domingo, 27 de maio de 2007

tarde


É muito tarde. Não vês como os móveis, as tapeçarias, os ornatos dos acabamentos repousam no interior da casa?
É muito tarde para, vinda sabe deus de onde, subires a escada, e te aproximares com esse silêncio de ameaça dos andares superiores, onde as pessoas, as crianças, os criados, enfim, todos os elementos de uma vida normal já dormem há horas.

Sei. As figuras que nos avisam sobre o futuro vivem de noite, dentro dos sonhos, e mesmo quando parecem estar há muito adormecidas na cave, ou pousadas entre os utensílios de cobre da cozinha, sobem quando lhes apetece.

Não imagino porém de que parte da noite vens. Se habitas o lago, se o pequeno labirinto de buxos, se o velho celeiro; ignoro se és, numa das tuas metamorfoses, companhia de ganços, ou de tílias ou de magnólias plantadas pelos meus avós.

Sei que tentei construir uma vida sem ti, imune a ti, e que desci e subi milhentas vezes estas escadarias - por onde agora aventuras os pés nus, como se eles tivessem um poder decisivo – para me dirigir a muitas finalidades. Espero um dia ainda descê-las pela última vez, segundo a minha vontade, até cair nos braços de quem guarda a porta, e ser levado como os outros.

Mas até lá, tenho de vestir e despir o pijama todos os dias, preparar-me para sair, cumprir com os deveres sociais, gerir mil pequenos conflitos, deitar-me com a minha cônjuge, beber com ela um chá quente no serviço antigo.
Por isso, se puderes, inverte o teu movimento, ou passa para o lado de lá de algum espelho. Sei que estarás a ver-me sempre, do outro lado, aguardando a tua adiada oportunidade. O mundo é injusto, e tudo se tem de fazer a determinadas horas, segundo determinadas regras, das quais os sonhos não estão isentos.

O poder e a ordem é isto, temos todos necessidade, tudo conforme, e nós conformados, quaisquer que sejam os fantasmas que subam e desçam numa marcha insensata, como figuras insensíveis de Escher ou mulheres alucinadas de Delvaux.
O resto está nos museus para admirarmos aos fins de semana, com a família, aproveitando os programas educativos.

Está tudo regulamentado, até o olhar atónito das rãs e dos sapos que esperam por ti, lá fora, no escuro da noite, à tona da água, quando sobre eles dirigires as assustadoras lanternas do olhar. Se és uma metamorfose de serpente, poupa-os na sua inocência, pelo menos mais uma vez.



Para i. v.
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Foto: Jim Furness
reprod. aut.
Fonte: http://www.jfphotography.net/

13 comentários:

Anónimo disse...

:))

belíssimo ...

i.v.

Anónimo disse...

Os poetas vivem num mundo paralelo e impenetrável. É o admirável mundo
dos poetas. O que move um poeta? O que move um poeta a dedicar um poema(dos melhores que li) a um nome?
É como se aquele nome...e só um nome...fosse suficiente para estimular a fantasia do poeta. O poeta apenas necessita dum aquecimento breve, talvez obrigatoriamente breve...porque se o não fosse...já perturbaria
a autonomia do poema. A sua leveza. O poeta sobrevive com muito pouco.
Com nomes, palavras. O poeta não precisa de ninguém. Bastam nomes ou
os seus simulacros. Bastam fantasmas.

Vitor Oliveira Jorge disse...

O que move um poeta é a poesia. A dedicatória a esta ou àquela entidade, real ou totalmente imaginária, já faz parte de algo EXTERIOR ao poema. E aí o aleatório, o contingencial, o momentâneo de um gesto conta muito.
Só uma concepção muito ingénua da arte pode fazer imaginar que esta visa, na sua motivação profunda, um fim prático ou um efeito. Isso era quando éramos muito novos, e não sabíamos ainda fazer bem nada, ou quase nada, e tínhamos do outro uma visão romantizada...
É possível, com total respeito pelo outro, pelos outros, tudo isto... fazer um poema e depois ter um gesto de o dedicar a alguém, mesmo que desconhecido; são duas coisas diferentes e totalmente independentes.

Anónimo disse...

De acordo..no que toca à motivação dum
poema. Mas o gesto da dedicatória a um
vivo, mesmo que desconhecido, não é o
mesmo que a dedicatória a um gato ou a
uma pedra. Trata-se de comunicar com
um ser humano. Comunica-se para causar
efeitos.
.

Vitor Oliveira Jorge disse...

E qual é o problema? Ainda bem que não somos pedras!

Anónimo disse...

Mas a beleza das pedras está precisamente em serem presenças mudas

Anónimo disse...

Sim... servem-nos de espelhos...o que pode aumentar o prazer...sabendo que elas não vão dizer nada.

Anónimo disse...

Há também o prazer de tratar os belos humanos como belas pedras... Tudo é belo!

Anónimo disse...

"no meio do caminho havia uma pedra
havia uma pedra no meio do caminho"
Drumond

Anónimo disse...

As palavras e os seus efeitos...às
vezes...especiais.

Anónimo disse...

De que estão a falar?

Susana Jorge

Vitor Oliveira Jorge disse...

obrigado ao primeiro anónimo.
Em breve talvez volte ao ataque... com novo texto! Os textos são como cola nos dedos...nunca mais saem... e não queremos que saiam, mas que dêem lugar a novos estratos...numa insistência estranha, como a do pintor que retoca infindamente o mesmo quadro.

sr. grauuu disse...

E depois, também há aqueles textos que saem de uma só vez, fluídos como água, que fazem as nossas delícias.