quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Pouca sorte de um possível campo de estudos interdisciplinares




O problema da história das ciências sociais em Portugal em certos aspectos é muito interessante de pensar.
Como é bem sabido, Salazar detestava-as e proibiu-as. Portugal no 25 de abril de 1974 era opaco a si mesmo, como Boaventura S. Santos e outros acentuaram. Era um país fechado.
Num certo sentido, tudo isto teve, para o meu interesse nuclear, um efeito profundamente debilitante.
Qual o meu interesse nuclear inicial? Aquilo que antigamente se chamava a “história primitiva do homem”, as "sociedades primitivas" (no tempo ou no espaço), isto é, no fundo, o problema de como é que apareceu o nosso género e espécie, este "escândalo da natureza": um ser que se pensa a si mesmo!
Este estudo implicava, e implica, uma relação interdisciplinar de raiz: a união de uma antropologia das sociedades pré-estatais, ou se quisermos, não-estatais, por um lado, e, por outro, o desenvolvimento de uma ciência que, como todas, é cara, e pouco “vistosa”, a arqueologia pré-histórica.
Enquanto nos grandes países centrais (certamente também em relação com a sua postura imperial) isso se desenvolvia, em Portugal tal não aconteceu.
Salazar só desenvolveu a actividade dos engenheiros do património (DGEMN) concentrada sobretudo em castelos e igrejas, os símbolos da nação para ele e para o seu regime.
Entretanto, havia arqueólogos que se dedicavam à pré-história, sobretudo no litoral, mas em grande parte para nosso mal. Eram na maioria simples amadores, e muitos deram cabo de muita coisa. Alguns eram mesmo extremamente ávidos de recolher materiais, à pá e pica, a abrir buracos. Essa é a triste verdade.
Assim, e salvo excepções, é claro, a arqueologia pré-histórica não se desenvolveu como nos países mais industrializados.
Quando se deu o 25 de abril, e como é natural, a maior parte dos antropólogos, alguns deles recém-chegados ao país, formados no estrangeiro, não se voltou para as "comunidades primitivas", cujo estudo seria fulcral também para a arqueologia pré-histórica. Quais comunidades seriam essas? Refiro-me a uma antropologia das sociedades não-estatais, existentes ainda, à altura, em muitos pontos do mundo, para os quais nunca enviámos equipas, concentrados que estávamos nos graves problemas de atraso do nosso pais. É compreensível.
O país era aliás ele mesmo um museu de si próprio. Que fizeram esses autores que desenvolveram uma nova antropologia em Portugal? Tentar ir para além do que antes de mais sério se tinha feito - ou seja, o estudo da chamada "cultura material" por Jorge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira, Benjamin Pereira e Fernando Galhano, tendo também Jorge Dias realizado estudos de comunidades segundo uma problemática e um método que já se tinham, também eles, tornado anacrónicos noutros países mais evoluídos neste domínio ... há aqui, em Portugal, um fenómeno de constante anacronismo... produto de décadas de fechamento.
Então os antropólogos depois do 25 de abril foram-se voltar sobretudo para comunidades presentes, e depois também, mais recentemente, para outras "exóticas", mas já em rápido processo de transformação, nos países de língua portuguesa...etc.
Ou seja, hove um desfasamento sempre entre pré-história e antropologia. Certas figuras ligadas ao regime evidentemente faziam essa ponte, como por exemplo Mendes Correia, mas apesar da sua intensa actividade, com algum mérito, obviamente a sua ação, embora envolvendo muitos contactos internacionais, aparece-nos hoje como também anacrónica, à luz do que se fazia nos países mais avançados da mesma época, obviamente.
Uma das áreas que sofreu muito com esta simetria inversa foi a arqueologia pré-histórica e de um modo geral o estudo interdisciplinar das “origens do homem”, apesar de todos os progressos que se efectuaram na primatologia, no estudo do Paleolítico, da geologia do Quaternário, etc., etc.
Explico-me melhor: antes do 25 de abril, interesse quase puramente amador pela arqueologia pré-histórica - por parte de portugueses, mas o que nos legaram os estrangeiros foi sobretudo o Zambujal, em Torres Vedras, caso isolado - e interesse do Estado pelos monumentos históricos; ausência de interesse por sociedades "primitivas". Sou testemunha da própria dificuldade que tive na elaboração dos meus trabalhos para realização de licenciatura... com os meus 69 anos, tenho essa visão do antes e do depois, que muitos, mais jovens que eu, poderão não ter, pelo menos de forma vivida e sentida “na pele”...
Depois do 25 de abril, desenvolvimento de várias arqueologias, referentes a todas as épocas, onde a pré-histórica foi sempre filha menor, e interesse antropológico pela contemporaneidade para colmatar o vazio anterior das ciências sociais.
Com tudo isto, em balanço final, a arqueologia pré-histórica ficou sempre a perder.
Antes do 25 de abril a única arqueologia decente que se fazia cá era a romana, com o casal Alarcão em Coimbra (Universidade) e Conimbriga. Mais nada, praticamente, de trabalho condizente com aquela época, actualizado, exceptuado um ou outro caso de amadores de melhor qualidade (como Eduardo da Cunha Serrão).
A única antropologia decente, interessante, era a da equipa de Jorge Dias, mas esta estava totalmente desconectada dos arqueólogos, e, a certa altura, das mais recentes tendências da antropologia mundial. Eu pude falar com Jorge Dias, infelizmente, apenas uns 5 a 10 minutos, nada mais...
A nossa única grande oportunidade (a de pessoas que estudavam a chamada pré-história) de aparecer à tona e de conseguir para a arqueologia um novo estatuto e para a arqueologia pré-histórica um maior prestígio - e por isso também criou um certo mal estar - foi o Côa, em 1994/95/96/97.
A maior parte da população alheou-se do assunto, apesar da sua mediatização, e de ele ter inclusivamente aberto telejornais...
As pessoas mais atentas e inteligentes aperceberam-se porém de que havia ali algo de novo. O Côa parecia ser o 25 de abril da arqueologia portuguesa.
Era também a afirmação da pré-história, que pela primeira vez conseguiu inscrever como património mundial da Unesco um património de facto único no nosso território, as gravuras do Côa no seu contexto (1998).
Porém, sabe-se as dificuldades por que tem passado aquele trabalho, que muito deve ao esforço de alguns arqueólogos. É um património fabuloso mas difícil de entender, de transmitir, implica uma cultura que muitas pessoas não têm.
O ensino primário e médio não ajuda, o ensino superior vai fazendo o que pode, há investigação de qualidade em certos casos, indubitavelmente, mas o grande salto que se esperava não chegou a dar-se, por várias razões, o que em última análise se deve a falta de consciência cultural (a todos os níveis) e a problemas de falta de financiamento.
Infelizmente, os sítios pré-históricos não dão em geral para grandes "vendas de bilheteira"...
Enquanto o valor for este, o da rendibilidade sobretudo material, e não o da qualidade de vida, do gosto, do refinamento do gosto, do amor daquilo que é precioso mas que se não se traduz em dinheiro, as disciplinas e saberes que não têm tanta visibilidade estarão sempre em posição de submissão e de vulnerabilidade. Os que querem instrumentalizar a produção de conhecimentos para as industrias culturais atraentes evidentemente não estão interessados em nada disto, mormente agora em época de chamada “crise”.
Veja-se o que aconteceu no caso do Interior – durante muito tempo desconhecido, até pela dificuldade de transportes, de acessibilidades - e de 3 barragens, que puseram na ordem do dias patrimónios fantásticos: as gravuras do Tejo ficaram debaixo das águas da barragem de Fratel, antes do 25 de abril; as do Côa foram miraculosamente salvas até hoje, e esperemos que para sempre; mas o que ficou debaixo do grande lago do Alqueva, onde os arqueólogos até tiveram durante algum tempo algumas boas condições de trabalho dadas pela empresa construtora, foi incalculável.
Realmente não houve hipótese alguma de conseguir algo de alternativo a uma enorme barragem que era apoiada por toda a gente…e por todos os partidos…
Mas a motivação primeira desta nota era acentuar por que razão em Portugal nunca se fez o casamento da arqueologia pré-histórica com a antropologia das chamadas antigamente "sociedades primitivas", terminologia que evidentemente entrou em desuso.
Esse casamento não se deu nem ao nível da investigação, nem do ensino, e cada vez se torna mais difícil de realizar em Portugal.
Falemos então, daquelas “sociedades primitivas”, como sociedade desprovidas de Estado, as quais, embora hoje decerto em estado de rápida transformação devido à globalização, seriam um elemento crucial de comparação para a interpretação das comunidades pré-históricas.
Essa não colaboração, esse não desenvolvimento mútuo, dificultou até hoje muito, entre outros factores, o desenvolvimento da chamada investigação pré-histórica em Portugal.
É certo que hoje em dia há muito trabalho publicado em muitas partes do mundo que se pode facilmente utilizar.
Mas aquilo a que eu aqui me refiro é a uma ciência feita por iniciativa de portugueses ou a partir de Portugal, projectos nacionais ou internacionais com a participação ativa de investigadores portugueses, dirigidos a comunidades sem Estado e simultaneamente à problemática da chamada Pré-história. Esse seria o objecto de um centro de investigação, para não dizer de um departamento universitário ou mesmo de um curso, se os tempos fossem outros. Hoje, com esta funcionalização do ensino rápido, é uma utopia. Uma utopia total.
Claro que agora, no mundo globalizado, os investigadores estão em relação com os seus pares de toda a parte, pelo menos potencialmente.
Mas eu estou a querer focar o caso da ciência portuguesa, da sua iniciativa, da sua interdisciplinaridade, da sua visibilidade nacional e internacional ! Foi com isso, julgo que legitimamente, que sonhei. Como certamente outros colegas meus, eventualmente já desiludidos.
O pano de fundo de tudo é que a escolaridade aumentou enormemente em Portugal desde 1974, mas as condições económicas não facilitam nem a pesquisa, nem o interesse das pessoas, canalizado para coisas mais visíveis do que os sítios pré-históricos, mesmo quando restaurados e quando se tenta inscrevê-los em “rotas”.
E depois do 25 de abril, que ocorreu já em plena fase de início de crise do sistema capitalista mundial, e ao contrário do que muitos esperariam da “democracia”, com a transformação dos valores e do modelo da sociedade, cada vez mais integrada nesse mundo capitalista, com a reversão de certas realidades obtidas pela revolução, desenvolveu-se uma "cultura mediana" (inflação de diplomas, cursos curtos, estudos superficiais e rápidos, ambiente geral hedonista ligado ao consumo, etc., enfim, degradação da qualidade em proveito da quantidade e da banalidade... e de uma minoria...), abarcando uma população facilmente colonizada pelos media e por entretenimentos de toda a espécie, que não quer saber, em geral, da Pré-história, sendo atraída apenas pelo pitoresco (tipo “passe um dia na pré-história” em tal sítio, “venha ver como eles talhavam a pedra no Paleolítico”, etc.), e pronto.
Como pode desenvolver-se um trabalho sustentado na área que inicialmente eu tinha escolhido como “minha” opção, ou seja, a da emergência do homem estudada através simultaneamente da arqueologia e da antropologia, unidas?... é difícil, mesmo muito difícil.
Desenvolverei este tema em textos mais amplos e explícitos.

Vítor Oliveira Jorge, abril de 2017, Loures.

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