O facto de uma pessoa ter vivido décadas com outra e rapidamente desaparecer não é motivo para pensar (para cada uma das pessoas envolvidas pensar) esse passado nem como falhanço nem como culpa. Esse acontecimento (a partida intempestiva) criou um novo passado (em permanente e fluida construção) e portanto uma nova história de cada uma (e para cada uma) das pessoas, que cada uma delas tem de reconstruir. Portanto, nada tem de dramático ou negativo: é agora, pela maneira como cada um reconstitui esse passado (ou seja, pelo modo como se projecta em cada momento no futuro) que ele acontece diferentemente. Que uma pessoa, que cada pessoa se salva ou se dana, por assim dizer. Trata-se apenas de saber atravessar a fantasia (a fantasia que se fez de outra pessoa), não caindo no erro comum de que se quis ignorar a verdade dessa outra pessoa. Tal verdade ou essência pura e simplesmente não existe. Não, a verdade esteve e está sempre em reconstrução. O importante é pois transmutar o espanto e a dor em nova vida sem receios nem ressentimentos, e com inteiro respeito por esse passado. Se o “engano” esteve sempre lá, se a ficção criada sobre outra pessoa amada esteve sempre presente, foi essa ficção (ou sucessivas ficções) que nos fez viver, passar o bom, o mau, o assim-assim, o extraordinário. Tem de se estar para além do sentimentalismo vulgar e perceber filosoficamente esta dialéctica. O evento da ruptura, sendo um tremendo trauma, abre ao mesmo tempo o abismo da imaginação e do futuro. O importante é saber olhar esse abismo com felicidade, isto é, sem depressão nem nostalgia. Perceber que a ausência sempre esteve presente, só agora se nota mais. That is all. E essa ausência esteve repleta de flashes de presença. A verdade é uma ilusão, a ilusão é a verdade. Foi a esse registo que Lacan chamou o domínio do simbólico. O evento, a batida forte do real é como uma revolução (como a revolução francesa, por exemplo), “sangrenta” – mas sem esse “sangue”, essa dor tremenda, esse sacrifício – não haveria história, mas suspensão adiada, paz podre, morte enfim. Não se trata de renascer para a vida, para o amor: trata-se de o descobrir desde o princípio, reescrevendo o passado, inventando nova fantasia, reocupando o simbólico com novas referencias, experiências, corpos, sons, sentimentos, êxtases, amargos de boca, frustrações, impotências, glórias, festas – tudo o que se queira. Afinal nascemos sozinhos e sozinhos vamos morrer. E entre essas duas balizas inultrapassáveis o que cada um faz é preencher-se de fantasias, na maior parte herdadas mas incorporadas e retrabalhadas permanentemente, de modo a criar essa suprema fantasia que é pensar-se como eu, como um self desejante e onde desejo e acção estejam de novo interligados, na paradoxal impossibilidade da fusão com outrem, sempre impossível, e por isso sempre motivadora.
A filosofia não é um saber que se acrescenta ao sentimento. A filosofia é a maneira suprema de viver sendo capaz de sentir com mais intensidade. O amor do saber é esse desejo sempre incomensurável e insatisfeito de perceber. Não são os olhos domésticos e aquietados, acomodados, do cãozinho. São os olhos enigmáticos do gato que, ao fitar-nos, nos devolve o espelho impossível da nossa identidade, fazendo-nos pensar/sentir: e se eu fosse gato, que estaria a ver? Como é sentir do outro lado do espelho?... saber viver com o enigma desse olhar, eis o que (me, pelo menos) importa. Amor, felicidade, enigma, evento, esperança de que a grande ave da anunciação bata com as asas no umbral da nossa porta. E traga uma mulher nua dormindo, na paz do amor, na beleza sublime do trivial das suas sandálias deixadas, esquecidas à porta – esse movimento, essa surpresa, essa ânsia, essa chegada, essa precipitação. Porque a verdade está sempre na decisão precipitada. A decisão cria depois as condições da sua justificação retrospectiva, por mais estranha que seja.
voj porto agosto 2011
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