terça-feira, 16 de janeiro de 2007

opala

com alusão a uma imagem de Orlan, ela própria referência explícita
ao êxtase de Santa Teresa, de Bernini


é raro, numa taberna como esta, perdida no meio do inverno, entrar uma pessoa.
a maior parte são clientes, que vêm ainda a sacudir a neve das botas, e querem apenas uma bebida quente, uma mulher para a noite, e pouco depois sobem as escadas, ou saem pela porta fora.

a filha do patrão aparece uma vez por ano, no dia do seu aniversário, no alto das ditas escadas, vestida de branco, mas com um longo manto aos folhos, que chega ao último degrau do piso inferior, junto ao balcão cheio de nódoas de bebida e alimentos.
dizem que essa veste tem tantos metros de extensão quantos os anos que de cada vez festeja. deixa-lhe apenas um seio a descoberto, razão talvez pela qual em baixo os clientes estão autorizados, por especial excepção, nesse dia e momento, a darem alguns tiros para o ar, ou a arrotarem mais estrepitamente.

depois a figura retira-se, e há que esperar um outro ano, pelo que rapidamente os presentes voltam aos seus modos habituais de comportamento, fumando abundantemente, engolindo bebidas fortes e de má qualidade, discutindo muito alto coisas anódinas, e escolhendo companhias. enfim, o corrente nestes sítios pequenos.

às vezes há rixas pela disputa das mais recém-chegadas, e a taberna parece um galinheiro, com penas a voar por todos os lados, incluindo janelas e portas.
de qualquer modo é o melhor que esta gente que aqui vive ou que por aqui passa tem. é a sua distração, a sua cultura tradicional, segundo me disseram. E isso é importante para o meu trabalho.

vim dar a este país afastado, onde as noites são escuras e frias, e no inverno o tacto dos troncos despidos de folhas muito macio, há já bastantes anos. fui aqui colocado como professor, sendo encarregado de classes constituídas por vultos cheios de frio e sempre irrequietos.
quando lhes pergunto por que se agitam tanto, dizem-me que querem urinar, ou comer. há sempre alunos a entrar e a sair da sala, de uma forma desrespeitosa e mesmo obscena, mas foram habituados assim, e eu necessito deste salário para sobreviver.

às vezes dirijo-me até à igreja, onde estão, fora de horas, umas imagens de velhotas è volta do menino jesus, talvez porque se aproxima o natal. a estátua não é daqui, circula entre várias igrejas, transportada numa carroça.
quando está cá, é frequente ouvir-se uma conversa sussurrada a sair pela porta entreaberta do pequeno templo. ao contrário do que se pudesse pensar, não são os vultos das velhas a falar entre si; mas, sim, a conversarem com o menino jesus, que solicitamente lhes responde.
e ali está como que uma família, aquecida pela melopeia, e pela abstracção do tempo.
nesses momentos, prefiro não entrar.

dirijo-me então à velha estação de caminhos de ferro, agora desactivada, mas de onde no passado partiam, segundo dizem, muitos vagãos carregados com centenas ou milhares de pessoas, de noite, para serem abatidas sumariamente no meio dos campos, num pais distante.
não sei se isto corresponde à verdade, mas encontrei uma vez um bilhete escrito em polaco onde, depois de decifrado, uma senhora se despedia de todos os seus, como se estivesse ciente de que seguia para um destino sem nome nem retorno.
porém, ainda hoje é melhor não falar desse tema aos habitantes locais.

a estação tem uma torre com umas escadas, e um velho relógio parado, enorme. marca cinco e vinte, sem que se saiba se é do dia, se da noite. às vezes a filha do patrão da taberna aparece ali só para mim, a altas horas, como se fizesse anos, toda aos folhos desdobrando-se desde o alto das escadas até aos velhos carris.
impressiona, porque a brancura da cena contrasta muito com a escuridão da noite e os tons manchados da abandonada gare, coberta por sucessivas crostas derivadas da combustão dos antigos comboios a carvão. aliás, esse cheiro intenso de madeiras carbonizadas ainda impregna o ambiente; mas ao menos ali não há o fumo do tabaco rasca dos clientes da taberna, nem o enjoativo incenso da capela.

começo então a subir as escadas, deixando pegadas escuras no manto branco, como se subisse por um enorme bolo de claras em castelo.
perguntei uma vez em russo à rapariga por que usa o seio a descoberto. e respondeu-me: está congelado; é uma mama congelada. preferi então mudar de assunto, e tentar saber por que se vestia de forma tão opulenta. sou uma tipa neo-barroca, não vês? mas já foi gótica, já andei para aí de preto, é conforme.
e acrescentou: vá lá, despacha-te, que voar daqui até casa ainda me leva algum tempo, e o meu pai anda sempre a espiar-me com o cano bem erguido da carabina com que caça os veados. tenho de chegar antes do último cliente sair.
disse para mim próprio: não há como ter regras claras para todas as coisas; uma pessoa orienta-se.

mas, sinceramente, se não fosse ter apenas escritas quinhentas páginas de uma monografia antropológica que será o meu doutoramento - quando estiver pronto, daqui a mais uns sete anos - não sei como conseguiria sobreviver assim.
é que preciso dessa bolsa para o leite e o pão com manteiga, senão com o meu salário apenas poderia obter lenha e chá uma vez por mês.
é certo que tenho em casa outra despesa: uma gata negra que se anicha no meu colo enquanto escrevo, à luz ténue do petromax. dá-me muitos beijos na boca, e confesso que os pelos do bigode, que de início me repugnavam, agora até me excitam; é o meu vício. chama-se angélica. tem olhos cor de opala, um brilho que lhe ficaria bem na coleira se eu pudesse dar-me a esse luxo.

pus-lhe aquele nome porque por aqui não há mais ninguém com quem verdadeiramente interagir, ou a quem fazer um gesto de carinho. continuando assim, nunca me separarei dela, e talvez venha a conseguir um estatuto qualquer de união de facto, que me dê vantagens fiscais.
mesmo a estas terras frias chegam certas inovações, e há que aproveitar os pequenos caminhos por onde a história escorre, como faz toda a gente.

copyright voj 2007

fonte da imagem: http://www.egemstones.com/opal.html

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