terça-feira, 16 de janeiro de 2007

madre-pérola


quando finalmente o regresso a duíno estava concluído (isto é, quando eu tinha voltado da longa viagem cujas conexões com rilke eram apenas um último pretexto para abandonar os comezinhos ritos a que a sociedade permanentemente me submetia, impedindo-me de me distrair, de me confundir com o Interessante), e devia dar o livro e a colecção por prontos, fui ter com o Filho, e disse-lhe:
- olha, o resultado está aqui.
mas ele respondeu-me, quase irreconhecível na sua deslocação para outra história (numa fugacidade que lhe desfigurava a imagem): não mos entregues agora, pois sabes que não tenho tempo, e que de imediato os perderia.
e na verdade teria razão: até hoje, nunca mais houve notícias de tal ente, que dantes me dava uma impressão de íntima proximidade, talvez uma ilusão de pertença, de ser o herdeiro; o escolhido para mais tarde caminhar, levando consigo, numa caixa, como relíquia, as minhas cinzas, enquanto noutras duas caixas semelhantes transportaria a colecção, e o livro. ou seja, sucessivamente, eu (identificada por um grande E sobre a tampa), o mundo (M) e a obra (O).
mas eu devia ter-me lembrado: hoje não há já ninguém para transportar seja o que for: apenas circula o vazio, arrastando notas de dinheiro das valetas, na sua violência.

então dirigi-me à Interlocutora, aquela que tinha sempre lido os meus manuscritos, interrogado comigo os objectos tirados do mundo natural, e disse-lhe:
- olha, está aqui.
mas só então verifiquei que a casa estava silenciosa, e cheia de presenças muito hirtas, altas, como se fossem estelas com pernas elevadas e uns rostos muito pequenos, de expressões fechadas para dentro de si mesmas.
era belo, talvez porque pareciam representar o tempo inacessível em si mesmo, apesar de estarem tão próximas, de serem tão materiais.

mas as várias cadeiras e sofás em que tínhamos julgado partilhar coisas (textos, histórias, objectos, corpos diversos) ao longo de toda uma vida, eu, o Regressado, e ela, a Interlocutora, apresentavam, sobre cada assento, desenvolvendo-se em halo elíptico, uma luz amarelada.
era tudo o que estava aí (desde quando?), além de, noutro compartimento sem móveis, uma figura dourada e brilhante de buda, pequena, muito perfeita no seu detalhe, e duas caixas de laca, que tínhamos trazido de um mercado da birmânia, e eram raras; uma delas particularmente apreciada pela sua figura de elefante ao centro de uma decoração geométrica.

abri-a na esperança de encontrar um vestígio do meu futuro, e de facto continha um papel, com os dizeres, perfeitamente legíveis: “não sabes que quando as pessoas partem, ficam os objectos em seu lugar, e que assim eles finalmente adquirem o seu estatuto invisível, mas fundamental, de presenças que sempre nos observaram com a ironia que se vota aos seres impulsionados pelas leis do desejo?”
e acrescentava, no reverso: “as pessoas são máquinas que se julgam - suprema ilusão - autoras do seu próprio desígnio, do seu próprio mecanismo. não têm existência, são vultos, correm atrás dos seus fantasmas, e ultrapassam-nos constantemente, nunca chegando a centrar-se em si mesmas. vivem no vazio como os peixes em seus aquários, quando se aproximam do vidro com aqueles lábios muito grossos, parecendo querer beijar-nos do outro lado da sua inacessibilidade.”

saí então para a rua, pois o Editor vivia e trabalhava mesmo do outro lado do passeio. eu costumava ocupar muitos dos muitos dias lá, sentindo o cheiro da preparação dos livros, impregnando-me de odores e imagens tipográficos. às vezes ia às casas ao lado, comer um bolo, ou mostrar as caixas com as pedras semi-preciosas e preciosas, que tinha coleccionado, aos agiotas que viviam de as vender no mercado.

mas a porta estava fechada; e sobre ela havia um aviso numa escrita para mim indecifrável. talvez fosse aramaico.
e dizia: mudei-me para outra cidade e continente, não sabendo ainda quando regressarei, ou se alguma vez voltarei aqui; mas se você for um autor que me procura para entregar um manuscrito, deixe-o por debaixo da porta, podendo ficar certo de que o lerei atentamente, com a consideração de sempre, etc.

pensei então assim: tenho de encontrar os Amigos. alguém tem de ler o meu livro, de ver os meus achados, foi para isso que, segundo julgo, regressei.
e foi então que me veio à memória uma antiga, terrível sentença da Interlocutora: tu não tens amigos. as pessoas que te ouvem e dizem admirar as tuas descobertas, fazem-no apenas para que as deixes o mais depressa possível, cansadas de ti; tu interrompes constantemente os outros, solicitando uma atenção absurda.

e, de facto, nesse momento, como que a confirmar o dito, ao procurar os (que me tinha habituado a designar) Amigos nas grandes praças, onde os encontrava dantes convivendo alegremente em esplanadas, apenas vi as fontes ao centro.
tinham grandes figuras torsas, cinzentas, deitando água, e em volta delas múltiplas manchas de pombos negros, espelhadas contra os charcos da chuva, sobre um mosaico de lajes de mármore estendendo-se para todos os lados, como uma imensa tapeçaria de pedra carcomida pelas sucessivas caminhadas dos transeuntes.

acercei-me então do centro.
peguei naquele manuscrito, o único que tinha. e disse para mim próprio: isto é papel, uma substância que veio de árvores, é possível que os pombos a comam, que os satisfaça. e comecei assim a desfazer o que trazia em pequenos pedaços, como se migasse pão, e a lançar esses pedaços brancos às aves.

sentei-me então num banco a vê-las aproximarem-se.

disse-lhes apenas: olhem, está aqui.

depois abri as caixas: a da minha colecção, e a das minhas futuras cinzas: e despejei o conteúdo no lago da fonte. quando a última particula, uma madre-pérola, pousou no fundo verde, pareceu-me que todas me olhavam com ar resignado, como se fossem os reflexos do meu próprio olhar.

mirei lentamente em volta, rodando o pescoço em trezentos e sessenta graus. e pareceu-me que os arcos de toda a praça me sugeriam, como num eco – tanto nas suas formas rítmicas, iguais e sucessivas, como nas sombras escuras que marcavam os vãos assim delimitados – esta sensação: a de que eu me podia dar por finalmente regressado.

voei então com os outros pombos, juntando-me ao seu bando, e pousando frequentemente no alto das basílicas, a observar de longe os turistas, os Amigos sentados nas esplanadas, o Filho regressado, a Interlocutora rindo muito com outras figuras, mostrando recentes aquisições e experiências, combinando novos encontros e sensações.

muitos se acercavam da fonte para tirar fotografias, e até olhar distraidamente o o seu fundo insondável.

copyright voj 2007

fonte da imagem: http://www.jorgetutor.com/spain/castillaleon/salamanca_provinvia/salamanca/
plaza_mayor/plaza_mayor11.jpg

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