De uma forma muito simples e rápida, parece-me que aquilo que há de importante na pesquisa filosófica de Giorgio Agamben é ter compreendido que as estruturas de pensamento ocidentais - a nossa ideologia, se quisermos, que naturalizando o que nasceu em certos momentos da história, o tornou inquestionável e impede a verdadeira emancipação do ser humano - tem raízes muito antigas, na teologia alto-medieval, e mesmo mais antigas, é claro, falando "grego" e "latim". Para tentar desenvencilhar o nó que nos atrofia ou condiciona, se é que isso é possível (fácil não é, decerto) é necessário ir a essas estruturas antigas, procurar a sua genealogia, tentar ver quando se dão inflexões fundamentais que vêm a ter mais tarde carácter de "doxa", de inquestionável.
Por exemplo, por que diabo é que, no seu percurso, e ao longo da série "Homo Sacer", haveria Agamben de se ter interessado pelas ordens monásticas e suas regras e formas de vida, e em particular pela dos franciscanos?
Atenção lourenses que trabalhais no convento arrábido de Loures, hoje Museu Municipal, isto pode ter interesse...
perceber melhor o que está em filigrana subjacente à ordem franciscana, ao seu despojamento, ao seu misticismo até (há quem o compare ao misticismo sufi, mas aí não sou competente para falar).
Trata-se de uma tendência geral das ordens monásticas, que começa nos séculos IV e V da nossa era, e que é sintoma de "(...) uma transformação que investe tanto o direito como a política e implica uma reformulação radical da própria conceptualidade que até então articulava a relação entre a ação humana e a norma, a "vida" e a "regra", sem a qual a racionalidade política e ético-jurídica da modernidade não seria pensável." (Agamben, "De la Très Haute Pauvreté. Règles et formes de vie", Paris, É. Payot & Rivages, 2011, p.13).
Sem poder desenvolver aqui mais, torna-se evidente a razão de ser deste estudo do autor na série Homo Sacer se pensarmos como este "apoderamento" da vida e dos corpos pela ordem, pela lei, pelo controlo, em suma, o biopoder moderno (o seu reverso "cúmplice" está nas obras de Sade, em que toda a máquina orgástica é estritamente regulamentada) e cada vez mais refinado, tem aqui uma raiz muito antiga.
Ao mesmo tempo, é claro, sabemos como as comunidades franciscanas foram muito diversificadas e como o assunto é complexo, mas essa procura de espiritualidade, de comunhão directa com o Criador através das suas criaturas (natureza), interpondo entre o crente e o Criador o mínimo de objectos espúrios (o que estaria no oposto da actual sociedade de consumo), e portanto procurando a pobreza mais absoluta, de certo modo era susceptível de incomodar a Cúria romana, que sempre se caracterizou pelo luxo. Mas é tema complexo, eu sei.
O que me perturba, às vezes, é as pessoas pensarem por compartimentos estanques. Abordam os conventos franciscanos - Arrábida, de novo Loures, e tantos, tantos outros - nos seus detalhes construtivos, na sua história descritiva, até nos seus aspectos estéticos, etc., mas não vão ao essencial, que se encontra em estudos como estes de Agamben e, em última análise, apontam para discussões teológicas que são a forma como a filosofia "funcionou" antes de se laicizar. Sem esse background a história - uma disciplina tipicamente cristã, aliás, desde sempre até hoje, como Agamben lembra - torna-se uma súmula de detalhes mais ou menos anódinos ou especulativos, sem qualquer interesse intelectual.
Só mais uma coisa. No sábado discutiu-se muito por que é que a obra de Agamben não apontava soluções políticas práticas para a actuação da esquerda, área a que indubitavelmente pertence. Talvez que o que ele procure seja algo de mais revolucionário do que "soluções práticas", que têm sempre, ou quase sempre, redundado na instauração de novas "doxas", autoritárias ou não. Talvez ele tenha desde há muito percebido que o mundo não muda porque as pessoas não questionam radicalmente a ideologia que tem raízes antiquíssimas e que estrutura até, de forma trágica, os modos de rebelião e as formas supostas de emancipação que o pensamento - se não estiver atento a uma "arqueologia" ou "genealogia" das formas de vida e dos modos de a regular - enforma.
O mundo não muda radicalmente, é óbvio, porque a maior parte das pessoas não querem. E não querem, ou não podem, pensar o seu não querer.
VOJ
Por exemplo, por que diabo é que, no seu percurso, e ao longo da série "Homo Sacer", haveria Agamben de se ter interessado pelas ordens monásticas e suas regras e formas de vida, e em particular pela dos franciscanos?
Atenção lourenses que trabalhais no convento arrábido de Loures, hoje Museu Municipal, isto pode ter interesse...
perceber melhor o que está em filigrana subjacente à ordem franciscana, ao seu despojamento, ao seu misticismo até (há quem o compare ao misticismo sufi, mas aí não sou competente para falar).
Trata-se de uma tendência geral das ordens monásticas, que começa nos séculos IV e V da nossa era, e que é sintoma de "(...) uma transformação que investe tanto o direito como a política e implica uma reformulação radical da própria conceptualidade que até então articulava a relação entre a ação humana e a norma, a "vida" e a "regra", sem a qual a racionalidade política e ético-jurídica da modernidade não seria pensável." (Agamben, "De la Très Haute Pauvreté. Règles et formes de vie", Paris, É. Payot & Rivages, 2011, p.13).
Sem poder desenvolver aqui mais, torna-se evidente a razão de ser deste estudo do autor na série Homo Sacer se pensarmos como este "apoderamento" da vida e dos corpos pela ordem, pela lei, pelo controlo, em suma, o biopoder moderno (o seu reverso "cúmplice" está nas obras de Sade, em que toda a máquina orgástica é estritamente regulamentada) e cada vez mais refinado, tem aqui uma raiz muito antiga.
Ao mesmo tempo, é claro, sabemos como as comunidades franciscanas foram muito diversificadas e como o assunto é complexo, mas essa procura de espiritualidade, de comunhão directa com o Criador através das suas criaturas (natureza), interpondo entre o crente e o Criador o mínimo de objectos espúrios (o que estaria no oposto da actual sociedade de consumo), e portanto procurando a pobreza mais absoluta, de certo modo era susceptível de incomodar a Cúria romana, que sempre se caracterizou pelo luxo. Mas é tema complexo, eu sei.
O que me perturba, às vezes, é as pessoas pensarem por compartimentos estanques. Abordam os conventos franciscanos - Arrábida, de novo Loures, e tantos, tantos outros - nos seus detalhes construtivos, na sua história descritiva, até nos seus aspectos estéticos, etc., mas não vão ao essencial, que se encontra em estudos como estes de Agamben e, em última análise, apontam para discussões teológicas que são a forma como a filosofia "funcionou" antes de se laicizar. Sem esse background a história - uma disciplina tipicamente cristã, aliás, desde sempre até hoje, como Agamben lembra - torna-se uma súmula de detalhes mais ou menos anódinos ou especulativos, sem qualquer interesse intelectual.
Só mais uma coisa. No sábado discutiu-se muito por que é que a obra de Agamben não apontava soluções políticas práticas para a actuação da esquerda, área a que indubitavelmente pertence. Talvez que o que ele procure seja algo de mais revolucionário do que "soluções práticas", que têm sempre, ou quase sempre, redundado na instauração de novas "doxas", autoritárias ou não. Talvez ele tenha desde há muito percebido que o mundo não muda porque as pessoas não questionam radicalmente a ideologia que tem raízes antiquíssimas e que estrutura até, de forma trágica, os modos de rebelião e as formas supostas de emancipação que o pensamento - se não estiver atento a uma "arqueologia" ou "genealogia" das formas de vida e dos modos de a regular - enforma.
O mundo não muda radicalmente, é óbvio, porque a maior parte das pessoas não querem. E não querem, ou não podem, pensar o seu não querer.
VOJ