O princípio democrático de que todos os cidadãos são iguais perante a lei é equivalente a outros como por exemplo o de que todos os cidadãos têm igual direito à saúde, à educação, ao respeito pela sua dignidade e liberdade, etc., etc. Obviamente, e infelizmente, a realidade vivida está bem longe desses princípios, que exprimem mais desejos, ou metas, a atingir (quando? como? onde?) do que realidades, como qualquer pessoa sabe. Por mim, não tenho confiança cega em nenhum sistema, seja ele natural ou humano, ou seja, a própria realidade é, julgo, intrinsecamente incompleta, imperfeita, furta-se sempre ao nosso desejo de harmonia, completude, plenitude, chame-se o que se quiser. Há uma subjectividade e contingencialidade em tudo o que é humano, e obviamente a ideia da separação absoluta de poderes (à política o que é da política, à justiça o que é da justiça, etc.) na prática é impossível. Tanto mais que existem pelo meio precisamente os media, que são usados e instrumentalizados de maneira mais ou menos evidente pelos diversos poderes que disputam pela hegemonia, ou preponderância, do espaço público, que é hoje em dia um espaço construído pelos media.Mas a nossa incompletude de juízo não está fora da realidade; ela é parte da realidade; ou seja, esta não é uma questão epistemológica (existe uma verdade, nós é que não conseguimos alcança-la) mas ontológica (a própria realidade de que fazemos parte é imperfeita, não-Toda). Assim, todos os mais belos princípios, igualdade, liberdade, fraternidade, etc., exprimem desejos, estabelecem alvos a atingir, se formos optimistas, num futuro mais ou menos longínquo. É uma ideia herdada da tradição religiosa, a de uma regeneração final em que tudo finalmente se harmonizará e até os erros, crimes e horrores do passado serão redimidos. É uma ideia interessante para nos animar na acção política, a de uma ética de responsabilidade não só em relação ao futuro, mas também ao passado, porque ambos estão sempre em construção e reconstrução. Quando os media trazem para o espaço público factos realmente chocantes, inesperados, surpreendentes, que estão intimamente articulados com jogos de poder, e quando esses factos se sucedem numa espécie de orgia, de vertigem louca, o cidadão aparvalhado pergunta-se - se acreditar nesses media, e como é difícil não se deixar levar na onda, ter o tal recuo crítico que seria necessário a todos, idealmente - em que mundo vive, se estará num filme de suspense, de terror, ou se ainda conseguirá encontrar um pequeno espaço para ir vivendo de forma mais ou menos feliz, isto é, sentindo-se numa comunidade onde pode CONFIAR minimamente nos vários poderes em disputa, onde pode de facto (sobre)viver com um mínimo de dignidade, sem vergonha de pertencer, ou de se sentir pertencer a uma nebulosa estranha que é um filme de polícias e ladrões onde ele, homem comum, não quereria entrar no ecrã, mas estar apenas a ver um pouco para depois sair da sala e pensar: era apenas um filme, como quando se tem um pesadelo e se acorda aliviado, sentindo: uf, era apenas um pesadelo. Porém, não será esse homem comum, eticamente puro, mais uma absoluta construção inocente e utópica? Claro que sim. A telenovela louca que constitui o nosso quotidiano vai continuar pela noite, mesmo que a não observemos, e aí estará pela manhã, 24 em 24 horas, numa espiral imparável. E cada um vai carregar no botão para ouvir, ou ver e ouvir, as "últimas notícias". Se uma pessoa não consegue abstrair-se disto, e da imensa cacofonia que em torno disto se gera, realmente enlouquece, não tem fuga possível. É tremendo, meus amigos.
voj
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