o nosso Alentejo, etc. É evidente que é um erro grosseiro, mas não é muito grave.
O que é importante, no que toca à nossa "cultura", é percebermos que ela não é nada de eterno e de sagrado, embora a língua seja muito importante até para a nossa afirmação no contexto internacional. É certo que de Espanha se importa muita coisa para Portugal. Roupas, alimentos, produtos de toda a espécie... temos de defender as empresas portuguesas, mas ao mesmo tempo de perceber este lugar comum: estamos num mundo sem fronteiras, globalizado, e (mais que) pena é que essa globalização vá acompanhada de discriminação, de cada vez maior depredação de recursos e de pessoas. É preciso construir um discurso crítico sobre isso, e estar atento.
Mas a melhor maneira de reagir, para quem possa, é pela afirmação.
Digamos que a nossa identidade se processa a muitas escalas embutidas: eu sou uma pessoa como qualquer outra no mundo, e só depois europeu, português, etc. Se nesse mundo a gente se entende em inglês, essa passa a ser uma ferramenta fundamental na vida. Quem não falar inglês nem escrever inglês, mesmo que rudimentarmente, não tem possibilidade de sobrevivência, daqui a uns anos. Não é questão de escolha, é realismo, é pragmatismo.
O mesmo que passar a vida a falar ridiculamente contra o capitalismo ou a globalização, repetindo slogans como papagaio. Repetir slogans não resolve nada, serve de catarse e mantém tudo como está. Agora, quem tem fome, sofre de maus tratos, de condições desumanas, de ameaça de desemprego, de todo o tipo de violência, tem de se revoltar, de se unir, de, esgotadas as formas de diálogo, vir para a rua fazer barulho. Direito à indignação, ao protesto - um dos mais elementares direitos, sem cuja reivindicação, ao longo de séculos, estaríamos ainda muito pior.
O capitalismo conheceu muitas formas e há-de dar origem (quer queira, quer não) a coisas diferentes, talvez surpreendentes, porque a sua lógica não é suportável a longo prazo. Competindo-nos a nós, classe média em declínio, mas ainda com algum poder de palavra e intervenção (este blogue, por exemplo) lutar pela diferença, desde o próprio local de trabalho, minando os lugares comuns e as doxas, para que não haja cada vez mais excluídos e um número cada vez mais restrito de privilegiados.
O próprio "capitalismo" (os seus representantes a nível internacional, com grande, enorme poder de compra de gente a pensar estratégias e a ensaiar tácticas) também o sabe, e muito bem: o número dos excluídos, e portanto de potenciais "criminosos" (passe o termo) para além de um certo limite, é insustentável para o sistema: deixa de ser homeostático, e passa um limiar crítico onde põe mesmo o sistema em causa. Mas a realidade é de tal modo fluida, que quaisquer previsões são hoje muito periclitantes. Aquela velha ideia conservadora de que é preciso que algo mude para que fique tudo na mesma, está há muito defunta. O sistema robotizado e informatizado disparou numa fuga em frente que apenas agora está a começar, com contornos muito preocupantes. É poderosíssimo e pode gerar novas formas, jamais previstas, como ninguém previa as ditaduras, guerras e malefícios sem precedentes do séc. XX.
Para abreviar: por mim vou tentar cada vez mais ir lá fora, aferir as minhas ideias com quem me entenda e me ensine, nem que tenha que fazer grande esforço noutras línguas. Vou comer a comida e vestir a roupa que me convier mais e for mais barata, pois infelizmente para comprar os livros de que necessito e que nenhuma instituição me disponibiliza não me resta dinheiro para muito mais.
Se for preciso também dou aulas em inglês, sim, isso é melhor do que fechar portas. Quem me dera ter bons alunos vindos de todo o mundo, que me entendessem no meu pobre inglês. Devíamos aliás começar desde já a apostar nisso, a preços de concorrência em relação a países que já o fazem. Além disso, é mais agradável o nosso clima que o de muitos centros de excelência, onde as pessoas, além de viverem sob um céu cinzento, ainda se esfalfam em empregos em part time para poderem pagar propinas e elaborar teses. Por exemplo, no meu campo, o da arqueologia, que matéria-prima riquíssima não haveria aqui se nos dessem (sobretudo aos jovens) condições!
É uma espécie de novo "proletariado intelectual" que surge, o dos estudantes emigrados, por vezes sem bolsa, sobretudo nas áreas do saber consideradas não rentáveis dentro da lógica conhecida do curto prazo, lógica que dita a agenda política, económica, e social.
Mas a minha poesia, essa, será sempre na única língua que de facto sei, que minimamente domino, que me constituíu como sou. A língua portuguesa, grafada como me ensinaram aí pelos anos cinquenta do século XX.
Não é patriotismo, nem talvez teimosia.
É que eu quero mesmo fazer qualquer coisa, e não posso, para "fazer o móvel" que ando a moldar há quarenta anos, mudar agora à pressa de ferramenta, nem de mãos, nem de gestos incorporados, nem de oficina.
Mas em qualquer lado do mundo em que possa prosseguir o mesmo "móvel" com um mínimo de dignidade, essa será a minha terra.
2 comentários:
Belíssimo texto, Vítor. Subscrevo linha por linha.
Quanto ao famigerado acordo ortográfico, a polémica parece-me completamente descabida, só servindo para desviar a atenção de outras questões bem mais prementes e preocupantes. Da minha parte, jamais assinarei a petição que anda por aí a circular. Recuso-me a dar para o peditório do miserabilismo e dos complexos de inferioridade nacionais! Também gostei muito de ler, a propósito, este texto: http://blogmanchas.blogspot.com/2008/04/acordo-ortogrfico.html
Esse blogue,Manchas, é interesante.
Lamentavelmente, não tem e-mail ou outra forma de contacto, pelo menos que eu tenha visto.
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