sábado, 24 de novembro de 2007

deixa, continuamente

Foto: Leonor Sousa Pereira



Deixa-os pousar.
Restos na beira da areia.
Limite até onde se pode ir.
Pontuações do branco.

Talvez
Não saibam
Que do lado de lá da tela
Há mais.

Bandos que se escapuliram
Por buracos de bicadas antigas
Para detrás do écrã.

Se lá chegares
E sopesares o seu papo
Ainda quente
Sentirás um choque,
Encontrarás um mapa.

E no mapa,
Se te aproximares do ponto,
Entrarás noutro compartimento
Onde já estão também
Muitos deles pousados
À espera.

Explodiram para outro
Pano.

Linhas, fios, traços
Necessários
A que a tela exista,
À sua respiração,
À renovação incessante
Do rendilhado.

Restos que vêm na onda
Limites
Da linha aérea,
Do floco de espuma.

Explodiram para outro mar.
Criaram-se noutro tempo,
Com os ombros nus
Encostados ao nosso tempo.

Assim o passado
Habita num quarto contíguo
E tem o ouvido encostado
À parede.

Passa a vida
A tentar reconstituir-nos,
Ver-nos através do branco.

O passado tem pupilas
Brancas.

Renda
De tensões desmesuradas
Tricot de forças
Que se agrupam e se desfazem
Em espirais incessantes.

Em copos de leite
Pousados. Alinhados.

Malha.
Atada ao branco.
Voando no tecto.
Definindo as garagens do
Apartamento.

Circulando de abismo
Para abismo,
Indo cair de falésias enormes
Mesmo aqui,
Sobre fios.

Circo imenso
De sons brancos
Tentando arranhar o branco,
Deixar aí
Uma unha.

Quase conseguem
Por um triz.

Deixa-os pousar.
Vêm de algures.
Lançam-se contra os limites
Como as teclas agudas.

São gotas siderais
Que caiem no branco,
Aglomerados
Que o espremem furiosamente
A ver se deita sangue.

Mas apenas só mais branco.
Só uma ligeira espuma.
Só um limite na areia.

E paredes a desmoronarem-se
Sobre os mares do futuro
Já passado,

Rostos assombrados
Pelo ressentimento.

Linhas cruzando velozmente
A mediania das caras,
O espanto das expressões.

Apoteose dos pianos.
Os pés nus cobertos de bicos.
Vieram dar à costa.
Proliferam. Ferem
O Branco.

Querem rasgar as gaiolas
Da convenção.
Espetar-se em vôo
Nas caras das famílias.

Deixa pousar.
Atira-te contra o céu.
Rasga o écrã.
Rasga o pano da ilusão.

Ilude-te do lado de lá
Onde a surpresa encosta o queixo
Ao teu queixo,

Onde fala
A total mudez,
A sua arquitectura subterrânea
De arquivoltas.

Deixa.
Deixa acabar.
Ponto final
No vôo descendente
Dentro do poço.

Sobe ao mastro:
Luzes agora no infinito.

O mar aparece-te
Em todo o horizonte
sobre outro mar, e outro,

E todos re-pousam
Sobre uma só fotografia.

Um pássaro sai
De um piano
E explode contra o outro
Piano.

Numa mancha branca.

Como se um copo de leite
Fosse atirado contra
A matéria láctea,
E lhe imprimisse
Uma incisão violenta,
Centrada,
Sem consequências.




voj 2007
sobre "Mantra" para Dois Pianos (1970)
de Karlheinz Stockhausen


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