quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

"Cultura"

Um pouco de humor: havia dantes uma telefonista numa delegação regional da então Secretaria de Estado da Cultura que devia ser a pessoa que mais invocava, por dia, a "nobre" palavra “cultura”. Cada vez que levantava o auscultador, dizia logo, a anteceder fosse o que fosse: “Cultura, bom dia”, ou “Cultura, boa tarde.” Para ela não havia “Cultura, boa noite”, porque saía do serviço antes.
Ou seja, a palavra “cultura” está tão gasta, e ao mesmo tempo usa-se tanto, que para mim já seria uma palavra a evitar. Cultura dos povos, cultura das regiões, cultura de empresa, uma cultura de responsabilidade, uma cultura de risco, o futebol ou outra actividade qualquer como cultura, etc. – a lista poderia continuar até ao infinito, até porque cada “nicho” cultural se desdobra depois em milhões deles.
A palavra “cultura” transformou-se de tal modo numa palavra de passe que é, quase, insuportável, não fosse a expressão dessa insuportabilidade poder confundir-se com a disposição daquele ditador que referia a sua vontade irreprimível de puxar das pistolas sempre que ouvia pronunciar tal palavra.
Em arqueologia acreditou-se muito tempo, por via do normativismo histórico-cultural, de raiz antropológica e não só, que era possível dividir a humanidade, no tempo e no espaço, em unidades que dariam um sentido descritivo e interpretativo às diferenças e à variabilidade de atitudes e comportamentos, traduzidos em objectos, em “materialidades”. Essas unidades seriam as culturas. Na natureza imperavam as leis, os fenómenos universais; o mundo humano, esse, era qualitativo, diversificado, e tinha sobreposto à realidade material inerte o diáfano manto, diversificado, das diversidades culturais.
A história, desde os primórdios, organizar-se-ia em “culturas”, distribuídas no tempo e no espaço, cada uma delas com o seu núcleo criativo, e as suas áreas de expansão e de miscigenação, na ordem temporal e na espacial. E assim, ao lado das formas culturais mais “puras”, supostamente vernáculas e centrais, surgiriam as manifestações de fusão, de influência, de aculturação. Tudo visões que se coadunavam muito bem com certa fase colonial.
A imaginação dos arqueólogos neste campo revelou-se imparável. Criaram milhares, talvez dezenas de milhares de culturas diferentes, à medida que iam estendendo a disciplina a toda a Terra. Também os antropólogos, com a ideia de tribos, não andaram muito longe... e o discurso construído em antropologia parecia um conto de crianças: entre estes faz-se assim, entre aqueles pensa-se assado... os "primitivos" (ou outros) estavam fora da história. Só tinham essa arrumação por tribos, etnias, ou culturas. Uma invenção nossa, claro.
Em arqueologia, esta perspectiva histórico-cultural foi muito criticada a partir dos anos 60 pelos representantes da chamada “Nova Arqueologia” (EU), ou processualismo (RU), sobretudo no mundo de influência anglo-saxónica. Mas a maioria dos investigadores continuou tranquilamente a trabalhar e a interpretar segundo modelos histórico-culturais. Claro que tais modelos nunca aparecem em estado puro, miscigenando-se com o evolucionismo (que vinha do séc. XIX e do “espírito das Luzes”) ou o seu sucedâneo, o neo-evolucionismo, com o marxismo (ou o que passa redutoramente por tal, num frequente "atentado" a Marx), etc.
Apesar de muitas das arqueologias críticas do cientismo neo-positivista que começaram a emergir nos anos 70/80 do século passado, a dicotomia natureza/cultura ainda está subjacente ao discurso preponderante, de forma explícita ou velada. E aí temos a "grande divisória", baseada numa especificidade metafísica do ser humano, destinado (por Deus ou pela teoleologia evolutiva), a dominar a natureza pela cultura, ou seja, pela civilização, pelo "progresso" (agora chamado desenvolvimento). Na verdade, o que se passou foi a vontade de imposição de modos de vida ocidentais a muitas outras formas de encarar o mundo, algumas radicalmente estranhas à nossa ontologia.
Essas tentativas fracassaram... mas o multiculturalismo, ao continuar a dividir os povos por culturas, e ao dizer "respeitar" as suas diferenças e especificidades, muitas vezes como exotismos, inclusivamente, de interesse turístico, não deixa, sob uma faceta simpática, de continuar uma longuíssima tradição, que vem desde os gregos. Tradição que muitos povos incorporaram, pois é o modo de desenvolverem as suas especificidades (e de se salvarem no mercado, criando tradições e vendendo produtos típicos) no mundo globalizado: de modo que as "culturas" vão proliferar cada vez mais. Como o capitalismo, têm uma dinâmica e uma capacidade de recuperação verdadeiramenrte espantosa, qual hidra de muitas cabeças.

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