sexta-feira, 31 de agosto de 2012


NOTAS BREVES EM TORNO DA QUESTÃO “MUSEU”


“Museu”, e o incomensurável conjunto de coisas/conceitos que lhe andam associados, tornou-se hoje uma palavra-passe para tudo o que saíu do circuito da produção/consumo directos e passou para outra esfera da produção/consumo, o da chamada “cultura”, ou bem imaterial.
Isto significou obviamente uma extensão laica a bens de contemplação por parte de uma economia capitalista cujo motor é a permanente “inovação” e absorção de exterioridades.
A cultura, a memória, a identidade, a contemplação, o lazer tornaram-se valores/bens essenciais de uma sociedade hedonista e consumista baseada na constante, invasora, sensação de perda.
Ao subjectivarem a perda, isto é, ao sentirem-se confrontados com o seu próprio vazio pessoal, que decorre da perda de referências/valores/projectos permanentes de carácter tradicional/transcendente (com a correlativa valorização do imanente, e, nele, do imediato e do “prazer”, se não mesmo do seu excesso, o gozo) os sujeitos tornam-se obsessivamente desejantes (buscam satisfação no que ainda não têm). Este pano de fundo é o “caldo de cultura” onde medra a cultura/ideologia museográfica.
O museu, nas suas inúmeras variantes, de todos conhecidas (do museu local ao grande museu “imperial”, do museu monográfico ao generalista, do pequeno estabelecimento/equipamento ao grande parque de diversões/entretenimentos para todas as idades, etc., etc.) tornou-se a outra face da moeda de uma indústria altamente tecnológica, sofisticada, que rapidamente torna obsoletos equipamentos/espaços/dispositivos anteriores.
Mas como esta cultura tem horror ao vácuo (vive no trauma da perda de memória), o que não deita ao lixo incorpora no museu. E quantos “museógrafos” e patrimonialistas se queixam permanentemente (como seu sintoma constante) do que já se perdeu, ou seja, do que depois de utilizado/consumido não foi devidamente reciclado numa outra forma de valor. O discurso do museu e do património é o discurso da queixa da perda, seu sintoma obsessivo, outra face da moeda do capitalismo, sistema que se baseia na permanente captação de mais-valias: força de trabalho, recursos naturais, recursos de carácter imaterial, ou seja, a cultura.
O museu está, é claro, intimamente ligado a uma das grandes indústrias da cultura, a da viagem/turismo, com as suas correlativas ideologias de “volta ao passado”, visitação/fruição de “espaços fora do espaço e do tempo”, ou seja, a uma economia do sonho. Mas esta venda de sonhos é tudo menos imaterial, está claro, pois ela movimenta quantias avassaladoras e é a alavanca, o atractor, de muitas outras formas de obter lucro.
Por isso a falta de confiança no futuro e a perda de crédito da classe média são problemas económicos não de “crise temporária”, mas ajustamentos estruturais do próprio sistema capitalista.
Este está a desmantelar os últimos vestígios da “coisa pública” (gastos do Estado-providência, baseados no pagamento de impostos/retenção de partes do rendimento de cada um como forma de sustentação de um estado-pai benfazejo”, isto é, de um serviço público não baseado no lucro) e a substituir o comando da vida por um sistema volátil de compadrios circunstanciais que permitem a ascensão súbita de grandes fortunas/multinacionais e levam a maior parte da população do planeta à proletarização e à miséria.
Neste sistema, as pessoas, tanto funcionários públicos como privados, tornaram-se potencialmente excedentárias. O sistema precisa apenas de refinada tecnologia e de especialistas nela, seja no domínio da investigação biológica, seja no da informação ou outro qualquer. Os empregos vão sendo substituídos por projectos, por ocupações “flexíveis” e temporárias, e o Estado actua cada vez vez mais como um fiscalizador frio, inflexível, não como o pai bondoso mas como o tirano de face sorridente e sedutora de tipo “outdoor”.  Obviamente que as máfias no poder têm a sua corte de servidores, potencialmente em permanente reciclagem. Digamos, sem exagero nem nostalgia, que o velho serviço público se transformou, pouco a pouco, numa sua caricatura proletarizada e prostituída. Não tem dignidade, nem ninguém acredita nele, qualquer que seja a força política que esteja à frente de um processo totalmente des-territorializado, onde os factores determinantes são internacionais.
O museu é a outra face desta situação. Transformado em local de lazer, com lojas, sítios de restauração, ou como pólo de “aventuras” (percursos, caminhadas, rotas, etc., numa palavra, entretenimentos), o museu faz parte as indústrias da cultura que, de uma maneira geral, na sua própria proliferação, levam os sujeitos à fragmentação. Fragmentação e fatiação e interesses/experiências, num desejo sem fim de as acumular, proporcional ao desencantamento geral e à frustração inerente a cada experiência.
Porque de facto o que está em curso é a transformação das condições subjectivas da experiência. O museu proporciona uma experiência “sem tempo”, fora do tempo (contacto com o “passado”) que é contraponto da “falta de tempo” que as pessoas (quando ainda activas, quando desempregadas/reformadas sem recursos culturais anteriores a desmotivação será outra) efectivamente têm na “vida real”.
Posto isto (e para além da constatação “pragmática” de que não vale a pena uma actuação voluntarista contra um sistema cuja força e cujas coordenadas estão muito para além do esforço individual ou de grupo), a pergunta é: vale a pena continuar a pensar a questão “museu”? A resposta é obviamente sim.
Não podemos eximir-nos de pensar.
Toda a gente pensa, o que se passa é que muitas pessoas, a maior parte, não dispõem do equipamento crítico, do tempo/espaço de distanciação para poderem avaliar a sua própria situação. Estão, para retomar um velho conceito marxista, alienadas.
Como sair da sociedade do entretenimento, de que Hollywood é, por exemplo, uma das mais poderosas máquinas ideológicas, como subtrair os jovens à influência contaminante dos jogos de computador e produtos semelhantes que são a própria corporização destas metástases?
Isso é que é importante perguntar.
Porque o que é próprio do capitalismo recente, sobretudo depois da queda do muro de Berlim e da percepção plena de que o “socialismo real” foi um logro, é a atitude fascizante de que é impúdico, mesmo, pensar criticamente o capitalismo, designar este sistema por um nome, articular a ideologia que nos impregna com as formas mais elementares e óbvias de vida.
Não, nada disto é natural e inevitável.
Sim, tudo isto pode e deve ser pensado, na exacta proporção de que não é aconselhável pensá-lo, ou então de que se pode fazer tal em privado e nunca em público. Na exacta proporção de que o sistema nos diz “não vale a pena ir por aí, não adianta nada”, vale a pena estar atento e, sem querer precipitar acções, estar atento criticamente e preparado para algo que algum dia há-de acontecer, fazendo-nos voltar a acreditar que a história não acabou.
E que o que hoje chamamos “museu”, a outra face de uma vida escrava, será diferente, e não o lugar da evasão, mas o lugar de uma vida mais plena, compartida, desinteressada.
É óbvio que estas notas têm de ser muito desenvolvidas e que elas próprias traduzem, ainda, muita insuficiência da minha parte. Mas foram escritas em meia-hora. Não se eximiram ao tempo contado que é o nosso, hélas.


voj agosto 2012

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