Lembras-te das ervas verdes, revoltas, se alçarem do
chão como cabeleiras intermináveis, em agitação alta? O seu fervor vinha-lhes
certamente das raízes, do interior vermelho da terra, do seu húmus, do seu suco
de vida e morte. Era assim o nosso corpo unido: um mar, ou pelo menos uma onda
ansiosa, que estendia os seus inúmeros braços pela platitude do momento,
querendo alcançar algo mais além. Mas até as mais altas vagas acabam um dia por
repousar, numa fotografia, numa pintura, num fim de dia: e as ervas
aquietam-se, como os corpos param para que as gotas possam escorrer deles, reconfortadas.
Sabemos que o ciclo recomeçará, não se sabe quando nem como, é esta força das
cores contrastantes, esta vontade dos pés baterem no chão levantando pó, esta
ansiedade que as línguas sentem pelo sumo do instante seguinte. Há momentos em
que os ouros fulgem; em que as geometrias se cruzam para formarem jogos
infinitos; em que as matemáticas ditam o jogo harmónico e desarmónico dos
gestos, dos bailados, das vozes, dos corpos, dos sexos. Em que o centro vibra
louco, em que a periferia desenha círculos de pedra, em que os vasos incham
como ventres, uma imagem tremenda de excesso. E outros em que os próprios
deuses pedem aos homens um pouco de paz; e tremem de frio e medo ante os campos
de inverno para que os tempos os conduzem. Já tanta coisa ocorreu; é ainda
possível um mar de ervas intermináveis, incrivelmente altas, se alçar de modo a
tapar o céu, a satisfazer-nos apenas com a sua seiva, a sua cor nitidamente
verde? Cobre o meu sexo com a tua mão, que eu assim farei com a minha no teu;
acariciemo-nos sem pressa. E talvez algo aconteça de novo, a inverosimilhança
deste alvoroço sem sentido, tão bom. A entrada ficará sempre entreaberta para
que a Felicidade, cheia de plumas, e com o seu bico vermelho, venha pavonear-se
na atmosfera sobre nós, e os anões músicos possam tocar os seus instrumentos
italianos com a fúria que se lhes pede.
vou outubro 2014
para a Flor
para a Flor
acima: pintura de marx ernst
Sem comentários:
Enviar um comentário