Já muitas vezes me quiseram matar, e esse jogo
insensato continua. Percebe-se que desconhecem a fogueira que arde dentro de
mim, vem desde as raízes da terra e se ergue com orgulho desmedido, depois de
me queimar todos os órgãos, até às nuvens que se suspendem, brancas e altas:
pombas enormes e serenas, que nunca se movem nem se contaminam de fumo negro;
são de uma serenidade que insulta os deuses. Os que me quiseram e querem matar,
eles e elas, têm uma face visível e outra escondida. E esta última saiu diretamente
de um quadro de Bosch: são imagens à beira das quais as palavras mais temíveis
se paralisam, impotentes.
Os que quiseram e querem matar-me usam com frequência
o jogo do mais hipócrita silêncio: querem asfixiar-me pela indiferença. Conheço
muito bem esses procedimentos, tenho uma parede da minha casa com o seu
arquivo: qual naturalista do século dezoito, identifiquei-lhes os géneros e as
espécies, as variantes, desenhei-os de frente, de trás, em perfil e em secção: trato-os como um dedicado entomologista.
Estão arquivados para o que der e vier.
Às vezes, pelas tardes, ponho as minhas coisas na
pasta e vou encontrar-me com um desses inimigos: têm o aspecto mais variado.
Começo por os imobilizar pelo olhar, pelas palavras; e depois disseco-lhes pouco
a pouco o discurso, observando a sua estratégia, tentando delimitar a sua face
horrível por detrás da atitude amável e benfazeja. Desejariam que morresse,
claro, mas muitos não o sabem, e até me tratam como amigo, pelo menos enquanto
isso lhes convém. Nunca lhes faço mal, não tenho vocação: apenas, sem o
saberem, trago o lado da sua cabeça escondida, guardado em líquido incorrupto,
dentro da mala, para ser arquivado em casa.
Ah se tantos deles soubessem como a sua maldade e
hipocrisia, mais ou menos consciente, não perturba a pomba branca que pôs o
grande ovo dentro do qual vivo, sobre as nuvens suaves. Aqueles e aquelas que
me quiseram e me querem matar, silenciar, esquecer, apagar, jazem nas gavetas
de vidro para onde posso todos os dias, quando me apetece, dirigir o olhar,
vendo as suas línguas esticadas, de fora da boca, espumando do formol que
exalam.
Mas, para ser totalmente franco, raramente me lembro
desse arquivo, dessa biblioteca, desse museu da maldade. O ódio contamina-se, é
doentio. Do que gosto verdadeiramente é de sair para o verde dos campos, saltando,
e de encher o peito com a vida que pulula na atmosfera, entre as folhas, os
insectos, e os seios túrgidos do meu amor. E, às vezes, encontro alguns verdadeiros
amigos ao rés da relva.
voj outubro 2014
imagem: hieronymus bosch