terça-feira, 16 de janeiro de 2007

pérola



gostava de entrar de novo em ti, na auréola de luz que de ti mansamente emana, se soubesse, de facto, quem és ou onde estás.
por uma álea que conduz às sombras da casa mais familiar e antiga, ao longo de um caminho delimitado por ramos que se fossem curvando sobre mim, à minha passagem,
caminharia,
em sobressalto e medo de escorregar nos musgos, de encher de cortes os pés descalços.
embora junto de ti se não possa comparecer senão ferido, descomposto – imagino eu.
certamente iria com uma grande chave virada para a casa, preparada para entrar no pesado trinco e ouvir o seu rodado de ferrugem; porque a chave de uma morada que já foi nossa (há anos, ou séculos) nunca se perde, mesmo quando alguém tenha querido expropriar-nos dela para sempre.
entre o cheiro e o som das dálias, pisando um caminho salpicado de pérolas, dessas que subsistem pelos anos fora para mesmo de noite conduzirem o forasteiro até ao lugar certo,
seguiria,
entre os latidos de cães invisíveis e o pressentimento de pássaros escondidos, gordos de cor azul, e portanto já não podendo voar - habitantes das raízes salientes das árvores.
de ti me aproximaria como uma grande ave que regressa a casa, como uma aeronave que se faz à pista, voltando de um longo percurso glorioso, mas todavia rejubilando ao entrar entre as luzes que, no solo acolhedor, lhe iluminam o trajecto;
num movimento que só termina no horizonte, no fim do quadro espectacular da noite, na sua ambiguidade deitada, como a mulher que se reclinou num quadro de delvaux, e tem a nudez lunar afagando-lhe o corpo todo.
quereria repousar entre as pregas, as dobras, as cortinas da noite, lá onde o movimento encontra o seu poiso, rodeado de pétalas, sítio em que nos encostamos ao mistério do começo do mundo, ao pêlo púbico da verdade; aí, com a lua e as estrelas e as figuras esvoaçantes de chagall sobrevoando-me, quereria ficar.
gostava de te procurar de noite, seguir um trilho, decifrar códigos e sinais, sorrir com as falsas pistas, sabendo, como sei, que me esperas desde sempre na resplandescência do teu rosto, por detrás dos reposteiros repetitivos que todos os dias abro e fecho.
só precisava de um nome, um endereço, um papel velho amarrotado na rua, uma lágrima caída na testa como pingo de vela, um sinal qualquer.
decerto não é a pérola sozinha dentro da concha que me move, mas o próprio movimento de abrir, de agarrar com força as duas valvas que se abrem para outras, e outras, num movimento infinito, sumamente violento,
podendo rasgar as mãos, enchê-las de cicatrizes, no ávido esforço de esgarçar a realidade para atingir o seu objectivo.
mas penso que junto de ti se não pode comparecer com as mãos limpas, as unhas tratadas, o corpo untado dos segredos da cosmética, a estátua perfeita – tu pedes a incompletude com que uma pessoa se aproxima de uma leoa aparecida em plena noite, entre o mato primitivo.

eu sei que desconheces a veemência deste apelo, a sua trágica urgência, e que não fazes ideia de como, por isso mesmo, ardo de ansiedade em te (re)encontrar,
rosto único em que poderia finalmente ver, face a face, o grande mistério, a pergunta que enunciou o início;

pois tenho saudade dos tranquilos olhos que me aguardam,

e gostava de concluir este percurso que não pedi, e que tu – num obsceno acto de poder sem limites - antes me consultar, iniciaste.

se esses olhos me olhassem com o frio brilho que deles espero, para trás de mim mesmo deixaria o meu torso reclinar, entregando-me totalmente à tua vontade, ao teu ódio e ao teu amor,

como um corpo que desesperadamente atirasse para a frente
toda a sua força moribunda, as suas vísceras ainda quentes,
o seu próprio sexo latejante.


copyright voj 2007

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