domingo, 26 de outubro de 2014

já muitas vezes











Já muitas vezes me quiseram matar, e esse jogo insensato continua. Percebe-se que desconhecem a fogueira que arde dentro de mim, vem desde as raízes da terra e se ergue com orgulho desmedido, depois de me queimar todos os órgãos, até às nuvens que se suspendem, brancas e altas: pombas enormes e serenas, que nunca se movem nem se contaminam de fumo negro; são de uma serenidade que insulta os deuses. Os que me quiseram e querem matar, eles e elas, têm uma face visível e outra escondida. E esta última saiu diretamente de um quadro de Bosch: são imagens à beira das quais as palavras mais temíveis se paralisam, impotentes. 
Os que quiseram e querem matar-me usam com frequência o jogo do mais hipócrita silêncio: querem asfixiar-me pela indiferença. Conheço muito bem esses procedimentos, tenho uma parede da minha casa com o seu arquivo: qual naturalista do século dezoito, identifiquei-lhes os géneros e as espécies, as variantes, desenhei-os de frente, de trás, em perfil  e em secção: trato-os como um dedicado entomologista. Estão arquivados para o que der e vier.
Às vezes, pelas tardes, ponho as minhas coisas na pasta e vou encontrar-me com um desses inimigos: têm o aspecto mais variado. Começo por os imobilizar pelo olhar, pelas palavras; e depois disseco-lhes pouco a pouco o discurso, observando a sua estratégia, tentando delimitar a sua face horrível por detrás da atitude amável e benfazeja. Desejariam que morresse, claro, mas muitos não o sabem, e até me tratam como amigo, pelo menos enquanto isso lhes convém. Nunca lhes faço mal, não tenho vocação: apenas, sem o saberem, trago o lado da sua cabeça escondida, guardado em líquido incorrupto, dentro da mala, para ser arquivado em casa.
Ah se tantos deles soubessem como a sua maldade e hipocrisia, mais ou menos consciente, não perturba a pomba branca que pôs o grande ovo dentro do qual vivo, sobre as nuvens suaves. Aqueles e aquelas que me quiseram e me querem matar, silenciar, esquecer, apagar, jazem nas gavetas de vidro para onde posso todos os dias, quando me apetece, dirigir o olhar, vendo as suas línguas esticadas, de fora da boca, espumando do formol que exalam.

Mas, para ser totalmente franco, raramente me lembro desse arquivo, dessa biblioteca, desse museu da maldade. O ódio contamina-se, é doentio. Do que gosto verdadeiramente é de sair para o verde dos campos, saltando, e de encher o peito com a vida que pulula na atmosfera, entre as folhas, os insectos, e os seios túrgidos do meu amor.  E, às vezes, encontro alguns verdadeiros amigos ao rés da relva.


voj outubro 2014
imagem: hieronymus bosch


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