Local: Centro Unesco do Porto R. José Falcão, 100 15 h.
colabaração da Fundação Eng.º António de Almeida, a quem muito agradecemos.
Conferência
IMAGEM; REPRESENTAÇÃO E EMANCIPAÇÃO EM RANCIÈRE
A relação entre a potência e o acto, entre o possível e o real, ocupa um lugar cimeiro na história ocidental. Desde Aristóteles que potência e acto se inter-relacionam segundo uma dialéctica de oposição e vinculação. Sem desvirtuar esta representação, é nossa pretensão desviar o foco de análise para a experiência da impotência e sua relação com a acção. Partindo do conceito rancièriano de sensível partilhado, ensaiaremos pensar sobre o complexo processo de captação de imagem e sua conversão em representação. Algo acontece no encadeamento de imagens que actualiza a própria imagem e transforma um acontecimento sensível num Outro. Da experiência da textura do sensível de um Outro acontecimento ao poder individual de associação e dissociação face à imagem que se impõe, tentaremos pensar sobre a possibilidade de cada um, enquanto espectador, desarticular o real e, consequentemente, de se emancipar.
Contudo, dada a complexidade do assunto, e sendo resultante de uma primeira aproximação, parte do que se exporá terá um cunho meramente provisório e “ensaístico”.
Maria José Barbosa
Doutoranda em Filosofia na Faculdade de Letras da UP.
Procurar «o movimento da curva», posicionar-se no «entre», no «estar imediatamente antes / Do que vem imediatamente depois», deixar o corpo, que está no turbilhão da curva, deflagrar e tecer o próprio sudário: assim nos chega Electri-cidade, o último trabalho poético de Vítor Oliveira Jorge, que reúne, em 260 páginas, textos longos em verso e prosa poética. Assumidamente metapoética, esta poesia busca a elasticidade do pensamento, a soberania da imagem, sendo a acção mobilizadora enunciada claramente no texto: «Criar uma espécie de tensão; partir de terra em terra; montar a tenda, repetir a cena, variar as luzes», «representar que nem um louco», «com os dentes todos pretos de tinta. Dando mordidelas textuais no ar». O resultado é a «hemorragia de versos, / Como longas escadarias, / Cada degrau pedindo outro, / Cada sala desembocando / Numa próxima, de outra cor. / Cada imagem apresentando outra imagem» (p. 97), em estilo vertiginoso, esfuziante e torrencial, patente também no desenho estrófico, com versos de tamanho muito desigual. «Por que nervo passa este movimento? / Por onde se pode começar a esquadrinhar / Esta geografia?» (p. 162). E começa-se pelo corpo, onde se ancora, fortíssima, esta poesia: o corpo antigo que é noite e quer ser iluminado, a «escaldar / de luzes e reflexos e notas e sons, que gargantas / Espalharam no ar denso ao longo dos séculos», esquadrinhado em círculos e espirais, poema após poema, muitos deles afigurando-se-nos como paráfrases de outros – e estará aqui um aspecto negativo deste compêndio, pela ideia que se nos agarra de poemas que seriam projecto ou estudo doutros, e que uma revisão e selecção cuidadas seguramente eliminariam para conferir homogeneidade à colectânea. A explosão do corpo espraia-se por «arquitecturas» que o envolvem e que configuram o seu drama: o quarto, a cama, paredes, tectos, praças, «o enxadrezado do chão», recantos das esquinas, drama bem patente neste «A força das horas»: […] as manhãs às vezes começam ao contrário, como se fossem noites atrasadas. a cama é então um lugar de conforto e de martírio, confundidos no mesmo corpo, na mesma penumbra. há um desalinho no passado e no futuro. e no presente as pernas cruzam-se sem se encontrarem. os lençóis suam. um peso cai das roupas estendidas, dos dias anteriores, da opacidade das janelas, onde não se roçam pombas, Nem se abrem candeeiros. apenas fragmentos se erguem acima do colchão, à procura […] (p. 11) Passento, o corpo é enredado no frenesim da criação poética: «odor que excita as narinas», tensão de ossos, músculos, tendões, uma «máquina tremenda, uma vontade / Do corpo vivo, esticado, com luzes / Nas extremidades: / Com luzes nos pés, nas mãos, // Um corpo todo aberto, / Todo erguido no vento» (p. 137), com que se procura, afinal, uma respiração, dito assim em belíssimos versos: O corpo odeia as superfícies, o corpo Foi feito para voar. Mas o maldito peso Prendeu-o ao solo, e o maldito tempo Colou os dias uns aos outros. (p. 77) Do corpo, em cruzamentos, entre «Trapézios», destacam-se as mãos, os pés e o centro. Das mãos saem «estradas», «escadas», «veias», «velas / que os pássaros cruzam / furando os panos», e o texto «acaba sentando-se / no fundo de si mesmo», no chão enigmático que é a folha branca do poema: «passaram-se de facto / aqui / já muitas, talvez demasiadas, coisas! // e um emaranhado de linhas / pousa no chão» (p. 85). Ostentando a sua «nudez total», está a planta do pé, o «pé terrivelmente nu sobre as superfícies». O centro é emanação, cópula, luxúria, «esperma», «vulva», a «intumescência» dos lábios, com a palavra a almejar o poder ilimitado, como uma «cerejeira coberta de frutos brilhantes e carnudos, vermelhos na sua totalidade prestes a rebentar de dentro de si mesma» (p. 133). Também assim se edificam os três elementos – cântico, culto e altar – do Grande Segredo da palavra, da «Flor» que, alucinada, «cresce sobre a coluna» para Dizer, ao mesmo tempo que foge «para dentro / de um cabelo enorme», intacta, «porque todo o seu íntimo / Está na reserva inviolável», numa conclusão a ressumar o esforço de Orfeu na sua descida ao inferno para reunir, no canto, a sua dispersão: «Subimos todos conduzidos / Pelo baixo profundo / Do Segredo»; trata-se do «Grande Desejo» – e «desejos e apetites são asas», na formulação de Novalis – de «estoirar com os balões solitários», todavia com a consciência de que se «caminha para o desconhecido», dito assim, num texto em prosa: as noites adensam-se para dentro de si mesmas mais que os dias, porque está escrito: não olharás para dentro das janelas. Podes interrogar-te sobre quem estará por detrás, por dentro, de cada janela apagada, ou acesa. Mas jamais saberás quem é. (p. 130) Finalmente, no corpo, e por via dele, veicula-se a noção da escrita como sacrifício: «sempre com o mesmo fervor do centro» a mesma ânsia de janelas acesas em pleno dia, subir o turbilhão para se ir ter a um lugar que não se conhece, ou encontrar o objecto da demanda «como vestígio, um olhar entre dois pontos de interrogação»; é o corpo entre corpos na pista dos sacrificados; é o desejo de dispersão e aniquilamento do corpo que «assoma às varandas, para se evaporar», se diluir com a atmosfera, se volatilizar: «É o momento das janelas, do trespasse do corpo através dos espelhos. // Por que não tínhamos inventado isto antes, afinal, por que percorre-/ mos tão longo caminho sobre gumes de obsidiana, quando os pés se / podiam desmaterializar!» (p. 256). São focagens e desfocagens de uma deambulação consciente de ter de arrostar com a solidão, e se apazigua encontrando o «Ouro» na simplicidade do seu lar, a sua toca no fundo duma rua sem saída, lugar de «paz infinita», referido num texto de carácter biográfico titulado, precisamente, «Ouro» (p.169). Na assunção da nudez absoluta, surgem textos como este: […] trago-te o meu coração Arrancado ao peito, com veemência, Com violência E estendo-o à tua surpresa Como um seixo do rio, macio, suave, Limpo. Tão limpo, tão nu. Eis o meu Sagrado Coração Desprevenido. (p. 70) «As curvas são feitas para isso / Para nos colar ao momento seguinte / E como gatos espetarmos o focinho / Nessa procura obsessiva», lê-se neste Electri-cidade. «O poder de tornar as obsessões, que são experiências enérgicas do mundo exterior e interior, em formas tendentes a dispor-se numa forma fundamental, isso é o acto por excelência poético», diz Herberto Helder. Vítor Oliveira Jorge procura que a palavra – esse gesto «com que se atam sentimentos» e se desnuda a alma – seja a voz fundamental, e esculpe um canto lírico com lugar próprio na actual poesia portuguesa.
A propósito do recinto monumental de Castanheiro do Vento
(V.ª N.ª de Foz Côa) (1)
por
Vítor Oliveira Jorge (*)
João Muralha Cardoso (**)
Leonor Sousa Pereira (***) &
António Sá Coixão (****)
Resumo
Os autores fazem um balanço dos seus conhecimentos actuais sobre o sítio de Castanheiro do Vento, elaborando considerações sobre a sua cronologia (apoiadas em datas de C14) e sobre as suas técnicas construtivas, fazendo ênfase na importância da argila. Apelam, com vista à interpretação destes espaços pré-históricos, para uma arqueologia mais atenta aos dados da antropologia cultural.
Palavras-chave
Calcolítico; construção em terra (argila); recintos como microcosmos.
Abstract
The authors present a synthesis of the results of the work made until today in the prehistoric site of Castanheiro do Vento. They show new data about chronology (based on C14 analysis) and they make some considerations about the importance of the architectures based on clay. They appeal to an archaeology more attentive to the data available in the field of cultural anthropology, in order to get a more interesting interpretation of these prehistoric spaces.
Key-words
Copper Age; clay architecture; precincts as microcosmos.
“Não há em África e Hispânia paredes de barro, a que chamam de molde, porque são levantadas, não tanto por construção, mas por enchimento entre duas tábuas, as quais podemdurar séculos por serem imunes à chuva, ao vento, ao fogo, sendo mais fortes do que qualquer cimento? Na Hispânia ainda estão à vista as atalaias de Aníbal e as torres de barro levantadas no alto das montanhas.”
Plínio o Velho, História Natural, livro XXXV(2)
“A história da construção em terra é mal conhecida. O interesse por este material, considerado antigo e medíocre, foi eclipsado pelo que se concedeu à pedra ou à madeira, materiais mais “nobres”.Foi contudo a terra que ficou associada às épocas decisivas da revolução urbana e que serviu tanto a realidade quotidiana como a de prestígio das mais gloriosas civilizações da Antiguidade. São testemunho disso numerosos achados arqueológicos de muitas regiões. Os estratos de tempo não conseguiram apagar as provas acumuladas, que apenas ficaram dissimuladas. A época actual cuida dos seus vestígios: revelam-se ruínas e e faz-se o seu levantamento, classificação, protecção e restauro. Quanto mais remontamos no curso da história mais a terra parece ser o material privilegiado pelo homem construtor, das eras mais longínquas até aos nossos dias.”
Hugo Houben & Hubert Guillaud, Traité de Construction en Terre, p.18
O. Palavras prévias
No Alto Douro, o plantio de vinhas, o caminho de ferro e outros traçados lineares (estradas e acessibilidades de todos os tipos), as barragens, e finalmente o plantio de eucaliptos têm destruído, ao longo dos séculos e até ao momento em que escrevemos, muito do património pré.histórico da região. Lamentável é que, antes de tais trabalhos, não tenha havido uma avaliação prévia de uma riqueza que já lá estava, tratando-se o solo, o território, como um “inerte natural” sem valor histórico, em manifesta miopia relativamente à profundidade, no tempo, da experiência humana sobre o espaço e suas marcas, como o Côa mostrou. Por falta de cultura humanística (um dos défices do nosso país), e ânsia de “desenvolvimentismo”/benefício a curto prazo, essa consciência ainda só chegou a uma minoria. Havemos de nos arrepender umdia, como portugueses, de tudo o que perdemos na nossa vontade de modernização apressada.
Mas esta “perda patrimonial” foi um dos preços que (diríamos inevitavelmente) pagámos pela chegada tardia da democracia ao nosso país, e seu corolário, a cidadania europeia, com tudo o que isso implica de ajuste de padrões de vida tradicionalmente mediterrânicos a uma ideologia e cosmovisão cujos eixos sempre se situaram mais a norte.
Os países europeus com democracia consolidada há muito estruturaram os seus serviços patrimoniais e enraizaram uma consciência pública nesta matéria. Todavia, as depredações em relação a tudo o que não é prestigiante à primeira vista, e monumental, ocorrem evidentemente por toda a parte. Por outro lado, se nos países mediterrânicos com “grande património”, e uma tradição turística para ele voltada – Espanha, Itália, Grécia – os benefícios económicos da conservação e valorização são evidentes, é também óbvio que muito se destruíu e destrói no campo da arqueologia pré-histórica, e das arquitecturas históricas – de todas as épocas - menos monumentais, parentes pobres do “património” e vítimas fáceis e mudas do “desenvolvimento”. Veja-se como a mais universal das formas de construir – nomeadamente na área mediterrânica – a arquitectura de terra – tem sido tratada tanto por historiadores, como por “patrimonialistas”, ou arquitectos, virados para as “obras de prestígio” em pedra, e modernamente em betão.
O local de que tratamos – ou melhor, o que dele resta, miraculosamente salvo dos tentáculos do processo civilizacional, económico, mas sobretudo mental, descrito - é um sítio monumental – a seu modo - dos períodos convencionalmente chamadosCalcolítico e (para utilizar uma nomenclatura tradicional) Bronze Antigo e Médio (3º, e parte do 2º milénios a. C.) . É um local que testemunha como há cinco, quatro mil anos se construíam sítios que permitiam congregar pessoas e comunidadese trabalhar identidades e formas de coesão em sociedades sem aparelho de Estado.
Não eram já comunidades apenas de caçadores-recolectores, não eram ainda sociedades com uma estrutura formal de poder político – mas todo o seu interesse, absolutamente fulcral para a história da humanidade, e não apenas para a história local, reside precisamente nesse facto, de serem formações sociais de transição. No fundo, sociedades de agricultores/pastores com uma metalurgia (do cobre) ainda incipiente (as quais noutros pontos da Europa chamaríamos apenas “neolíticas”), que sem o saber prepararam, durante milénios, a domesticação do espaço em que se viriam a instalar as comunidades hierarquizadas/estratificadas de metalurgistas/guerreiros do Bronze Final e do Ferro, as quais por sua vez se confrontaram com a colonização/aculturação romana, de que ainda hoje somos directos descendentes.
O que estudamos aqui – no Castanheiro do Vento e em locais semelhantes – são sociedades-outras, com uma cosmovisão, valores e representações do mundo, da sociedade, da natureza, do espaço e dos objectos radicalmente diferentes dos nossos, como os dados da antropologia cultural/etnologia nos deixam adivinhar. Abordá-las não é apenas uma questão de conhecimentos técnicos de arqueologia de campo, completada com contributos das ciências naturais e exactas; não é somente atribuir funções a estes locais e reparti-los por “fases de ocupação”, dando uma cronologia a cada uma. Não estamos aqui perante uma ciência natural, mas perante uma ciência social e humana, com todo o modo específico de pensar o “humano” que isso pressupõe.. Estudar estas comunidades implica uma formação humanística, e em particular antropológica, ou seja, por um lado um conhecimento das técnicas de manipulação da matéria que estão aqui referenciadas (ao nível da arquitectura, nomeadamente), e por outro o quadro dos universos mentais envolvidos, tal como o podemos deduzir das centenas de sociedades comparáveis (em termos gerais) estudadas pela etnologia. Sempre com a precaução e o cuidado de perceber que nenhuma sociedade é a réplica de outra (ao contrário do que se passa no mundo natural ou físico) e que nenhuma sociedade actual, ou sub-actual,estudada pela etnologia, é um “paralelo”, tomado no seu conjunto, para uma comunidade pré-histórica. Ora, precisamente porque não podemos “colar” realidades globais estudadas pela etnologia às materialidades exumadas pela pré-história, é que temos de nos precaver contra o perigo dos paralelos desgarrados, ou, como diria Leroi-Gourhan, de construir uma imagem do homem pré-histórico como uma espécie de “travesti”, ou mescla, de “índio” da Amazónia, de montanhês da Nova Guiné, de aborígene australiano, etc.
Investigar estas sociedades e promover o seu conhecimento pelos cidadãos é pois difícil, mas é um acto de justiça perante os primeiros homens e mulheres que, na sequência dos construtores megalíticos, deixaram estruturas monumentais no nosso território. E, para nós, investigadores, é uma tomada de consciência histórica a que não nos podemos eximir. A nível “macro”, a história é a narrativa da continuidade, e não podemos deixar em branco os milénios decisivos em que a humanidade (para bem e para mal) se firmou como “produtora” e se atribuíu como “programa” a domesticação não só de si própria e das plantas e animais, como, conceptualmente falando, de todo o território. É um passo importantíssimo no processo histórico, o da afirmação das primeiras sociedades camponesas.
Genericamente, a nível peninsular, e como é sabido, o Calcolítico situa-se entre meados do 4º milénio e meados/segunda metade (c. de 2.300/2.200) do 3º milénio a. C. Quanto à Idade do Bronze, é hoje tendencialmente dividida em dois “blocos”, um primeiro entre 2.200/2.3.000 a. C. (que abarca as fases dantes denominadas “antiga” e “média”) e c. de 1.300/1.200 a.C., data a partir da qual se considera uma nova fase da “história”, o Bronze Final.
Calcolítico e Idade do Bronze são “compartimentações” absolutamente convencionais nesta região, como parecem demonstrar os nossos conhecimentos, sobretudo colhidos em 14 anos de trabalho no sítio próximo de Castelo Velho de Freixo de Numão, em escavações dirigidas por Susana Oliveira Jorge, da FLUP, as quais abriram uma nova era na perspectivação deste tipo de estações arqueológicas.
O Castanheiro do Vento fica sobranceiro, por oeste, à ribeira da Teja (afluente da margem esquerda do Douro) cuja veiga fértil domina.
Sendo um sítio excepcional pela sua dimensão e posicionamento, do mesmo tipo genérico do já citado Castelo Velho de Freixo de Numão (no mesno concelho), encontra-se ainda numa fase incipiente de estudo, pois este só começou em 1998, e com grande escassez de meios materiais. Os trabalhos têm sido autorizados e apoiados pelo IPA, no contexto do projecto EVASAFREN, e actualmente do ARQUEHORFREN (2002-2005).
O carácter relativamente muito bem conservado das arquitecturas da sua parte mais alta faz deste sítio um complemento muito importante do Castelo Velho, como fonte de informação científica e elemento de comparação, como património monumental a integrar num ou vários circuitos turísticos do concelho e da região, e até como escola de arqueologia prática.
De facto, desde 1998 que o sítio recebe estudantes de várias universidades, nomeadamente da do Porto (em cuja Faculdade de Letras foi inaugurada em 1999/2000 uma licenciatura de Arqueologia que implica obrigatoriamente a participação activa de alunos em escavações), para ali aprenderem, na prática de campo, a serem investigadores – um serviço que vimos prestando à comunidade, sem que a Universidade até hoje tenha assumido as suas responsabilidades no processo.
Em geral, para que a investigação progrida e chegue ao ponto de tornar interessante a visita ao local de não especialistas (para além da paisagem que dele se disfruta) é preciso que as instâncias decisoras locais e nacionais saibam corresponder ao esforço já feito e dar-lhe novo impulso, através de um comprometimento sustentado com os investigadores empenhados neste trabalho.
A autarquia, o Ministério da Cultura, e a Universidade do Porto (para a qual, repetimos, esta é uma “estação-escola”, um serviço prestado aos seus alunos) têm de passar à acção concreta de comparticiparem no esforço financeiro do estudo e valorização do Castanheiro do Vento. Se as escavações de 2003 estão asseguradas, já em relação às de 2004 apenas contamos com um apoio simbólico do Instituto Português de Arqueologia (ao abrigo dos projectos plurianuais - PNTA).
Este complexo monumental da Pré-história recente precisa de facto de ser escavado de modo mais extensivo, e de ter em paralelo um processo de conservação e restauro, por forma aos visitantes poderem admirar o repositório de dados que ali se encontra relativo às formas de construir com pedra, argila, e materiais vegetais, e de organizar um micro-espaço monumental, há 5.000 anos.
Outros elementos informativos, de carácter prático ou ilustrativo, podem ser encontrados no portal: www.freixonumao.pt.vu, cuja construção devemos à colaboração desinteressada de colegas do Instituto Politécnico de Tomar.
1.Apresentação genérica da estação
Os dados que constam desta alínea nada pretendem ter de particularmente original: já basicamente figuram noutros textos dos autores sobre o mesmo tema. Trata-se de uma descrição genérica introdutória da estação.
O sítio arqueológico do Castanheiro do Vento encontra-se no território da freguesia de Horta do Douro, no concelho de Vila Nova de Foz Côa, distrito da Guarda, NEde Portugal.
As coordenadas geográficas de um ponto central da estação, seg. a “Carta Militar de Portugal” na esc. de 1:25000 (folha 140), são as seguintes:
41º3’49” Lat. N.
7º19’18” Long. W. Gr.
O sítio localiza-se no alto de um morro xistoso de planta sub-circular, situado à altitude absoluta de c. de 730 m., e convencionalmente delimitável, na base, pela curva de nível de 680 m.
O alto, que se pode circunscrever pela curva de nível de 720 metros, apresenta um marco geodésico, a sul (alt.: 723 m.), numa área que se encontra lavrada. A norte, apresenta uma zona ligeiramente mais elevada, aplanada, coberta de vegetação arbustiva, com diversos amontoados de pedras dispersos, os quais são restos de estruturas pré-históricas (ou, eventualmente, em alguns casos, posteriores) mais ou menos desmontadas.
Tanto quanto nos permitem deduzir as seis campanhas de escavações já realizadas (entre 1998 e 2003, mas num total de apenasc. de noventa dias úteis), um aspecto fundamental daquelasestruturas pré-históricas recentes é a existência de um mais que provável recinto, delimitado por um ou mais muro(s) ou“muralha(s)”, provido de um outro grande recinto anexo, ambos com estruturas ou células sub-circulares na respectiva periferia (que, apenas convencionalmente, designamos “bastiões”), das quais foram já exumadas cinco: A, B, C , D (recinto principal) e E (recinto anexo, ou “secundário”), havendo uma sexta provável (F) (recinto anexo também).
Sublinhe-se, como fizemos em trabalhos publicados anteriores, que utilizamos a palavra “bastião” num sentido puramente tipológico-formal e não funcional, e portanto não pretendendo com isso induzir qualquer interpretação do sítio como “fortificação”, na linha da arqueologia funcionalista tradicional, o que, do nosso ponto de vista, seria de um simplismo hoje inaceitável.
É óbvio que estamos perante um sítio do tipo “recinto monumental”, com prováveis plataformas também monumentalizadas (neste caso, viradas à ribeira da Teja, afluente do Douro), como acontece no Castelo Velho de Freixo de Numão. É também para nós evidente, tendo em conta os dados que permanentemente resultam do estudo sistemático do Castelo Velho desde 1989 (da responsabilidade, como dissemos, de Susana O. Jorge, da FLUP, e sua equipa) que estamos perante locais complexos, multifuncionais, que conheceram toda uma história, e portanto serviram de provável cenário fixo a uma grande multiplicidade de cenários semi-fixos (estruturas perecíveis) e móveis (constituídos pelas próprias pessoas, seu comportamento, objectos manipulados de muitos tipos, etc.). Se quiséssemos encontrar uma palavra-chave para o que aqui aconteceu, neste contexto construído, seria ade “deposições”; é de facto mais interessante falar a propósito destes locais de actos de deposição do que de “fases” como a arqueologia estratigráfica tradicional tende a fazer (R. Bradley, inf. pess.).
O local data do Calcolítico e, talvez também, da primeira parte da Idade do Bronze (cronologia possível - entre c. de 2900 e 1500 a. C.). Porém, a “ocupação” posterior ao Calcolítico está ainda pouco bem documentada; a ter existido, não parece poder ter representado qualquer descontinuidade importante com a fase anterior; mas esse é um assunto totalmente em aberto, a esclarecer em futuros trabalhos.
De notar que um fragmento de peça em electro encontrado “in situ” em 2001 (camada 2 - “estrutura de combustão 1”, para sul do “bastião” B) aponta para o Bronze Final, ou mesmo para fase mais tardia (Idade do Ferro) pelo que se configura a hipótese da estação ter tido uma mais ampla diacronia.
De facto, várias datas de C14 tardias, que caem claramente na Idade do Ferro (entre os sécs. VIII e IV a. C.), apontam nesse sentido; algumas delas estão relacionadas com a referida “estrutura de combustão” “encostada” ao “bastião” B, e manifestamente posterior em relação a ele. Torna-se possível visionar as “estruturas de combustão” que parecem existir no interior do recinto, perto do muro que o circunscreve (sem que a área escavada nos permita ainda delimitá-las correctamente) como correspondendo a aproveitamentos tardios – proto-históricos? - das ruínas pré-históricas anteriores.
Dado ser presumível que já então estas estariam reduzidas a amontoados de pedras, e dada a ausência de materiais – nomeadamente cerâmicos - atribuíveis à Idade do Ferro (se exceptuarmos o fragmento de jóia a que acima aludimos), pode levantar-se a hipótese de se ter tratado de actividades não contínuas, de aproveitamento esporádico (fabrico de carvão?) dos referidos amontoados de pedras, que juncariam o local.
No entanto, esta eventual utilização tardia não diminui a impressão de que estamos perante um local basicamente calcolítico, com prolongamento na chamada Idade do Bronze (para obedecermos a uma divisão de “épocas” que, nesta zona, como o Castelo Velho tem mostrado, é bastante artificial).
No seu conjunto, Castanheiro do Vento, apesar de truncado pelas lavras (sobretudo para plantio de eucaliptos) é um monumento enorme, relativamente bem conservado na sua parte nuclear, cujas semelhanças genéricas com Castelo Velho de Freixo de Numão, embora a maior escala, são evidentes. Mas, por outro lado, também se começa a acentuar uma certa especificidade de cada um dos dois sítios, o que aliás seria de esperar com o prosseguir dos trabalhos.
Por isso, o maior ou menor grau de similitude entre Castelo Velho de Freixo de Numão (estação-tipo, que obviamente nos serve de referência, mas também provavelmente virá a considerada, no futuro, como o sítio característico de toda uma série de outros monumentos arqueológicos, cuja maior ou menor abrangência espacio-temporal estáainda por definir) e Castanheiro do Vento de Horta do Douro terão de ser reavaliados à medida que as pesquisas prosseguirem.
2.Importância do Castanheiro do Vento, e das reflexões que ele permite, para a problemática dos recintos monumentais da Pré-história recente - algumas notas preliminares
O que resta do sítio, apesar de relativamente bem conservado,
pode ser uma pequena parte do que este foi: nós, pré-historiadores, temos de ter uma grande atenção precisamente àquilo que não é mais evidente nos locais, que deve ter perecido devido às características dos materiais empregues, e às utilizações posteriores, que muitodanificaram tais locais. O esforço do pré-historiador, na sua faceta mais “nobre” (menos descritiva e particularista) é um exercício de imaginação – especificamente científica – retrospectiva. Imaginação sintetizadora e de algum modo “compensatória” da (proporcional à) intensidade das “ablações” que os milhares de anos provocaram nos sítios.
Onde vamos buscar a “lógica” de tal capacidade imaginativa? Trata-se de tirar todas as ilacções possíveis de um conjunto de materialidades que sabemos serem um resquício, a partir da consideração, o mais exaustiva possível, das condicionantes e das possibilidades que essas materialidades sugerem, sem nos atermos ao que vemos nem nos refugiarmos numa pretensa “objectividade” e numa atitude de “pseudo-prudência” que disfarça uma verdadeira capacidade para abordar estes locais. É importante escavar muito, com atenção às peculiaridades técnicas, construtivas, e espaciais dos sítios, por um lado, e por outro ler o maior número possíveis de trabalhos de antropologia cultural ou social, sobretudo de comunidades extra-europeias que não tenham conhecido o que convencionámos designar “civilização”, ou “Estado”, ou “sociedades complexas”.
A antropologia, a que já atrás nos referimos, não nos fornece um conjunto de receitas, nem de paralelos desgarrados. Nada há de mais descabido e ultrapassado do que adoptar tal postura metodológica. Mas a experiência de “sociedades outras”, mesmo recentes, pode ser extremamente útil para abrir a nossa imaginação quanto às possibilidades interpretativas de um local. É que essa abertura significa também uma eliminação de muitas hipóteses absurdas, inverosímeis. O conhecimento tanto progride por confirmação do que por descarte de hipóteses que não fazem sentido, que não funcionam, quando contrastadas com a experiência. A intuição, educada por esta dupla faceta, teórica e prática, de confronto com o inesperado, é a grande fonte do conhecimento.
Voltado como está à ribeira da Teja, o Castanheiro do Vento, se tivesse estruturas importantes nessa encosta leste – paredes, taludes, por exemplo, como é muito provável - criaria um efeito cénico, visual, de grande impacte no vale. Ver-se-ia de uma vasta zona como um verdadeiro monumento: mais elevado, com uma cor contrastando com a vegetação de fundo, permitindo inclusivamente a quem estivesse a cotas mais baixas vislumbrar o movimento de pessoas e actividades lá em cima. Seria necessariamente um sítio com uma certa “aura”. Inclusivamente a maior ou menor proximidade espacial em relação a um local destes deveria estar prenhe de conotações simbólicas.
Se, como imaginamos, as estruturas assentes em pedras fossem essencialmente moldadas em argila – e/ou (conforme as áreas) em materiais perecíveis pela mesma argila revestidos - isso não só exigiria, como permitiria, uma modificação regular do aspecto do local, dando-lhe configurações que mudariam com o tempo. A argila permite arredondar formas, tanto de paredes como de vãos, de passagens. Mas é também um eventual bom suporte para uma grande variedade de decorações, como acontece com a cerâmica de vasos. Uma população que tão frequentemente decorava as suas olarias faz suspeitar de toda uma homologia entre essas decorações e outros padrões de representação do micro-cosmo (sociedade) e do macro-cosmo (universo) que deveriam ter existido. Por outro lado, além de ser um bom isolante (protector do frio e do calor, mantendo as temperaturas mais constantes) a argila permite, ao revestir a pedra e outros materiais, moldar uma superfície externa regular, cujo contacto é suportável e funcional (para não dizer confortável, macio), e não áspero, acutilante (ou até perigoso), como o de ramos ou arestas de rocha cortada (nomeadamente se corresse o perigo de desmoronamentos sobre as pessoas). Os xistos locais são tão friáveis e pouco ajustados a construção regular, que não permitiriam, sem a ajuda essencial da argila, a erecção de arquitecturas monumentais minimamente estáveis. Aquilo com que nos deparamos, em regra, são com os socos pétreos de muros de argila, ou seja, com algo que seria quase como uma espécie de traçado, no chão, da planta do sítio, ou melhor, de planta do palimpsesto que se foi instalando naquele espaço devido às múltiplas transformações arquitectónicas que tão plástico material permitia. E como não temos quaisquer vestígios de adobes (tijolos crus), ou de outras formas mais sofisticadas de utilizar a arquitectura de terra, temos de concluir que as paredes eram possivelmente de taipa (ou sistema afim), eventualmente complementada (reforçada) com postes de madeira. Precisamos muito é do conselho, dado “in loco”, de arquitectos da terra (ainda raros), de etnólogos, e de mestres pedreiros habituados a trabalhar com a argila (cada vez mais escassos, por ser uma “arte” milenar que está a desaparecer)
É provável que o dispositivo arquitectónico tenha mudado muitas vezes, restando saber se essa modificação se faria de raiz (um “design” de conjunto substituindo outro, e assim de seguida – para já nada nos indica isso, mas escavámos uma área pequena em relação ao todo estudável), ou se se faria paulatinamente, numa espécie de reordenamento constante das estruturas, dos espaços livres ou fechados, das fachadas externas ou internas, etc.
À medida que as escavações prossigam, estamos certos de que iremos tendo mais bases para raciocinar sobre como o sítio pode ter sido concebido e transformado ao longo do tempo, e, com a ajuda nomeadamente de etnólogos e arquitectos, iremos conseguindo perceber melhor as técnicas construtivas e as representações espaciais que poderiam estar ligadas a este tipo de dispositivos arquitectónicos. De qualquer modo, o assunto continuará a ser discutido nas alíneas seguintes. A partir do momento em que abandonamos a ideia de que estamos aqui perante “povoados fortificados”, e de que esta era obrigatoriamente uma arquitectura da pedra, ligada a funcionalidades primárias, abrimos o leque das interpretações e das problemáticas; e, com essa abertura, cremos que promovemos também o interesse de outros colegas por uma questão que afinal não é dos arqueólogos, mas os transcende largamente.
É um assunto que obviamente não diz respeito apenas a Castanheiro do Vento ou a Castelo Velho, ou ao Alto Douro em particular, mas afecta uma vasta rede de sítios peninsulares morfologicamente afins. Ainda há pouco tempo tivemos a possibilidade de visitar um deles na companhia da colega da Univ. de Salamanca Prof.ª Socorro López Plaza, nas imediações daquela cidade, e onde a sucessão de plataformas, em torno de um núcleo monumental central que aproveita um afloramento quartzítico, está extremamente bem conservada. Simplesmente, aqui estamos perante uma elevação integrada na superfície aplanada da Meseta, enquanto que na zona de Foz Côa, mais afectada pela tectónica, estes locais nos aparecem em elevações alcantiladas permitidas pela própria geomorfologia. Não obstante, a visibilidade que se obtém sobre a paisagem em redor é sempre impressionante, seja essa paisagem predominantemente plana (Meseta), ou dominantemente ondulada (caso de Foz Cõa e áreas vizinhas, para ocidente). Há todo um trabalho transfonteiriço, e de longo fôlego, a desenvolver nesta região, para não falar de outras!
3.Técnicas de construção: alguns tópicos
Os trabalhos até hoje efectuados em Castanheiro do Vento permitem-nos, com certa segurança, começar a conhecer o sítio ao nível da sua estrutura arquitectónica e fazer a descrição de algumas das técnicas construtivas nele utilizadas. Apresentemo-las breve e esquematicamente, mas desde já, afirmemos claramente: este tipo de sítios não foi basicamente construído em pedra, como muitos arqueólogos tradicionalmente apresentam, mas com o próprio solo (terra), mais especificamente a argila, cujas propriedades são bem conhecidas.
Rocha de base, ou substrato geológico, e afloramentos do mesmo - Os afloramentos, provavelmente abundantes, serviriam não só como matéria-prima, mas também como peças importantes (pré-existências arquitectónicas) para a delineação do local. Estes afloramentos seriam “esculpidos”, cortados, ou deixados mais ou menos intactos, mas servindo um plano de construção prévio.
O substrato geológico era em muitos locais afeiçoado, e noutros seria também parcialmente recoberto por uma argila que tinha como função nivelar o local (quando se tratasse de superfícies horizontais) ou participar como elemento plástico muito importante na modelação de estruturas de encosta (nomeadamente taludes/contrafortes, eventualmente rampas, etc.).
Argila- A argila era, como dissemos, um material de construção qualitativa e quantitativamente decisivo. Estava disponível no local, pois resulta da degradação dos xistos, mas também seria trazido de barreiros mais ou menos próximos (avistam-se com facilidade alguns do alto do sítio). A argila terá tido quatro tipos de utilização:
1- Como colmatação / nivelamento, onde em muitas situações sofreu um processo de compactação acentuado. Em certos casos encontramos níveis de argila mais ou menos espessos que estão a terraplanar, a regularizar a superfície do substrato.
2- Como “ligante” da bases pétreas, visível em processo de escavação no interior de algumas estruturas sub-circulares. Neste caso funcionaria quer como colmatação de irregularidades das pedras, quer como técnica de “acamar” melhor a sobreposição das lajes de xisto, ajudando a preencher ocos e a dar estabilidade às estruturas. Pelas suas próprias propriedades, a argila, ao secar, funcionaria como uma espécie de “cimento” (ou “argamassa”) elementar. Como afirmam claramente Houben e Guillaud (v. bibliog., p.38), e é do senso comum: “A argila tem o papel de cimento.”.
3- Como revestimento das infra-estruturas construídas em pedra, ou das super-estruturas que eventualmente fossem erguidas em materiais vegetais. Não é impossível que houvesse uma combinação de matérias-primas diversas, hoje difícil de perceber dado o carácter residual dos elementos de que dispomos..
4- Como técnica construtiva de paredes, sobre uma base, suporte ou peanhaem pedra, base essa que permitiria que a parede em argila não ficasse em contacto imediato com o solo húmido. Reduzidos que estamos hoje, em grande parte, às infra-estruturas pétreas, que nos parecem definir a “planta” fundamental do sítio, pensamos pouco como originalmente este seria sujeito a múltiplos afeiçoamentos formais graças à plasticidade da terra. As paredes provavelmente seriam erguidas numa modalidade de “taipa” (utilização de uma espécie de caixas entre as quais a argila era acamada, pisada, até compactar e secar, e que iam lateralmente compondo a parede), ou então ainda por processos eventualmente mais simples, sem taipais, como quem molda cerâmica à mão. Mas há múltiplos métodos possíveis, referidos por exemplo por Houben e Guillaud.
É de qualquer modo evidente que aquilo que encontramos são as bases pétreas, ou assentamentos, de muros ou paredes em argila, que, quando existissem, e de acordo com a sua altura, provocariam uma maior ou menor barreira visual em relação à paisagem envolvente, tornando muito significativa a localização das portas (a sua orientação azimutal). Trata-se de um assunto a desenvolver em futuros trabalhos.
Lajes de contrafortagem - Lajes de xisto radiais, directamente encostadas à zona basal externa das estruturas, nomeadamente em zonas de inclinação do terrreno. Estas lajes formariam “uma primeira linha” construtiva, com o objectivo de estabilizarem as estruturas. Seriam constituintes e estruturantes dos taludes. Estas lajes, por sua vez, eram suportadas por um sistema de outras lajes fincadas e/ou atravessadas transversalmente (ou seja, perpendicularmente às primeiras). Todo este sistema de contafortagem sucessiva, ou talude estruturado, serviria de contrapeso à força exercida pelo alteamento das estruturas.
Estruturas de contrafortagem- De uma forma geral seriam formadas por taludes, que em última análise suportariam a base dos muros e restantes estruturas. Apesar das escavações se encontrarem ainda numa fase embrionária, sendo desconhecido o “layout” da área monumental principal preservada, é de presumir que as encostas estariam monumentalizadas, com plataformas e taludes, os quais provavelmente circundariam (pelo menos em parte) o sítio, à semelhança do que acontece em Castelo Velho.
Outras estruturas- Para já estamos perante um recinto principal e um recinto secundário, anexo ao primeiro, desconhecendo a planta completa de ambos. A esses recintos, onde se notam passagens por vezes monumentais, adossam-se estruturas sub-circulares (“bastiões”). O facto da base dos muros de todas estas estruturas assentar em argila, contribuía para a respectiva estabilidade, tanto mais que esses muros seriam também em argila, e não em pedra. Se tivesse existido no passado uma estrutura murária pétrea, alta, então haveria acumulações relativamente volumosas provenientes de derrubes, o que não sucede. Aparecem sim taludes estruturados, tal como em Castelo Velho, tendo as estruturas em argila sido facil e rapidamente desfeitas pela erosão.
O facto dos autores tradicionais interpretarem este tipo de recintos como “povoados fortificados” com muralhas e outras estruturas em pedra, levava-os a não compreender as acumulações estruturadas de lajes no exterior, que tendiam a ver não como contrafortes, mas como derrubes – erro crucial, a nosso ver. Aliás, num bem conhecido video publicado pelo Colégio de França sobre o pré-historiador Jean Guilaine, a determinada altura um colaborador deste responde ao entrevistador explicando estruturas análogas àquelas que temos observado em Castelo Velho e em Castanheiro do Vento e descrevendo-as precisamente como “contrafortes”. O que se passa, por vezes, no processo de musealização/conservação dos sítios, é que há a tendência para retirar os contrafortes, por forma a mostrar ao público uma suposta ruína murária minimamente visível ou imponente, esquecendo-se as pessoas de que, na pré-história, estaríamos perante realidades invisíveis. Mostrar assim “paredes” que não eram mais do que socos de super-estruturas frágeis pode ser considerado uma mistificação,.mesmo que não intencional ou totalmente consciente. É uma concessão ao fácil e ao prestígio que a pedra tem junto do público e até junto de outros agentes da construção do património. Na verdade, seria muito interessante fazer reconstituições experimentais de muros em argila, neste tipo de sítios, pois serviriam até para perceber o tipo de durabilidade de tais estruturas e de consequente manutenção que exigiriam. Um muro em pedra e uma parede em argila (com toda a decoração que inclusivamente se podia apor a esta, como fizeram tantos povos africanos, por exemplo, da zona sub-sariana) nada têm a ver, conceptualmente, um com o outro. Importa que nos aproximemos dewstes monumentos do passado com algum respeito, ou, por outras palavras, com algum rigor científico.
4.Questões cronológicas
A nível peninsular, e em termos muito genéricos, a pré-história recente está dividida em períodos convencionais que, como já referimos, se balizam assim: Calcolítico (Idade do Cobre) – da segunda metade do IVº milénio a. C. a c. de 2.300/2.200 a. C. ; Idade do Bronze – de c. de 2.300/2.200 a. C. a c. de 1.300/1.200 a. C. (excluindo pois o chamado Bronze Final, que é já um outro mundo arqueográfico e, provavelmente, socio-histórico)
O sítio mais bem estudado e datado da região em que investigamos é, como se sabe e temos dito, Castelo Velho de Freixo de Numão.
Segundo S. O. Jorge (bibliog. cit. e inf. pes.), uma ocupação desse local, prévia à construção de qualquer tipo de recinto, pode – trata-se de uma hipótese - situar-se cerca de 3.000 a. C. em diante. Nessa época, os afloramentos de xisto teriam já sido utilizadoscomo “pedreiras”, mas não deve ter havido grandes modificações na fisionomia do local tal como “naturalmente” se apresentava. Uma hipótese alternativa seria ter havido já nessa fase (a partir de 2.900 a. C.?) um recinto, mas de fisionomia praticamente impossível de discernir, dadas as alterações posteriores que o local sofreu. De qualquer modo, a importância destas primeiras ocupações, e sua presumível complexidade (palimpsesto) só se tornou visível graças às intensas escavações que o projecto POC de valorização do sítio permitiu, nos últimos três anos (2001-2003). O que veio alertar para o grau de incompletude que a maior parte das escavações arqueológicas, nomeadamente em sítios como este, revestem, com raras excepções de todos conhecidas.
A “grande fase” construtiva documentada – a passagem de um sítio em larga medida “natural” para um local construído, “domesticado”, profundamente alterado - situa-se a partir de 2.500/2.300 a.C. Aí ter-se-á instalado o recinto superior, com o seu talude onde ele existe, bem como a “área avançada” que prolonga tal recinto para sul, a primeira plataforma (e, claro, respectivo talude) e ainda o murete leste, que circunscreve por esse lado uma larga faixa exterior ao recinto superior.
S. O. Jorge admite a possibilidade de pelos finais do 3º, inícios do 2º milénio a. C., se terem dado alteraçõe algo significativas, como o fecho de algumas “passagens” (entradas) no recinto superior e também a “condenação” de algumas estruturas.
Finalmente, cerca de 1.300/1.200 a. C. dar-se-ia o “fecho” ou “condenação simbólica” de todo o monumento, através, nomeadamente, da petrificação do local.
Quanto a Castanheiro do Vento, a lista das datas obtidas até ao presente encontra-se no quadro 1.
As observações efectuadas sobre este conjunto de datas deverão ser encaradas com reservas, e a sua discussão crítica deverá ser mantida em aberto, devido essencialmente a dois motivos:
a)Condições de recolha das amostras. Os carvões são relativamente raros em Castanheiro do Vento (como aliás já acontecia em Castelo Velho), sendo normalmente diminutas as quantidades das amostras.
Este facto, constatado durante os trabalhos de campo, levou-nos a pensar – tendo também em conta a escassez de verbas e o preço das datações por AMS - que a maior parte das amostras (senão a sua totalidade) seriam úteis apenas para análise antracológica (a qual, refira-se também, tem sido feita graciosamente por Isabel Figueiral, com todos os condicionalismos e atrasos que implica um trabalho que só pode ser realizado, em intervalos de outras tarefas, por aquela investigadora). Esse condicionalismo, associado à circunstância de termos de enquadrar muitos estudantes, nem sempre permitiu o rigor e a precisão na anotação dos micro-contextos exactos de cada amostra, como desejaríamos. Ora, se é verdade que quando se data uns carvões de madeira, data-se uns carvões de madeira, e só por inferência o contexto que se lhes associa, se aqueles carvões são em quantidade diminuta, isso também torna mais difícil (excepto em casos excepcionais) a sua articulação com um micro-contexto preciso.
Finalmente tornou-se viável, graças a verbas do CEAUCP (FCT) e também em parte à colaboração gratuita do laboratório de C14 de Madrid (CSIC), realizar um número significativo de datações, com o que de início, como se disse, não contávamos, tanto mais que, como dissemos, os trabalhos não se têm centrado tanto em questões diacrónico-estratigráficas, como numa definição prévia do “layout” geral do monumento (principais bases pétreas de estruturas). Para o falecido Fernán Alonso e para o seu continuador Antonio Rubinos vão os nossos agradecimentos pela colaboração prestada.
b) Não é possível definir com precisão em datas de calendário o período referente a cerca de 2900-2500 BC, devido às conhecidas oscilações que a curva de calibração efectua (STUIVER e PEARSON, 1993). Sete das vinte e oito datas disponíveis para Castanheiro do Vento abrangem esse período.
Tendo presentes os motivos atrás descritos, poderemos sugerir / discutir os resultados obtidos com vista a estabelecer uma primeira ideia da diacronia geral do sítio, que, mesmo genérica, é obviamente importante.
Acentue-se que por ora as camadas estratigráficas (mencionadas nos quadros que se reportam às amostras datadas) têm ainda um carácter provisório e não generalizável a toda a área intervencionada. Por convenção, tendo em vista que os trabalhos não se têm pautado por uma escavação em profundidade senão em zonas muito pontuais, por ora não relacionáveis entre si, e sem querer associar tais “camadas” a “fases” sucessivas de utilização do local, poderemos descrevê-las assim:
c. 1 – superficial, escura, com muito húmus e raizes de carrascos;
c. 2 –camada sub-superficial, acastanhada escura, ainda pouco compacta, de transição para a camada 3. Não temos para já, ao contrário de Castelo Velho, uma camada 2 bem evidenciável e consistentemente ligada a artefactos de tipologia que normalmente associamos à Idade do Bronze, embora esse tipo de artefactos esteja obviamente presente em Castanheiro do Vento;
c. 3 – fase principal de “ocupação” calcolítica ligada às estruturas pétreas, em geral de cor amarelada e com bastantes restos de artefactos “in situ”;
c. 3 b – camada de “ocupação” presumivelmente anterior a pelo menos algumas das construções pétreas analisadas, contendo por vezes materiais também de feição calcolítica.
c. 4 – substracto xistoso.
O local actual do Castanheiro do Vento terá começado a ser “ocupado” (“trabalhado” pelo homem), tal como o Castelo Velho, nos inícios do 3º milénio a. C. (2900-2800 a. C.)
Pode-se colocar a hipótese (correlacionando com as estratigrafias até agora conhecidas) de que – tal como na outra estação de Freixo de Numão - terá existido uma “ocupação” anterior às estruturas monumentais (ou então relacionada com outro tipo de estruturas por nós até agora desconhecidas, tendo em consideração a relativamente diminuta área já escavada). A baliza final destas “ocupações”, que poderão ter sido contínuas, situar-se-á em meados do 2º milénio a.C. (1600-1500 a.C.).
O murete delimitador do recinto, e as estruturas a ele adossadas supostamente suas contemporâneas, são neste momento muito difíceis de datar, embora possamos colocar a hipótese de a sua construção / utilização ter ocorrido a partir de 2500 a.C. e até cerca de 1900 a.C.
De uma forma geral as estruturas sub-circulares (“bastiões”), parece terem sido “condenadas” entre 1900 a.C. e 1600 a.C.. O que pode apontar para uma vigência relativamente curta de algumas dessas estruturas. A sua “condenação” (fecho intencional) foi realizada de formas diferentes de caso para caso, como por exemplo a colocação de lajes oblíquas paralelas umas às outras, dispostas “em escama”, na área interior do "bastião" D, ou a deposição de grandes lajes alongadas, juntamente com outras mais pequenas, nos “bastiões” A, B, C, e mesmo D, formando por vezes pequenos “nichos” que continham fragmentos de artefactos. Na parte interna do chamado “bastião C” existia um amplo “nicho com uma estela que era claramente de origem calcolítica, e que foi “absorvido” pela condenação posterior. Todo o local está aliás cheio de marcadores simbólicos de diversos tipos (“estelas”, rochas gravadas, etc.).
Entre 800 e 300 a.C., o sítio parece ter sido novamente utilizado (“estruturas de combustão”). Os vestígios desta utilização são perfeitamente visíveis no terreno ao nível de grandes conjuntos de pedras rubefactas, alteradas pelo calor, em acções que terão aproveitado, e ao mesmo tempo afectado, algumas das estruturas mais antigas.
Também não é de arredar a hipótese de que o sítio nos venha a revelar ocupações históricas, anteriores àquelas que, por serem manifestamente muito recentes e sem qualquer interesse patrimonial, eliminámos já: restos de uma construção, que afectou parte da periferia do recinto principal (praticamente reduzida a um muro e a um cunhal) desmontada na campanha de 1998, e ruínas de um abrigo (de pastores?) junto ao recinto anexo, desmontadas com o auxílio de uma máquina escavadora no final da campanha de 2003.
Em suma, até ao final desta campanha de 2003 possuímos apenas duas estruturas com o seu enchimento interior e as suas camadas subjacentes completamente escavadas (estruturas sub-circulares – “bastiões” – A e B), uma outra estrutura, mais recente, parcialmente analisada - designada estrutura de combustão I, além de outros dois “bastiões” (C e D) em adiantada fase de estudo.
A totalidade das datações até hoje obtidas incidem sobre estes locais, à excepção da data Ua-18038, da chamada “camada 2” da zona “interior” (para oeste do muro delimitador do recinto principal) do sítio.
Foram entretanto enviadas para Uppsala, para datação por AMS, onze novas amostras de carvão de madeira recolhidas durante os trabalhos do verão de 2003, provenientes do “bastião” D, e também do recinto secundário anexo ao recinto principal.
5.Palavras finais
Os arqueólogos da pré-história recente (expressão obviamente convencional que designa as sociedades pós-paleolíticas e ainda não estatais, ou seja, situadas “grosso modo” entre o Neolítico e o Bronze pleno) têm-se deixado muitas vezes arrastar para “visões do passado” que, atendidos os conhecimentos que a antropologia cultural nos confere, são desadequadas, a começar pela própria terminologia..Trata-se de pressupostos, ou pre-conceitos (no sentido etimológico) tomados como óbvios, como evidentes, e portanto como naturais e universais.
Ora, o que distingue as sociedades humanas, as “culturas”, é justamente a sua particularidade. De forma que nunca é possível justapor, a uma cultura determinada, uma observação feita noutra, sem prévios cuidados; e, por extensão de raciocínio, nunca é possível colar os nossos conceitos modernos às sociedades pré-históricas, sem fazer passar tal comparação, ou articulação (na verdade, inevitável e até exigível, para construirmos conhecimento) por um rigoroso filtro crítico.
Sem esse filtro – que consiste nomeadamente em conhecimentos e experiências antropológicos – somos presa dos mais prolíficos lugares-comuns e banalidades, daquelas evidências que apenas o são quando ignoramos as suas implicações, complexidades, resistências. Nesse sentido, muitas coisas que lemos sobre pré-história recente são de uma confrangedora pobreza intelectual, ou porque não saem dum descritivismo desinteressante, ou porque avançam com hipóteses explicativas às vezes ambiciosas, mas frequentemente ingénuas, quando não infantis.
Trata-se de uma questão de formação. Os pré-historiadores não são menos inteligentes do que os outros cientistas (admiti-lo seria para nós um exercício deprimente), mas não foram treinados em conhecimentos/problemáticas de ciências humanas e sociais, nem têm na maior parte dos casos um mínimo de formação filosófica. Assim, criam terminologias idiossincráticas, propõem interpretações, sugerem modelos, que depois são levados a sério e citados por outros, quando não chegam a manuais e “livros de texto”, como se fossem dados adquiridos, ou pelo menos interpretações credíveis; ora, muitas vezes são simples sugestões, extrapolações, ou mesmo exercícios de imaginação pouco controlada.
Porque obviamente existe uma imaginação científica, que se sujeita às regras do controlo crítico, por parte de colegas e do público; e essa imaginação não é só benvinda, como indispensável.
A interpretação das sociedades da pré-história recente é particularmente sensível a uma falta de formação específica, porque já não é tão importante aqui a base geológico-biológica que enforma os estudos de paleolítico e de hominização, e ainda não dispomos dos conhecimentos e forma de raciocínio do historiador que começam a caracterizar as investigações a partir da época romana em diante.
De notar que também as sociedades proto-históricas, na charneira entre o que se convencionou chamar pré-história e história (Bronze Final e Ferro) exigiriam uma vasta preparação antropológica (por exemplo, em antropologia africana da área sub-sariana) que, por não existir entre a maior parte dos arqueólogos europeus continentais, faz dessa época um campo ainda hoje praticamente virgem a um pensamento novo da arqueologia. Aqui aplica-se o provérbio popular: “dá Deus as nozes a quem não tem dentes!” Pois não há fase da história europeia eventualmente mais rica para a aplicação dessa interdisciplinaridade com a antropologia, do que esta…
Um dos conceitos comuns dos pré-historiadores é o de povoado. Que significa isso? Uma pequena cidade, uma aldeia, um lugarejo, uma “quinta” ou “casal” isolado, um acampamento mais ou menos estável e temporário? Um local onde as pessoas viviam; mas, põem-se as questões: segundo que género de vida? que estrutura social? que sistema de representações? que forma de organização do espaço? Um povoado não é um universal da cultura humana, quando muito é um “topos” da nossa imaginação infantil, desde as leituras do que se passava na “aldeia de Asterix”. Chamar povoado a um sítio, por si mesmo, não significa absolutamente nada.
Se esse conceito é oco de sentido, ocos são os seus derivados, ou expressões compostas, que integram a palavra “povoado” e o pretendem caracterizar segundo grelhas conceptuais mais uma vez muito simples: povoado aberto (sem muros) versus povoado fechado (rodeado de muros ou muralhas); povoado de planície, situado numa zona baixa, versus povoado de altura. Quando o dito “povoado” tem muros ou “muralhas” supõe-se imediatamente que é fortificado, induzindo-se automaticamente uma finalidade militar, defensiva/ofensiva, que ainda parece mais evidente quando se escalona ao longo de uma colina, encosta, ou mesmo esporão sobranceiro a um vale. Não se questiona a estrutura social, a escala e natureza dos possíveis conflitos, ou o que seria a causa de tanto investimento em supostos dispositivos arquitectónicos militares, ou, ainda, se a guerra é um universal trans-histórico, etc. Há espíritos que se comprazem na evidência!.
O carácter militar de certos sítios pré-históricos é para certos autores um dogma de fé, uma realidade indiscutível.Daí o mal-estar causado por Susana Oliveira Jorge nos anos 90 do século passado quando mostrou cientificamente que os sítios murados do Calcolítico peninsular de modo algum se podiam interpretar globalmente como “povoados fortificados”. Certos “fundamentalistas” da concepção corrente ficaram entre o assombrado e o escandalizado, como já outros tinham ficado nos anos 80 quando a mesma autora provou que as cerâmicas “de tipo Penha” e afins do Norte de Portugal não eram da Idade do Bronze, nomeadamente do Bronze Final, como até então se aceitava, mas sim da pré-história recente (Neolítico até ao Bronze inicial), bem mais antigas portanto.
Não se tratava de opiniões, ou de superficialidades “originais”, mas de trabalhos exaustivos baseados simultaneamente numa perspectiva inovadora e na análise das realidades arqueológicas, em que teoria e prática, intuição e trabalho persistente se imbricavam. Que espanto se tal autora acabou por grangear merecido prestígio na comunidade científica, tanto pelos que a citam, como pelos que a seguem sem a citar? Já se sabe que essa é uma estratégia tão corrente quanto primária, além de impotente a médio prazo – silenciar o que os outros antes de nós fizeram para fazer de conta que fomos nós quem o viu primeiro, ou invisibilizar, ocultar o brilho do mérito alheio (género de tentativa de “assassinato simbólico”) para tentar fazer sobressair a palidez do contributo próprio, esbater o que devemos aos nossos mestres para tentar passar a ideia de que fomos nós que iniciámos tudo (como se isso fosse desejável ou possível). A grandeza da ciência liga-se sempre à modéstia de admitir o contributo do que nos antecedeu, e de perceber a precaridade das nossas descobertas, por mais que momentaneamente nos entusiasmem ou reconfortem o ego. É pelo menos por essa ética que se pautam os autores do presente trabalho.
Neste sentido, o trabalho de Castanheiro do Vento está aqui, no terreno, também para prosseguir e reforçar a via que o Castelo Velho abriu, na pré-história portuguesa e não só. Não se trata, sublinhamos, de afirmação de pessoas, equipas, grupos, ou de dogmas, de uma atitude contra seja o que for, mas precisamente do contrário – a afirmação insofismável da honestidade científica e do trabalho continuado e sério, por definição aberto à novidade. E portanto avesso à sobranceria, auto-suficiência, auto-comprazimento, e lugar-comum. Tanto somos alheios ao elogio fácil como à crítica gratuita – trabalho, trabalho e mais trabalho, eis o único valor, implicando simultaneamente teoria e prática, investigação de campo e esforço de leitura e de aperfeiçoamento intelectual. Numa absoluta indiferença à mesquinhez do ambiente científico que por vezes existe em Portugal – nesse sentido, estamos cada vez mais “out” para nos sentirmos cada vez mais “in”, com os nossos colaboradores, alunos, interlocutores(nacionais e estrangeiros), e leitores. É para esses e para o futuro (para a nossa imaginação presente do futuro, para a nossa felicidade actual do futuro) que trabalhamos.
Uma outra obsessão de muitos arqueólogos, a que já aludimos atrás, tem sido a da construção em pedra, o seu prestígio, o seu “vedetismo”, diríamos, em detrimento daquilo que foi a maior parte das arquitecturas humanas, precisamente em materiais (mais ou menos) perecíveis. Aliás, o prestígio da pedra é tal que em muitos sítios se “patrimonializaram” estruturas históricas picando os revestimentos para pôr a pedra à vista, como se ela alguma vez tivesse estado assim no passado. Estruturas em pedra são mais fáceis de ver, de registar, mas não necessariamente de interpretar. Um soco de pedra implicava que as paredes fossem de pedra? Evidentemente que não! Podiam ser de adobes, ou de taipa, por exemplo. As próprias bases de pedra podiam estar revestidas com argila, para melhor impermeabilidade, conforto e durabilidade. Com o dissemos, a argila era essencial para terraplanar, facilitar o assentamento de estruturas, revestir, moldar o “habitat” humano, em toda a sua plurifuncionalidade e variedade de significações. Na protecção contra as adversidades do meio, na manutenção de temperaturas internas dos compartimentos (qualquer que fosse a sua funcionalidade), na “habitabilidade” (em sentido amplo), domesticação, moldagem dos locais.
Estamos convencidos de que esse foi o caso de sítios como o de Castelo Velho de Freixo de Numão e de Castanheiro do Vento de Horta do Douro, onde os afloramentos, os grandes blocos ciclópicos, as pequenas lajes, os troncos de madeira, os entrançados de ramos, tudo, tudo, foi mais ou menos embutido em, ou conjugado com, massa de argila, que era – permita-se-nos a metáfora - como a “carne” do corpo do sítio assim como a pedra e outros materiais rijos seriam o seu esqueleto. Isto seria tanto mais verdadeiro quanto a taipa (ou outra técnica ainda mais simples, utilizando também argila) é a forma mais fácil de construir em altura em ambiente mediterrâncio ou afim, onde não chove muito. Por outro lado, em sociedades não horizontais (isto é, não igualitárias) mas também não verticais (isto é, não estratificadas), as hierarquias tinham provavelmente uma plasticidade que se paralelizava com a plasticidade dos cenários, com a ordenação do espaço que as arquitecturas relativamente frágeis, permanentemente remodeláveis, da argila, permitiam. Uma organização social baseada num conjunto de regras aceites mas ainda não formais nem impostas/vigiadas por um aparelho de Estado podia bem plasmar-se, em termos de organização do espaço, numas técnicas construtivas elas próprias moldáveis, adaptáveis, em devir, e relativamente “democráticas”, com a argila como material de fácil acesso. Isso não significa que a organização social não necessitasse de uma hierarquização e de uma concentração de esforços, de um “planeamento”, e de um enorme investimento de trabalho concertado, que se torna óbvio em sítios como estes. Simplesmente, mais do que serem consequência de uma sociedade plenamente estabilizada nas suas hierarquias, estes monumentos seriam causa dessa estabilidade, ao fabricarem ordem no próprio espaço utilizavel à escala humana, naturalizando um conjunto de representações, de comportamentos, de valores, de tradições, de crenças e ritos, e certamente uma cosmologia e uma mitologia.
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(1)Comunicação apresentada à Mesa-redonda “Recintos Murados da Pré-história Recente. Técnicas Construtivas e Organização do Espaço. Conservação, Restauro e Valorização Patrimonial de Arquitecturas Pré-históricas”, Porto, FLUP, DCTP (Labº. de Conservação e Restauro), Maio de 2003 (coordenação de S. O. Jorge).
(2)Citação retirada de De Hoz Onrubia et al., 2003, pp.189-190.
(*) Faculdade de Letras (DCTP). Univ. do Porto. Coordenador científico do projecto EVASAFREN.
(**) Museu da Cidade de Lisboa. Estudante de Doutoramento, Univ. do Porto, sob a orientação de V.O.J. (bolseiro FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia).
(***) Instituto Português de Arqueologia (Extensão de Vila do Conde).
(****) ACDR, Freixo de Numão (Presidente da direcção).