Sobre a toxicidade e a comunidade por vir
Como é bem sabido, nos anos 30 do século XX, o pensamento capitalista começou a desenvolver novas possibilidades de resolver as “crises” intrínsecas ao seu sistema. Uma dessas possibilidades foi a neoliberal, hoje dominante, e que se viria a consolidar no Colóquio Walter Lippmann, de Paris, em 1938, organizado por Louis Rougier, colaborador do governo de Vichy. Conhecidos ideólogos desta “solução” (alternativa tanto em relação aos ensaios nazi-fascistas, como às democracias formais típicas do mundo burguês- “Estado social” - , nomeadamente no após-guerra) foram o alemão Rustov, o austríaco Hayek, etc., juntando-se também a todo este “ovo da serpente” a criação em 1947 da “The Mont Pelerin Society”, à qual se ligou, por exemplo, o filósofo Karl Popper. Era todo um programa anti-keynesiano, anti-soviético, anti-progressismo terceiro-mundista. Basicamente tratava-se de fazer face, radicalmente, a qualquer veleidade de socialismo (ou seja, de democracia no seu sentido mais amplo). Nesta corrente tornou-se dominante, a partir dos anos 60, a chamada Escola de Chicago, com a figura ”carismática” de Milton Friedman à sua frente. É este programa ideológico que vai sustentar toda a teoria e prática do neoliberalismo, desde Thatcher, Reagan, terceira via do Labour com Blair, etc., num ataque muito violento aos direitos laborais e sindicais, e, por extensão, na erosão da própria classe média, ataque esse consubstanciado ultimamente nas políticas europeias dominadas pela financeirização, e impostas aos países do Sul do continente, como Portugal. Trata-se de uma forma inédita de concentração do capital, em que a “austeridade” e a ideologia culpabilizante da “dívida” são criadas e impostas por entidades superiores aos estados, para, basicamente, extorquir às populações o seu rendimento concentrando os benefícios numa minoria. Aspectos mais moderados deste programa, ou até as suas próprias oscilações (é bem conhecido o carácter adaptativo e dinâmico do capitalismo) não chegam para esconder aos olhos de cada vez maior número de pessoas que o sistema neoliberal não é um sistema “amigo” delas, da sua qualidade de vida; é antes um sistema tóxico, produtor de crises e de catástrofes, as quais são inevitáveis.
Como imaginar uma solução para tão sistémico e globalizado problema? Não existe uma solução: essa inexistência é precisamente uma das suas características: o fechamento do horizonte das alternativas.
Apesar disso, a obscenidade do sistema, corporizada nas “maneiras” de proceder (e temíveis consequências) de muitos líderes, é patente; também existe ainda a possibilidade de pensar, para algumas pessoas que têm tempo para isso. Essas pessoas têm uma responsabilidade acrescida. Perder o medo de pensar serena mas radicalmente para fazer face, e aproveitar brechas, antes de tudo ao nível da consciência alienada dos cidadãos, em que se apoia um sistema totalitário de cariz novo, porque radicalmente doentio e anti-humano, dispondo de sistemas de entretenimento e adormecimento dos afectos colectivos como nunca até aqui se tinha visto, e que nos pode conduzir à catástrofe global. Nunca foi tão importante como hoje pensar, abrir os olhos, fazer ver. Pois a insatisfação de muitos, sem objetivo nem ocupação, leva-os precisamente ao desespero perigosíssimo do despeito, do suicídio, do terrorismo, do radicalismo das ações criminosas, que são hoje uma fonte de inquietação permanente, de mal-estar, desconforto, insegurança, corrupção, suspeita mútua, etc. O neoliberalismo cria a fragmentação dos indivíduos, pois que um dos seus inimigos é a noção de comunidade.O neoliberalismo é a outra face de todos os extremismos, incluindo o terrorismo urbano, que pode explodir em qualquer lado e em qualquer lugar. Ninguém está seguro neste mundo agressivo, extremamente maquínico. Alguns invocam o “humanismo”, ou o regresso a uma política mais distributiva, não vendo que isso é hoje em dia, a prazo, praticamente impossível, que essas visões da realidade foram ultrapassadas pelo pensamento e prática capitalistas globalizadas, que a própria religião não passa de uma organização piedosa, mas que nada pode fazer de estrutural pelas pessoas, a não ser dar-lhes um conforto moral temporário que vai permitindo, nas suas costas, a progressão do cilindro compressor... e assim, perversamente, dizendo coisas importantes, vai em larga medida sendo cúmplice de uma situação opressora e injusta.
Este o imperativo ético do presente. Acordar, fazer o esforço de pensar. Escolher muito bem as fontes de informação e tentar atuar. Não se trata de enfrentar uma realidade global com as mesmas armas que ela tem, e são poderosíssimas, tanto as visíveis como as invisíveis.
Trata-se de criar comunidade. Porque a maior parte das pessoas são generosas quando chamadas pelas circunstâncias que pedem solidariedade. Mas são atitudes pontuais. Em pano de fundo persiste a ideia de “cada um por si”, que tanto leva alguns à glória, muitas vezes súbita e fácil, como a maioria à progressiva deterioração da dignidade humana.
Trata-se de tentar fazer perceber que é preciso uma sociedade não voltada para o lucro, para a posse, para o êxito individuais, mas tudo ao contrário, uma sociedade que se mova pelos valores da cultura, da educação, da partilha, da hospitalidade, da felicidade, do bem-estar, que não passa pela posse de bens, mas pela posse de uma consciência tranquila. Utopia? Sim. Mas uma utopia motivadora de um possível mundo salvador, ou pelo menos menos criminoso, mais saudável, versus uma outra utopia, em que estamos imersos, e nos conduz à desgraça.
voj junho 2017
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