Paradoxo contemporâneo: o "sistema" alimenta-se dos protestos, das denúncias, das reflexões, das explosões de fúria contra ele. Necessita deles, deglute-os, diverte-se com eles. E cresce, mais forte, por causa deles, graças a eles.
Mas se não se "protesta", se não há revolta (a revolução é hoje um pensamento/acção mais difícil...mas há sempre que contar com o inesperado), o sistema também sobrevive, talvez mais monotonamente, mas sempre abusando cada vez mais dos muitos mais fracos a favor dos poucos privilegiados, dando passos programados e maquínicos no processo de controlo e na asfixia da maiores dos seres humanos, condenados à miséria da sobrevivência ou ao desespero da infelicidade e do desamparo. Então, que fazer? Voltamos sempre à velha pergunta: que fazer? Mas em nome de quê, em nome de quem, se ergue uma voz, agora que já não temos nenhum teologia ou ateologia em que nos refugiarmos, uma unidade coerente de princípios em nome da qual lutarmos com a convicção ingénua de outrora? Agora que nos sabemos dentro do jogo, sustentando o jogo, mesmo quando o contestamos? Tudo nos soa a falso, a flop. Todos em última análise se refugiam nos seus últimos redutos, pequenos ou grandes, para sobre-viver. A ideia de comunidade põe problemas. Como fazer, como pensar, como ter esperança ainda?... Como viver? É o salve-se quem puder? São as pequenas acções humanitárias? São as boas intenções cristãs, caritativas, travestidas de moral social? É o amor ao próximo? É a obsessão da protecção dos animaizinhos indefessos e abandonados? É o refúgio na meditação dita oriental? A confusão das formigas permite aos gestores do mundo continuar o seu modo de vida confortável e cínico. Como deixar de ser formiga? Como deixar de ser submisso sem ser carnavalizado como palhaço ou ridículo impotente? Como ser de facto um agente de transformação? É nas grandes coisas/causas? É na subversão das pequenas coisas do dia a dia? É na fé missionária do convencimento porta a porta? Quem houve quem e quem fala em nome do quê? Há muito barulho. Muita agitação. Muita gesticulação. Muito exercício físico. Muito jogo, e no fim a sensação de que nada de palpável ficou. Onde está a nossa dignidade individual e colectiva? Que ética seguir? Que autores ler? Onde está a fractura que nos põe perante a decisão, a loucura necessária, a precipitação responsável? Num mundo brutal e mau, de baixíssima qualidade, onde estão ainda as pessoas por que aspirámos? Cada uma na sua toca à espera que a tempestade passe? Como pensar ainda no meio disto tudo, sem que esses nichos de pensamento sejam formas de elitismo e de capitalização de minorias, tais como as minorias do dinheiro? Como partilhar, o quê e com quem, como sair do esquema da produção, da submissão, da prostituição quotidiana ao império do dinheiro e dos poderes, do cálculo, da manobra, do xico-espertismo de todos os matizes, em suma, do que convencionamos designar capitalismo, sem entrar nas ilusões neo-liberais ou nas ingenuidades bem intencionadas?
Como recuperar a dignidade?
Num mundo onde não há respostas, nem soluções "prontas a vestir" à vista (pelo menos à nossa vista), nem ilusões já, é aí, paradoxalmente, nesse deserto, que temos de inventar a solução. Pensar, viver, voltar a pensar, partilhar, escutar, incondicionalmente tentar ir ao coração das coisas sabendo que cada um de nós só pode viver neste constante paradoxo: para escutarmos uma pessoa como deve de ser, temos de calar o resto do mundo que às vezes nos apela. Esse paradoxo, sim. Máximo amor, máximo rigor, como Artaud quando falava de crueldade. Determinação em não querer ir na onda. É ainda possível ser assim?... não espero que alguém (O Salvador) me responda, está claro. Só desejo perguntar.
Um autor que sugiro para estes temas: Jacques Derrida.
voj