terça-feira, 25 de março de 2008

Representação, performance, experiência

Foto: Martine Estrade. Templo budista. Sri Lanka.


Não sou um filósofo. Não se me pode pedir competência específica nesse domínio, que leva décadas a obter. Sei perfeitamente que o conceito de representação é dos conceitos centrais em filosofia. Porém, como qualquer um, apercebo-me de que não posso pensar no "meu" domínio - o da arqueologia e do património cultural - sem, por exemplo, passar pela discussão da importância que pode ter o conceito de representação.
Representação tem o sufixo re. Parece portanto apontar para uma ideia de anterioridade - apresentação - que seria repetida, replicada, na re- presentação.
Anterioridade e também desvalorização, pelo menos aparente ou potencial, possível: ao representar algo, ao voltar a apresentá-lo, pareço estar a referir-me a uma imagem, figurativa, gráfica, ou mental, que tenta reproduzir um modelo, um protótipo, algo que foi apresentado já. Isto é, a representação parece reportar-se sempre a algo outro. Esse outro, modelo ou essência, aparição primeira, coisa de certo modo transcendente, teria na sua imagem ou re-produção uma mera sombra, um mero simulacro, um mero traço imanente, um sinal.
A problemática, como é sabido, vem dos gregos e concretamente da obra de Platão, mas também de Aristóteles, retomada por autores contemporâneos, como Heidegger, Deleuze, Derrida, e muitos outros, em sentidos diversos, mas que em última análise desembocam numa visão não representacionista da realidade.
Não é meu intento ou pretensão, repito, discuti-la aqui nesse plano, no qual não sou objectivamente competente. O que não significa um desconhecimento, pelo menos absoluto...como talvez se verá.
A re-presentação pode não estar necessariamente conectada com uma ideia de perda (Derrida). A "repetição" nunca o é totalmente: é promotora de diferenças. A diferença pode mesmo advir da pretensa "repetição" ou revisitação de um tema, experiência, ou lugar. O senso comum no-lo indica. Nunca nada reproduz fielmente um modelo, por mais genial ou imperativo que se apresente, por maior que seja a minha vontade de nostalgicamente o restituir à sua origem, ou seja, à sua suposta completude original - isto é, à sua reconstituição verdadeira, à sua "verdade" intrínseca.
Já se vê como o conceito de representação implica o de verdade/fingimento/mentira, semelhança/diferença, o de reconstituição, o de fidelidade, o de original e de cópia, o de realidade ou real e de ficção, o de documento, o de testemunho, o de mimesis, o de presença/ausência, o de invisível/visível, o de imanente/ transcendente, etc., etc. etc.
Demos por exemplo o caso do teatro. Eu tenho um texto, escrito por um dramaturgo, que formou dele e com ele imagens mentais para poder escrever a peça, mas essa peça escrita (e eventualmente publicada, até acompanhada de notas sobre como se deve representar) necessita de um mediador, ou melhor, de um conjunto de mediadores, para que haja de facto teatro, "drama", acção viva sobre o palco.
Claro que eu também posso ler uma peça de teatro, como quem lê um guião de um filme, ou uma pauta de música (tendo competência para isso). Mas as experiências assim produzidas são muito diferentes entre si, dando lugar mesmo a perguntar se serão compagináveis. Mesmo que eu seja um grande compositor, uma coisa é a pauta que produzo, outra a interpretação que dela fazem, mesmo que dirigida por mim, "autor", investido de uma autoridade que tem muito a ver com o nosso peculiar saber ocidental, com a nossa concepção individualista de autor, de artista.
O actor, o encenador, e tantos outros são necessários a que aconteça teatro, drama, acção "envolvente" do espectador, pelo menos na sua forma clássica ocidental. Poder-se-á chamar a essa instância mediadora a do intérprete: a daquele que emite, que refaz. Vale a pena então mantermo-nos no âmbito da representação? Tem esse conceito já sentido?... é que se não tem isso vai também ver-se na psicanálise e em versões novas que podemos dar à actividade humana, ao desejo, ao inconsciente, à relação da transferência, etc. Todos esses pólos se diluem em novas configurações...
Ora, a nossa cultura em geral vive obcecada por esta dupla: a do original (a concepção do autor) e a da interpretação. A segunda não poderia existir sem a primeira, mas o contrário também é verdade, pelo que não há que fazer uma distinção hierárquica, embora se possa discutir a qualidade relativa de cada interpretação. Contra essas hierarquias se ergueu a obra de Deleuze e Guattari, se bem a entendo (não é fácil !!).
Dada a polivalência intrínseca à obra de arte, ninguém se lembraria de hierarquizar essas interpretações em termos de fidelidade a um modelo, em termos de uma sacralização da origem criativa. E, no entanto, toda a nossa cultura tradicionalmente (e no senso comum) está marcada por isso, pela fidelidade ao verbo, à palavra inicial. Poderíamos até dizer à ordem fálica, masculina, do pai criador do universo, de que o artista é uma "mera sombra".
E aqui temos de novo a metafísica da ausência, a nostalgia da perda (que tanto nos perde... mas a verdade é que fomos aleitados por este modo de pensar), como se houvesse algo de irrecuperável e de fundador nesta questão da representação.
Por muito que o "mediador", o performer "acrescente", por muito que reconheçamos que todo o valor está no intérprete que actualiza e revigora a obra, aquilo que foi herdado, que é um "património", algo de inicial, a obra humana, mesmo a obra de arte, ou a grande invenção científica, como a matemática, mais não é para nós habitualmente do que uma sombra ou vestígio daquilo que o Criador inicialmente concebeu.
Sentimo-nos "nada" perante a nossa ignorância, perante a nossa impotência de o igualar, de compreender a totalidade, esquecendo-nos que essa totalidade é de facto uma representação nossa... no sentido já mais específico de construção mental orientada pelo desejo e pela intencionalidade, pela vontade de abranger, de categorizar, que projectámos na ideia de "um todo poderoso e omnisciente", pura projecção do que gostaríamos de ser. Sem nos lembrarmos da insensatez de tal desiderato, porque somos seres históricos e contingentes lançados no mundo, e este é um permanente fluido, uma contingência total.
Não sei se o conceito "metafísico" que Platão exprime não vinha mesmo já de uma tradição pré-socrática, pré-platónica. Quando citamos a célebre frase - dos fragmentos conservados de Heraclito - de que não nos podemos banhar duas vezes no mesmo rio, esquecemo-nos de que há autores que interpretam essa afirmação como a constatação da aparente fluidez da realidade, por detrás da qual estaria a verdade imutável do "logos".
Representação pode também ter um significado de mediação no sentido político-diplomático, quando se fala de “representantes do povo” ou de “representante dos nossos interesses no estrangeiro”. Neste sentido o representante, a representação aponta mais uma vez para uma realidade que é mais importante, ou anterior a ela: está em lugar de algo que é de outra escala, mandatado para tal. Portanto há sempre na ideia de representação, nas suas várias modalidades, uma certa acepção “fraca”, de segundo grau, em relação a uma realidade anterior ou mais abrangente. O mesmo acontece quando se diz de uma amostra que é representativa do todo, ou seja, que na sua finitude substitui, de algum modo, esse “todo” cujos contornos podem ser difíceis, ou mesmo impossíveis de definir (no que implicaria tomar tal representatividade mais como uma hipótese do que como uma certeza).
De qualquer forma, a representação é sempre tomada como um reflexo, como um espelho deformante, como uma imagem empobrecida de uma determinada realidade, de um protótipo: é o que está em vez de. Essa realidade não é necessariamente a do “mundo real”, não implica a crença realista na existência de um mundo que chega até à consciência através da percepção, e que seria mais ou menos passivamente registado ou activamente interpretado pelo sujeito.
Barbara Bolt (“Art Beyond Representation”, London, 2004) descreve-nos esta passagem que se dá do mundo grego, em que ainda predominava a noção de presença, de apresentação, de pensamento e de ser con-fundidos, para, através de Platão, e depois do racionalismo moderno, o mundo se ter tornado cada vez mais num quadro, num duplo, muma mera aparência, conceito tão ligado ao de representação.
E nisto inspira-se em Heidegger para caracterizar uma forma de pensamento “representacionista”, ligada à tecnologia, à ciência, à própria arte.
A realidade é um quadro, quer para ser analisado pelo sujeito como um objecto, com o fim de lhe descobrir as regras de funcionamento, quer para ser observado, contemplado, como a “pintura” presentificada de um conjunto de recursos ao dispor da experiência humana. O mundo é um dado (ou conjunto infinito de dados) que se desdobra perante nós. Abre-se o caminho à importância da visão e da representação gráfica, a uma cartografia que vem até aos actuais computadores e continua em desenvolvimento.
É esta vontade de fixação do mundo (que Heidegger ainda reflecte, apesar da sua posição crítica e de insistir na experiência primordial de relação do ser humano mergulhado no mundo) que Derrida interroga.
A representação é uma tradução, é uma transposição, é uma vontade de tornar presente, e nessas “tentativas” a identidade fixa perde-se, transmuta-se. Bolt (obra citada) chama a atenção para a importância do ensaio de Derrida chamado “Envoi”, que é de facto um texto capital (v. por exemplo transcrito em “Psyche, Inventions of the Other”, Stanford University Press, 2007).
Nele o autor põe em questão a distinção de Heidegger de uma “coisa existente como presença” versus uma “coisa existente como representação”. Já na palavra presente há um “pré” que ela inclui... O que existe na verdade são um conjunto de produções, de presenças e de representações, em mobilidade constante, em improvisação contínua.
E é esta visão que nos permite ultrapassar o ambiente representacionista, fixista, que informa o senso comum e em particular, por exemplo, todo o nosso pensamento histórico, patrimonial e arqueológico.
A improvisação - e é aqui que entra a importância da performance – é simultaneamente presença e representação, mudança, fluxo, vida. Temos de ter um saber que se confunda com a mobilidade e a juventude da vida, que supere o horrível bolor dos academismos.
De um interesse pela fixação e suas re-presentações passamos a um interesse por algo que nunca teve começo nem tem fim, que não teve uma génese.
É a meu ver nesta abertura contra-intuitiva que se encontra o futuro de uma multiplicidade de caminhos, mas que também passam pela habituialmente chamada “teoria arqueológica”, se é que isso tem algum sentido.
Por isso Deleuze (veja-se de novo a síntese de Bolt, no seu capítulo realmente muito útil, “transcending representacionalism”) difere de Derrida em não dar à representação qualquer estatuto, mesmo complexificado.
É preciso destruir o regime académico da representação, valorizando a performance e a experiência, a diagonal do voo, que supera a matriz euclidiana que ainda nos conduz no dia a dia.
Em desequilíbrio, vamos inspirados na obra de arte, na arte do corpo, em que este, libertado tanto quanto for possível de padrões estandardizados, de imagens fixas, de gurus de todo o tipo e de recalcamentos castradores, se lança na aventura erótica do conhecimento rizomático, aberto. Essa a revolução que está por cumprir, entre muitas.
Mas sem a produção de novas subjectividades livres, o sistema reproduz-se e...para pior. Inquietantemente, tende a enquistar-se de forma assustadora. Falo a todas as escalas.
Não é preciso estar muito atento para se ter um pressentimento qualquer.

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