segunda-feira, 26 de novembro de 2007

santíssima trindade


Os arqueólogos estavam como sempre distraídos, à volta de uma área de terreno em que se ajoelhavam, raspando pó do chão que lentamente ia fazendo uma pequena nuvem em torno de cada um, e isolando-o dos demais; embora parecessem comungar num mesmo objectivo. De vez em quando, nos céus calmos, ou, outras vezes, nos firmamentos em fúria de nuvens e cores (conforme), ouvia-se dizer, como num refrão, ou como na parte de um salmo que se repete a espaços, com um misto de sofrimento e dor: “passado, por que nos abandonaste?”; e: “por que voltaste para trás, como um rio que corresse ao contrário, e te foste albergar sob as saias hirtas do criador?”; e ainda: “por que é que de ti apenas podemos ver restos, traços, fragmentos, pegadas, e nunca se presentifica aos nossos olhos a criação conjunta, ou seja, a unidade do tempo, a figura-modelo onde estão todos os mortos, os vivos, e os vindouros?” E continuavam, levantando-se por vezes, mas logo se baixando de novo, como se entoassem uma ladainha, como se estivessem ao pé do mar mas nunca o pudessem ver, e tão só pressentir do outro lado da terra. Um mar do além subjacente, do Grande Desaparecido, trazendo à superfície do solo, continuamente, despojos das suas ondas de pó, destroços e sujidade.
Só então percebi que os arqueólogos eram das pessoas mais equilibradas que tinha conhecido. Eu havia estabelecido uma tipologia simples, que dividia tudo em três, seguindo uma tradição antiquíssima.

Para as pessoas e seu estado mental, era assim, tão primária (tinha-me, de facto, baseado num manual da quarta classe, pensando que de qualquer fonte brota afinal a mesma água) como isto, a minha psicologia: os malucos-malucos, os malucos-normais, e os normais-normais.
Era, como se vê, uma leitura de sintomas, eivada de juízos morais e de vontade holística de classificar todas as pessoas (?) em apenas três grupos. Para o que me havia de dar ! (é certo que de algum modo, como sempre, fui lá conduzido pelo facto de pensar, e pela lógica própria do texto, da sua voracidade assertiva e classificatória, categorial).
Explico (esta é a palavra que esperavam, aqui está):
Malucos-malucos e normais-normais eram os tipos estatisticamente mais frequentes.
Em traços largos, por uma questão de economia, malucos-malucos eram aqueles que procuravam incessantemente, e estavam convencidos de que haviam de encontrar, tanto mais que iam encontrando. Então, a sua vida era só somar, só facturar descobertas, experiências, achados e sensações. Estavam bem. A pose-tipo era a da mão segurando a testa, para não deixar passar sem ser anotado o facto seguinte. Era pelo menos assim que se deixavam mais facilmente retratar, isto é, passar a ícones de si mesmos.

Normais-normais, por sua vez, eram aqueles por quem nunca tinha passado pela cabeça encontrar ou procurar fosse o que fosse, pelo que nunca seguravam na dita cabeça, que estava leve, mas no ventre, que enchiam quando podiam, sentindo-se bem depois de cada refeição, aquelas coisas: a entrada, o prato do meio, a bebida de acompanhamento, a sobremesa, o café, o cigarrito. Às vezes o charuto nos momentos de festa, o digestivo. Estes eram os que davam gosto à boca e viviam como um paliteiro, cheios de orifícios em todo o corpo. Desde que conseguissem preencher todos esses ocos (o que passavam todo o tempo a fazer, apenas interrompendo para dormir) sentiam-se bem. Diziam continuamente uns aos outros: “fica bem”, ao que os outros, como convencionado, respondiam: “tu também, vós também, eles também.” Este tipo de especímenes era relativamente frequente. Dantes faziam grandes filas nos transportes públicos; agora deslocavam-se sobretudo em carros, cada um no seu, e ao fazerem certas curvas na rua via-se neles uma expressão gloriosa. Viviam em plena apoteose da sua própria normalidade, celebrando-a.

Finalmente, havia a categoria dos malucos-normais, em que eu pensei dever incluir os arqueólogos.
Evidentemente que podia pôr aqui muitas outras especialidades, mas esta eu conhecia bastante bem, quer por eles ocorrerem no meio do campo, como quando passeamos, quer por estarem detrás de uns tapumes, cobertos de alcatrão, nas cidades que esventram para lhes arrrancar o passado entre prédios e destroços. Não há transeunte que, por mais apressado, não pare nestas ocasiões, levado pela curiosidade de espreitar, atitude socialmente aceite. E podem-se ver, a três dimensões, ao ar livre, e até fotografar. E, com uma câmara vídeo, ir mesmo ao ponto de obviamente registar a sua litania, que só ocorre de vez em quando, quando se dissipa o pó e, entre as nuvens, é possível ouvir o seu apelo de classe, que os identifica, embora às vezes reduzido às suas últimas palavras - “por que nos abandonaste?”; “nos abandonaste?”; “abandonaste?” – ou então só ao sopro final do “?”

Este tipo procura, ou procurava (como queiram pôr a narrativa), mas não diria que jamais encontrava; diria antes que jamais encontrava o que queria, como dom juan, ou sísifo, quer dizer, personificavam, ou criavam pela performance, a figura da busca incessante. Não era gente infeliz; apenas profundamente religiosa na sua crença. Viviam de vestígios, de partes, tentando agarrar o todo, puxar farrapos para o centro; podia não ser para a vida deles, podia ser para o futuro. Mas escatologicamente Algo havia de vir, de se presentificar.
Às vezes uns deles ficavam escondidos por uma nuvem, individualmente ou em grupo. Diz-se que talvez se esfregassem uns nos outros, para abreviarem a vinda, o achado; ou que então iam às proximidades e, com umas urtigas, irritavam as partes mais côncavas do corpo, próprio ou alheio, não tanto por mortificação, mas por verdadeiro prazer (aliás, quem distinguiria ambos esses estados um do outro? jamais alguma classificação insensatamente o fez).
Não vivendo na maluquice, nem na normalidade completa, como os outros grupos taxonómicos, e não encontrando nunca nada que os não compelisse a continuarem a procura, precisavam de intervalos para satisfazer necessidades fora de vulgar. Foi assim pelo menos que os conheci, sempre, ao longo de décadas.

Haveria de desenvolver futuramente estes temas, em torno do que me parecia fundamental, usando as categorias da tradição – como por exemplo esta, a santíssima, antiquíssima trindade, tão presente em todos os textos, com o seu começo, meio e fim – para entender o que se passava à minha volta, criar um novo saber feito de inspirações e expirações, no sentido pulmonar.

voj 2007
Foto: Natasha Gudermane

Fonte: http://photo.net/photos/gudermane

4 comentários:

Anónimo disse...

"Foi assim pelo menos que os conheci, sempre, ao longo de décadas."

___________


Inspiro.

Expiro.

Inspiras-me.


Pulmão de aço.

em flor.
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Sei das heras e dos pré-rafaelitas...nos livros que devoro desde "sempre,ao longo de décadas...foi assim que os conheci."




Beijo

Vitor Oliveira Jorge disse...

Pulmão de nuvens, que são leves, e te podem envolver.

Anónimo disse...

Droga! És um pregador!! Maluco-maluco? Normal-normal?

Anónimo disse...

" Onde nós aqui, em atropelo, não nos
encontramos nunca:começam os anjos
a notar-se, e pela mais funda vizinhança
se aproximam infinitamente em sacro passo acelerado."

R.M.Rilke