quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Notas despretenciosas e ocasionais enquanto releio algum Foucault


As coisas, as palavras e... os discursos, as formações discursivas, ordenadas em “figuras de conjunto” que dão as disciplinas universitárias, a partir do século XIX...
Ao contrário de tanta banalidade absurda que se continua a inventar sobre a relação entre coisas (a “realidade”) e palavras (a suposta descrição, compreensão, apreensão, etc. dessa realidade), nomeadamente nas equívocas filosofias “simétricas” de “retorno aos objetos”..., Foucault revela já em 1969 a originalidade e (quanto a mim...) pertinência, ainda hoje, do seu empreendimento nestes termos (“L’ Archéologie du Savoir”, Paris, Gallimard, 1969, pp. 66-67), nos quais caracteriza a sua tarefa:
“ Tarefa que consiste em não - em nunca – tratar os discursos como conjuntos de signos (de elementos significantes reportando para conteúdos ou representações) mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que elas falam. Claro, os discursos são feitos de signos; mas o que eles fazem é mais do que utilizar signos para designar coisas. É este mais aquilo que os torna irredutíveis à língua e à fala. É este “mais” [plus] que se torna necessário fazer aparecer e que se torna necessário descrever.”
Claro que para perceber isto é indispensável compreender o que Foucault isolou como discurso, como a prática discursiva, a contrapelo do que os historiadores faziam e muitos fazem: irem aos documentos (quaisquer que sejam, mas, claro, nomeadamente os escritos...) e extrair-lhes uma espécie de tutano, ou sentido, ou conteúdo, segundo as regras da prática historiográfica rotineira. O que Foucault faz é deslocar toda essa relação habitual entre o que supostamente existe e o que se supostamente se diz ou faz, ou quer dizer, para compreender precisamente o interstício entre uma coisa e outra.
Trata-se de abandonar, a um só tempo, a tradição antropológica e a tradição humanista. De ultrapassar a história presa ao documento, o que evidentemente não significa descartá-lo, longe disso. Não se trata é de, como ele escreve na Introdução da obra, reconstituir o passado a partir dos documentos, que dele supostamente emanam.
Trata-se da descrição dos acontecimentos discursivos, uma massa imensa de elementos, um campo enorme mas não infinito: o conjunto dos acontecimentos discursivos, acompanhado da pergunta (op. cit., p. 39) “ (...) como é que determinado enunciado apareceu, e nenhum outro, em seu lugar?”. O enunciado aparece como o acontecimento, um acontecimento “estranho” , diz o autor (op. cit. p. 40) porque: “(...) está ligado por um lado a um gesto de escrita ou à articulação de uma fala [parole], mas por outro lado abre para si próprio uma existência remanente no campo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros, e de qualquer outra forma de registo; depois porque é único como qualquer acontecimento, mas oferece-se à repetição, à transformação, à reativação; por fim porque está ligado a situações que o provocam, e a consequências que ele incita, mas, ao mesmo tempo, e de acordo com uma modalidade muito diferente, a enunciados que o precedem e que a ele se seguem.”
Trata-se de um pensamento relacional a muitos níveis.
Evidentemente, este método histórico, que subverte a “história dos historiadores”, inventado por Foucault, refere-se sobretudo às relações entre enunciados, e como essas relações se acabam por cristalizar em práticas e em conjuntos (por exemplo, a loucura) através de “superfícies de emergência” (família, por ex.) , de “instâncias de delimitação” (medicina, por exemplo) e “grelhas de especificação” (alma, corpo, etc.), criando “figuras de conjunto”. Estas últimas são por exemplo a psicopatologia, a economia, a gramática, a medicina, etc. , ou seja um conjunto de práticas discursivas sujeitas a “(...) um conjunto de regras que são imanentes a uma prática e a definem na sua especificidade.” (p. 63)
Por exemplo, e agora falando de arqueologia dos arqueólogos (como eu) seria muito interessante fazer uma reflexão sobre como se constituiu, e se foi transformando, esta prática discursiva: não uma história de descobertas ou descrição de sítios, não uma história das várias tentativas que os autores fizeram de os domesticar através de narrativas mais ou menos importadas do senso-comum ou de outras práticas discursivas, mas analisando a superfície mesma das práticas discursivas diversas que se cristalizaram neste campo, até hoje.
Muitas vezes baseadas num equívoco fundamental: o de que existiu um passado, que se esboroou no seu sentido (como se o problema do próprio passado não fosse sempre o de hoje, o da nossa interrogação retrospectiva hoje), e que temos de recuperar, de reconstituir, interpretando coisas, objetos, realidades materiais, no que elas ardilosamente escondem dessa realidade, por assim dizer, metafísica, desse “passado”. Quais detectives, assim partimos para certas parcelas da realidade atual, que trabalhamos segundo metodologias mais ou menos consolidadas, e lá vamos, qual Penélope travestida de Sísifo, fazendo o tricot dessa narrativa que estabelece a nossa continuidade com a natureza, aplicando teorias e mais teorias para acordar o passado que supostamente jaz, semi-morto, morto-vivo, nas coisas.
Empreendimento delirante, algo histérico? Quiçá. Mas desde que forneça histórias, estórias para contar, dá que fazer, constitui um instrumento de entretenimento e de “rassurance” das pessoas relativamente ao fio de continuidade que supostamente existiria entre cada um de nós e a origem do mundo.
E se lá nesse princípio estiver um pai protetor, um deus ou divindade qualquer, então é ouro sobre azul. O mundo faz sentido, foi criado, e nós havemos de ser no fim (?) redimidos de todas as maldições e sofrimentos. A narrativa é coerente, alimenta instituições, pesquisas e pessoas, e une-se miraculosamente à nossa infância, a idade em que a gente vivia simultaneamente num mundo mágico e num mundo de perguntas: ó pai, por que é que há sol? Ó pai, por que é que há isto e mais aquilo?...
É isso que os visitantes procuram nos sítios pré-históricos. Uma resposta rápida como um tweet, para a seguir irem para outro sítio, como meninos num parque de diversões (no turismo somos todos meninos de novo). Procuram uma archè, de bolso, resposta rápida que a família já estará impaciente à espera, algum fundamento, algo que os liberte da loucura de estarmos sós perante o espetáculo do firmamento, perante este terrível silêncio cheio de ruído de fundo, quer dizer, perante a nossa morte, a nossa efemeridade, a nossa não-razão, a imperfeição da realidade e de nós próprios como parte dela.
Que viver desencantado e, paradoxalmente, encantado (porque a eternidade seria o infinito tédio, a condenação mais horrível...), não é para qualquer um: nem vende bilhetes nem junta massas de aderentes.
Foucault vivo hoje. Como tantos outros pensadores. Essa a dificuldade. Nenhum possui a chave, é preciso procurar continuamente e encontrar as ligações inesperadas que podem existir no diálogo de pensadores tão diversos e que tanto às vezes se negaram uns aos outros.

voj maio 2017, loures

Sem comentários: