quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

a propósito da segunda pessoa do singular

A propósito da segunda pessoa do singular



Sento-me de novo a uma mesa de esplanada

Da cidade onde dizem que nasci, onde vivi

Até ela ser minha, a minha cidade: antes

De ter partido para toda uma outra vida.


Vejo os mesmos monumentos, as ruas, o tejo,

As mesmas palmeiras, e até encontro traços

Que não esperava, conservados.


E mesmo ao lado coisas novas, inesperadas.

Novas marcas de automóveis, lojas mais modernas.

E sento-me melhor na cadeira,

Com aquele sentimento despaisado

De estar no estrangeiro, de tudo ser igual

Ao já imaginado, com uma pequena diferença.


Não sei se seria por essa pequena diferença

Que tu aparecerias. Talvez te esperasse sem saber.

Mas bem se sabe quanto a mais terrível palavra

É a palavra tu: uma palavra feita de carne e choro

E esperança e tinta escrita como sangue roxo escuro.


Assim fiquei na esplanada da gramática

Enquanto as gotas de água vinham pousar

Por toda a parte, quase que individualmente,

E faziam refulgir os metais. As cadeiras desocupadas.


Disse-lhes: não me podeis servir para nada.

Mas agradeço a intenção.


E peguei na mochila com as máquinas,

Entre brilhos, sons, sombras, reflexos,

Essas coisas que andam no ar, fui respirando,

Parti para o circuito turístico com nuvens sobre a cabeça

E uma ameaça de chuva, um souvenir para a família,


E deixei para trás as cadeiras todas molhadas

A olharem umas para as outras, para o fosso do rio,

como se só houvesse neste mundo eu e elas,

um mundo desprovido dessa tremenda palavra – tu.


Voltei-me então para fotografar isso,

Para poder dar testemunho aqui,

Para da ausência poder fazer presença,


e vi-te, sim,

Em mil rostos anónimos, que diziam coisas agradáveis

E acolhedoras. Faz favor esteja à sua vontade.


E todos tinham um objectivo, uma tarefa,

Talvez um encontro marcado,

Uma ocupação, uma determinação, algo combinado.


Esfalfei-me por ruas e travessas, até que tomei

Um táxi, e lhe disse: leve-me para os pastéis de Belém,

Tenho lá uma quantidade de coisas que fazer,


E além do mais não posso vir aqui

Sem provar aquele som estaladiço.

Aquele açúcar, aquela canela, aquele calor.


É que sabe, dizem que nasci aqui há sessenta e tal anos,

E levavam-me sempre ali. Gosto sempre muito.




voj, porto, 30 dezembro 2010

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