Reflexão sobre um dos quatro As de Tim
Ingold
Por
Vítor
Oliveira Jorge e
Florbela
Estêvão
No
início do seu livro recente “Making: Anthropology, Archaeology, Art and
Architecture”, Tim Ingold (London, Routledge, 2013, pp. 10 e 11) refere-se ao
facto de ter iniciado na Universidade de Aberdeen um curso designado, na gíria,
“Os quatro As”, reportando-se às quatro disciplinas que dão título ao livro. E
nesse passo, no que toca à inclusão da
arqueologia, escreve o seguinte:
“
Com os temas comuns de tempo e de paisagem (Ingold, 1990), e com a sua
preocupação mútua pelas formas materiais e simbólicas da vida humana, a
antropologia e a arqueologia foram desde há muito encaradas como disciplinas
irmãs, mesmo se nem sempre estiveram em diálogo. Sobretudo há uma afinidade
óbvia entre a arqueologia e as histórias da arte e da arquitetura no que toca
aos artefactos e edifícios da antiguidade. Num certo sentido, suponho eu, os
arquitetos e os arqueológos poderiam ser encarados como iguais nos processos e
opostos na temporalidade: afinal de contas o mesmo utensílio – o colherim – que
o construtor usa para fabricar as formas arquitectónicas do futuro, é usado
pelo arqueólogo, na escavação de um sítio, para revelar as formas do passado.
Se um começa com os desenhos daquilo que é para erigir, o outro acaba com as
plantas daquilo que foi exumado. Com todos estes paralelos e conexões, parecia
sem dúvida bem natural que a arqueologia fosse junta às outras como o quarto A.
“Contudo,
se a arqueologia se junta à antropologia não como uma ciência positiva mas como
uma arte de pesquisa [“art of inquiry”], e, de igual modo, se se junta à arte e
arquitetura concebidas mais como disciplinas do que como coleções de
informações [“compendia”] de objetos para análises históricas, então os termos
da integração têm de ser negociados, em dois aspectos. Primeiro, tal como fomos
levados a distinguir a antropologia da etnografia, também, de igual modo, a
arqueologia tem de ser distinguida do tipo de pré- ou proto-história que tem como
objetivo chegar a reconstruções descritivas plausíveis da vida quotidiana no
passado. Embora os prós e contras do uso das analogias etnográficas para
colmatar os vazios de tais reconstruções tenham sido amplamente debatidos, esta
questão – crucial para a relação entre a etnografia e a pré-história – não tem
consequências especiais no que toca à relação entre a antropologia e a
arqueologia. Segundo, temos de reconhecer que a prática nuclear da arqueologia,
a escavação, compreendida no seu sentido mais amplo de um envolvimento com
materiais enterrados que são portadores de vestígios da atividade humana
passada, não pode continuar a ser reduzida a uma técnica de recolha de dados,
assim como o não são as correspondentes práticas de observação participante em
antropologia. Tal como a observação participante, a escavação é um modo de
conhecer a partir de dentro [“knowing from the inside”]: uma correspondência
entre atenção consciente e materiais ativos conduzida por mãos experientes “na
ponta do colherim”. É a partir desta correspondência, e não da análise de
“dados” insertos em enquadramentos “teóricos”, que o conhecimento arqueológico
aumenta. Na prática da escavação, como Matt Edgeworth escreveu recentemente, os
arqueólogos são forçados a seguir o corte
– para “ver para onde ele vai, e em que direção nos leva” – não de forma
passiva mas ativamente, tal como caçadores atrás da sua presa, sempre alerta e
a responder a sinais visuais e tácteis num ambiente intrinsecamente variável
(Edgeworth 2012, p. 78; Ingold, 2011, p. 251, nota 4).
Estas
reflexões de Ingold davam, como sempre acontece com as que faz, “pano para
mangas”. Destaquemos o que nos parece mais importante: o estatuto
epistemológico da arqueologia (ciência, isto é, meio de aumentar o nosso conhecimento
sobre a história, ou simples técnica de recolha de dados para se fazer essa
história – mesmo que seja chamada pré ou proto-história?); e o papel
substantivo da escavação como traço de união da arqueologia (ver a partir de
dentro e seguindo os sinais que nos dá uma realidade em movimento, sempre a
acontecer “na ponta do colherim”, e não articulação estéril de dados e teorias
desgarrados uns dos outros à partida).
Entretanto,
elas também deixam, como o autor bem sabe, muita outra problemática por abordar;
não é sua intenção fazê-lo ali, naquele livro.
Por
exemplo, se a antropologia começou por ser a análise dessa invenção ocidental
que são as “sociedades primitivas”, cedo esse olhar reverteu para o próprio
observador e seu contexto, e a antropologia passou a ser um modo distanciado (e
ao mesmo tempo, paradoxalmente, “a partir de dentro”) de ver toda e qualquer
realidade social, diferente da sociologia, por exemplo. De igual modo, se a
arqueologia começou por ser uma “ciência auxiliar” da história, e muito
principalmente da história antiga e pré-história, tornou-se depois num campo
abrangente de todo o tempo histórico e de todo o espaço terrestre: uma forma de
investigar “na ponta do colherim”, como diz Ingold. Ambas as disciplinas
começaram pelo exótico e pelo descritivo, para se transformarem em estudos de
qualquer realidade social de um ponto de vista interpretativo, à medida que se
foram tentando libertar da camisa de forças positivista.
Sendo
certo que a arqueologia incide sobre todo o espaço terrestre, procurando nele
os traços da atividade humana (tanto na presença ou visibilidade plena, como
Pompeia, como na escassez, ou mesmo ausência, como uma superfície onde nada
ocorra, e que também, na aparente ou efetiva ausência de traços, tem de cair
sob a alçada da explicação), é também verdade que essa tarefa é uma luta contra
o tempo, tal como aliás acontece com muitas outras ciências de observação. De
facto, o objecto de estudo degrada-se e evapora-se, por assim dizer, a uma
velocidade maior do que a dinâmica das pesquisas. A maior parte das espécies
que existiram sobre a superfície terrestre já desapareceram (problema da
biologia e suas derivadas), a maior parte das “culturas” (e das línguas, por
exemplo, de que eram portadoras) que floresceram já foi extinta (problema da
antropologia mas também da arqueologia, etc.), e a arqueologia parece estar
sempre a tentar lutar, utopicamente, contra essa erosão do tempo, à escala do
planeta todo e da humanidade desde os seus míticos “inícios”.
O
território é uma unidade convencional dessa luta. A arqueologia gostaria,
utopicamente, de poder participar em igualdade de poderes com outros agentes de
transformação dos espaços e dos lugares; mas afronta-se com direitos de
propriedade e com interesses muito poderosos, que no máximo a encaram como o
mais fraco e simbólico (no sentido de não ter força política) elo de uma cadeia
de intervenientes. A ideia de desenvolvimento traduz, de facto, o triunfo universal
da noção de propriedade, no sentido mercantil, sobre todos os outros, e em
todas as esferas.
Assim,
Ingold pode dar os seus cursos universitários e escrever os seus livros
clarividentes sobre a óbvia articulação das disciplinas, arte, arquitetura,
antropologia, arqueologia – tudo campos convencionais de abordagem/construção
da realidade social. Mas a prática corrente passa ao lado dessas visões
brilhantes, e é muito comezinha. Arte e arquitetura são mercados, que
movimentam muito dinheiro; a antropologia e a arqueologia são a manifestação
ocidental da nossa curiosidade pelo outro, pelo diferente (dobrada de uma
grande vontade de o subordinar a nós), que vem dos gregos, se expandiu nas
colonizações, e hoje se consuma na mundialização.
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