domingo, 25 de novembro de 2007

Por uma libertação sustentada dos processos de fabricação e de transmissão de conhecimentos



As ciências "duras", ou "exactas", ou mesmo "naturais" apresentam-se muitas vezes, relativamente às ciências sociais e humanas, com um indisfarçado autoritarismo, sob a face pseudo-ingénua da verdade insofismável que é suposto revelarem-nos.
Enquanto tais ciências - as primeiras, as autênticas - resolveriam problemas, não se perdendo em discussões "filosóficas", as segundas embrulhar-se-iam permanentemente em quest
ões, de tal modo complicadas e "subjectivas" que, em vez de apresentarem soluções para os problemas, muitas vezes só serviriam para criar mais problemas e adiar as soluções.
Esta visão esterilizada da "ciência autêntica", contraposta a um conhecimento impotente, porque constantemente embaraçado p
or problemas que levanta, é de natureza totalmente ideológica e de cariz autoritário.
Há, evidentemente, muitas "filosofias" subjacentes a qualquer conhecimento humano, e sempre modos de construir ciências alternativas, desde que se saiba ou queira pôr em causa evidências tidas como insofismáveis, sagradas, que não passam de axiomas, conce
itos, ideias construídas, mas aparecem travestidas como se fossem pontos de partida absolutos, verdades indiscutíveis. Tais "verdades" formam sistemas entrincheirados em redutos e redes que comunicam através de nomenclaturas, pressupostos, e metodologias que não são acessíveis ao comum dos mortais.
São protocolos de diferenciação e distinção, quer dizer, modos de organizar a economia política do saber, que se apresentam como o único saber, o saber natural (embora "a contrario" do senso comum), na medida em que assim o seu poder é incontestável. Ou seja, uma economia política, um sistema organizado de poder, aparece sob a face de um poder incontestável, porque oculta no seu próprio processo de apresentação a intenção de se apagar como uma opção económico-política. Apresenta-se como algo de "angélico" (ciência movida pela curiosidade de saber e pelo serviço ao próximo - todo o discurso político é sempre feito em nome do bem geral...) para reforçar a condição de "anjos" (ingénuos) dos seus destinatários.
Não há porém verdades indiscutíveis. Há uma política, ou políticas, de "naturalização" e de socialização de verdades. Mas a maior parte das pessoas não dispõe de conhecimentos para poder contestá-las. Mais: a maior parte das pessoas não dispõe da imaginação (da vontade política, ou poder) de se dispor a poder discuti-las.
Não há aqui qualquer "complot", ou "centro maldoso", maquiavélico, de onde irradie este sistema. Ele certifica-se todos os dias pelo seu próprio funcionamento, tanto dos sujeitos mais activos, como dos mais passivos, e sobretudo das margens contestatárias, que funcionam como diversão facilmente ridicularizável. Há uma espécie de "autopoiese" na sua reprodução. Todos somos formigas ao serviço deste formigueiro.
A própria complexificação e especialização dos saberes impede constantemente a sua reunificação crítica sob a égide de uma ideologia desvelada. O desdobramento das especializações compartimenta os agentes produtores e manieta, sem que eles saibam, os destinatários, que se não imaginam a poder forjar um discurso crítico.

E quando uma dessas políticas nega ou desvaloriza as outras, tal ciência não está ao serviço do conhecimento, mas sim, a montante disso, de uma determinada política, que pretende passar por insofismável.
Ou melhor, não há nunca, mesmo nas ciências mais exactas, "conhecimento puro", o que seria uma teologia, uma religião, mas sempre um conhecimento como um produto histórico, resultado de um processo de produção, sempre contingente, e apenas dominante porque é suportado por redes nacionais e internacionais de financiamento e validação. São redes que funcionam a várias escalas por forma a reforçarem mutuamente as alianças entre os financiadores, as revistas que publicam os trabalhos, os laboratórios que os produzem, etc., etc. Mas para o público as "ciências" aparecem geralmente "puras", insofismáveis, brancas como as batas dos cientistas, esterilizadas como as luvas dos médicos. Só uma criança acredita nisso.
Uma atitude que pretenda disfarçar ou recalcar estas realidades bem conhecidas não é de natureza democrática. É uma tecnoc
racia de tipo autoritário. Essa tecnocracia globalizou-se e é hoje a ideologia dominante.
A ideologia é o "ambiente" em que passa por natural e indiscutível (isto é, que rejeita como intruso todo o pensamento crítico das suas bases de sustentação) aquilo que é uma mera construção contingente, histórica e socialmente d
eterminada, do trabalho de produção de conhecimento.
Por cada sistema de trabalho de produção de conhecimento apresentado como indiscutível, porque é dominante, hegemónico, há mais mil possíveis - passe a expressão meramente enfática.
Trabalhar para trazer à
luz estas "ausências" é trabalhar politicamente por um saber plural. Não se trata de um relativismo anárquico. Trata-se de conquistar para vários saberes direito igual de cidadania.
E trata-se sobretudo de, relativamente a muita ciência que aparece revestida de poder soberano, tirar-lhe a bata branca e mostrar q
ue, por debaixo dessa roupagem, não só vai nua, como nem sempre é bonita. Faz sistema com os modelos burocráticos de sociedade que nos asfixiam, que se generalizaram a todo o planeta, e que já tiveram e têm versões (aplicações) horripilantes, nomeadamente no domínio militar, conduzido por ideologias totalitárias e agressivas.
Temos de estudar para mostrar que as próprias bases e axiomas de muitas ciências, por mais produtivas e úteis que sejam ou pareçam, são apenas escolhas metodológicas e teóricas entre milhares de outras possíveis.

Não se trata de contestar de fora. Trata-se de fazer uma antropologia crítica do próprio processo de construção do conhecimento e dos meios mediáticos e outros com que ele nos volta a face sorridente do líder incontestado, do líder todo poderoso, que exerce a autoridade e a hegemonia para o nosso bem.
Esta crítica, esta antrop
ologia não é ela própria, evidentemente, um poder soberano, uma verdade insofismável. Apenas uma perspectiva minoritária que procura constantemente reorganizar-se para poder olhar, face a face, a nudez bem vestida da ciência imponente e imposta como ideologia.





6 comentários:

Jorge Sá Pinto disse...

Permita-me comentar este seu texto, que eu considero brilhante.
“Discurso político é sempre feito em nome do bem geral...) para reforçar a condição de "anjos" (ingénuos) dos seus destinatários.” Eu acrescentaria: o discurso político é sempre dirigido a um alvo que o discursante pressupõe sempre a sociedade como algo que ele encara como estático, como se o tempo tivesse a qualidade de se quedar, mesmo por um instante e se os alvos do discurso fossem esponjas de poliuretano. Na sua arrogância mecanicista, não se dispõe a considerar a imponderabilidade e a dinâmica dos sistemas vivos.
”Não há porém verdades indiscutíveis. Há uma política, ou políticas, de "naturalização" e de socialização de verdades. Mas a maior parte das pessoas não dispõe de conhecimentos para poder contestá-las. Mais: a maior parte das pessoas não dispõe da imaginação (da vontade política, ou poder) de se dispor a poder discuti-las.”
Aqui julgo estarmos a viver ( na Europa) um estado de alienação obsessiva que é o objectivo final dos defensores do estado que focalizam a sua política para que os indivíduos se tornem cada vez mais afastados dos centros decisores do Estado e “apolitizados” quanto baste e ingénuos compulsivos, ou se quiser, idiotas compulsivos. Tal como as formigas que mais adiante frisou, que se limitam a fazer o que lhes é esperado que façam, confiando sempre que o que foi decidido, foi pelo bem geral. No fundo, é uma herança do Estado Imperial Romano. Cada vez que há eleições, há menos gente a votar.

Um abraço
Jorge Sá Pinto

Jorge Sá Pinto disse...

Caro Professor:

Vitor Oliveira Jorge disse...

É preocupante, de facto, a deriva que as coisas vão revelando para cenários de ficção que, há muito, escritores vêm construindo.Uma deriva que por exemplo Boaventura Sousa Santos tem analisado. Quanto aos dados científicos como fabricação, basta ler as obras do Bruno Latour, que até não são fáceis. "Vida de Laboratório" é uma delas. Claro que nenhuma está traduzida em português. Haverá no Brasil. Sendo um autor francês. é traduzidíssimo em Inglaterra e nos EU. Foi Michael Shanks quem mo revelou,numa intervenção notável que fez em 1998 (...veja-se o meu atraso, já na altura) em Gotemburgo, no Congresso da Associação dos Arqueólogos Europeus.
É por isso que julgo crucial ir a estas realizações internacional, a melhor das quais para mim (até pela sua dimensão mais pequena) são os TAGs. Este ano é em Iorque e a 13 de Dezembro lá estarei a partir... para o ano creio que é em Southampton. É sempre numa universidade inglesa, antes do Natal, e organizado maioritariamente pelos estudantes de pós-graduação. Pena ser tão curto, com aqueles horários rígidos que são típicos das realizações académicas anglo-saxónicas, e não durar mais tempo (nem haver mais dinheiro para se poder ficar...). Os arqueólogos britânicos (mas também de todos os países em que se fala inglês) costumam ir ao TAG, mas vão muitos de outras disciplinas. É um sentimento de frescura que ali se colhe.
Um abraço, Jorge!

Anónimo disse...

Texto acutilante na sua estruturação!
E traçando uma linha de fuga..meteórica...bem direccionada, batendo de frente, sem meneios, no alvo!

Não sei se faz parte daquela "margem contestatária" tolerada/incentivada pelo sistema...

Acredito no poder incontrolável da palavra inteligente que resgata a vida.

Vitor Oliveira Jorge disse...

AGRADEÇO OS ESTÍMULOS, PORQUE ISSO VEM PROVAR QUE, NO QUE ME DIZ EXCLUSIVAMENTE RESPEITO (e me autop-heroicizar), TENHO RAZÃO AO TER OPTADO POR UMA GESTÃO DO MEU TEMPO EM QUE INFATIGAVELMENTE PROCURO,PROCURO O CAMINHO CORRECTO PARA MIM, TRABALHANDO MUITÍSSIMO,ÀS VEZES CONTRA TUDO E CONTRA (QUASE) TODOS.
Ao fim de quarenta anos de trabalho, algumas pessoas começam a ver, também graças a este blogue, o que fui tentando construir.Finalmente!

Vitor Oliveira Jorge disse...

É claro que no meu comentário anterior, em parêntese, queria dizer: "(e sem me auto-heroicizar)".