Giorgio Agamben - OPUS DEI. Archéologie de l’office (Homo Sacer II,5), Paris, Seuil, 2012 – algumas notas (praticamente tradução, por vezes à letra, do que escreve o autor – para que eu não seja acusado de plágio!) basicamente tiradas a partir da Introdução do livro e da sua conclusão, a que interessantemente chama “Limiar”, título que também aparece noutras partes do livro como “separador temático”.
- Opus Dei – termo técnico que designa, desde o séc. VI, e na igreja católica latina, a liturgia. O Opus Dei (ofício) como paradigma da acção humana foi um pólo de atracção constante e muito difundido na cultura secular do Ocidente. Por ex., a ética kantiana, a teoria pura do direito de Kelsen, a militância política moderna, o modo de funcionamento de um funcionário.
- Liturgia (do grego leitourgia, “prestação pública”, obra para a colectividade) – exercício da função sacerdotal de Jesus Cristo. Nela o culto público integral é exercido pelo corpo místico de Jesus Cristo, isto é, pelo chefe e pelos seus membros. Este termo é relativamente moderno (estende-se progressivamente pelos fins do séc. XIX). A liturgia corresponde à tentativa mais radical de pensar uma prática integralmente “efectual” . É o mistério da operatividade.
- Officium – aparecia antes do séc. VI em vez do termo liturgia.
- Ofício – é mais eficaz do que a lei porque não pode ser transgredido; é mais real que o ser porque consiste apenas na operação pela qual se torna uma realidade; mais eficaz do que qualquer acção humana porque actua “ex opere operato”, isto é, independentemente das qualidades do sujeito que o celebra.
- O REINO E A GLÓRIA (livro) – dedicado ao mistério da liturgia e no essencial no seu aspecto virado para Deus, isto é, a sua dimensão objectiva e gloriosa. Tentar esclarecer o “mistério da economia” construído pelos teólogos pegando numa expressão pauliniana, transparente em si própria, e invertendo-a.
- OPUS DEI (livro) – a pesquisa arqueológica incide sobre os próprios sacerdócios, os sujeitos a quem incumbe, por assim dizer, “o ministério do mistério”. Incide sobre o mistério da liturgia. Esta prática, aparentemente fechada sobre si própria, exerceu uma influência enorme na maneira como a modernidade concebeu a sua ontologia, a sua ética, a sua política e a sua economia.
- Conceito/paradigma de ofício – comporta uma transformação decisiva das categorias da ontologia e da praxis. O ser (o que o homem é) e a praxis (o que o homem faz) ficam indistintas. Há uma perfeita circularidade. O ser resolve-se nos seus efeitos práticos. O ser é o que deve ser e deve ser o que é. Este paradigma define-se pois pela operatividade e pela efectualidade, nisso se distinguindo mundo do paradigma clássico.
- Efectualidade – em última análise, quer se trate do ser ou do agir, a única representação que temos hoje é a da efectualidade. Só é real o que é efectivo, e, como tal, governável e eficaz. O ofício, sob forma modesta ou gloriosa, modificou totalmente as regras da filosofia antes de modificar as da ética.
- Crise actual do paradigma do ofício – parece ser decisiva. Neste momento, em que mais se expande, parece ao mesmo tempo perder o seu poder de atracção.
- Ontologia da operatividade e do comando – o autor tenta compreendê-la através de uma arqueologia do ofício, em paralelo com uma “metafísica da vontade” (estudada por Ernst Benz). O conceito de vontade, que não tem sentido ontológico na filosofia grega clássica, foi elaborado a partir do neoplatonismo, e depois pela teologia cristã a partir do séc. IV, para explicar o processo que levou à hipóstase do um e à articulação trinitária do ser supremo.
- Produção no Um de uma inclinação para si – no neoplatonismo, é definida como “vontade” e “amor”: o Um era antes de tudo vontade. A vontade, que originalmente é vontade de si, designa o movimento interior a Deus, através do qual o Um, desdobrando-se sobre si, se constitui como intelecto e se dá como realidade e existência nas três hipóstases primárias.
- Poder [potência, força] – é, na sua essência, vontade, e o bem é vontade de si.
- Nascimento da metafísica moderna da vontade – Plotino identifica a vontade com o ser em si mesmo: a vontade e a substância são uma e a mesma coisa, e o querer coincide necessariamente com o ser em si mesmo. Identificação do ser e da vontade, pois.
- Desdobramento progressivo da unidade divina nas hipóstases – através da identificação do ser e da vontade, é conceito de um modo “essencialista”, como o será na teologia cristã.
- Vontade – é simultaneamente a origem do movimento das hipóstases e o princípio que permite reconduzi-las à unidade. E é esta “voluntarização” da metafísica grega que transforma pelo interior a imagem do mundo como motor imóvel (Aristóteles) e torna possível a elaboração do paradigma criacionista cristão.
- Papel importante – tido pela assimilação do modelo de Plotino na articulação da teologia trinitária e, também, pela antropologia cristã, que encontrará a sua formulação acabada na tríade agostiniana da memória, do intelecto e da vontade.
- Doutrina das hipóstases – implica uma concepção dinâmica do ser divino e uma nova ontologia operativa. Só uma definição precisa das características dessa nova ontologia permite explicar o aparecimento e a centralidade do conceito de vontade.
- Elemento decisivo – não é o facto do ser se encontrar “mobilizado” e em movimento (esse gesto já estava na ontologia de Aristóteles); mas é o facto do movimento do ser não se produzir por si mesmo, naturalmente, mas implicar uma “energeia” e um “pôr em execução” incessante. O ser é pensado como um “ergon” que remete para a efectuação por um sujeito que é caracterizado pela vontade em primeira e em última instância.
- Plotino escreve – se se atribui ao Um operações (“energeias”), estas operações produzir-se-ão sob o efeito da sua vontade: estas operações são então de certo modo a sua substância (“ousia”), e a sua vontade é idêntica à sua substância.
- Teologia cristã – o processo da auto-hipostização trinitária e da criação do mundo são produzidos como uma vontade da majestade divina. A economia trinitária e a criação são pensadas segundo o modelo da realização [“mise en oeuvre”] e da “energeia” e não como um processo impessoal. Daí a necessidade de identificar o poder de Deus com a sua vontade.
- Schelling – no seu pensamento moderno a metafísica da vontade tem a mais alta expressão: não há ser que não seja o querer; o querer é o ser originário.
- Conceito de vontade – introduzido na teologia entre o séc. III e IV porque a concepção do ser tinha acabado por se transformar num sentido operativo.
- Tal como o dever foi introduzido na ética para dar um fundamento ao comando, à autoridade, a ideia de vontade foi elaborada para explicar a passagem da potencia à efectualidade. Se o ser é algo que deve ser posto em acto, se ele implica necessariamente uma execução [mise en oeuvre], é necessário então supor a existência de uma vontade que o torne possível.
- Esta exigência já está de forma embrionária no pensamento de Aristóteles, em que o conceito de vontade aparece pela primeira vez num contexto ontológico para explicar a passagem do poder ao acto. Dado que o poder humano, enquanto poder racional, pode produzir uma coisa e o seu contrário, é preciso que o elemento soberano (“kyrion”) seja algo de diferente: vontade ou escolha.
- A ontologia do comando e a ontologia da operatividade estão assim estreitamente articuladas: o comando necessita, tal como a execução, de uma vontade. Querer é também (co)mandar, e (co)mandar implica necessariamente um querer.
- A vontade é a forma que o ser toma na ontologia do comando e da operatividade. Se o ser não é, mas deve realizar-se, então ele próprio, na sua essência, não é senão vontade e comando: e vice-versa, se o ser é vontade, então ele não é simplesmente, mas deve ser.
- O problema da filosofia por vir é pensar uma ontologia que esteja para lá da operatividade e do comando e uma ética e uma política inteiramente libertas dos conceitos de dever e de vontade.
voj