terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

jaspe


esta é a história de um indivíduo que procurava uma mulher tão ansiosamente, tão desesperadamente, tão desastradamente, que estava sempre a tropeçar a meio da sua pergunta.
eu explico, estou aqui para isso.
chegava por exemplo a uma aldeia, e dizia ao primeiro habitante que encontrava à porta da sua casa (não sei porquê, as pessoas nas histórias estão sempre onde é preciso, à porta de casa por exemplo, talvez para que a narrativa se possa dar): “viu por aqui uma mulher sentada de costas?”
“como?”, respondia o interlocutor na sua língua local, ininteligível.
outras vezes interrompia uns jovens que se estavam a beijar há muito tempo numa praça cheia de gente, mesmo diante da objectiva que mais tarde eventualmente os tornaria ícones da fotografia moderna, e questionava: “viram por aqui uma mulher com uma trança longa, uma trança para aí de um metro, que, quando sentada de costas, lhe ultrapassa o plano das nádegas?”
“mas como são as nádegas?” perguntavam em uníssono os amantes para dentro da boca um do outro. e a solução assim não podia surgir; ou pelo menos ao indagante ela não se lhe afigurava fácil.
de qualquer modo, e ao contrário do comum das pessoas, não desistia nem nunca se cansava, porque a procura daquela mulher era a sua procura fundamental, quer dizer, era como se fosse ao mesmo tempo a sua profissão e o seu hobby, estas coisas pelas quais as pessoas às vezes acabam por escorregar à beira de abismos, aparecendo intactas do outro lado.
dirigiu-se então a um especialista em ciências da informação e comunicação, destes que agora surgem com frequência, sempre a afastarem a ponta da gravata de cima do teclado, e pediu-lhe: é possível encontrar uma mulher, sentada sobre as pernas traçadas, e tendo como envolvente um lençol cuidadosamente dobrado, que se acha nua, de costas, e possui umas tranças pretas, longas, etc.?
o técnico consultou o sistema, e disse: “falta o código para o etc”.
“como”, perguntou atónito o requerente, “como é possível que um simples “etc.”, um apêndice da frase, impeça tudo? quer que lhe descreva em pormenor o que em vez do “etc.” eu podia ter dito, ou seja, uma imagem exacta do que procuro?”
“não”, respondeu o informático com a autoridade de quem fala em nome de um sistema universal, “as suas descrições apenas trariam redundância, sombras que tapariam a clareza modelar pretendida; sem o etc., ou melhor, sem o código do etc., nada feito. ora, o tempo para o obter expirou, porque devia ter sido pedido logo no fim da sua frase anterior.”
“mas eu não sabia dessa regra, respondeu o nosso homem, ninguém me preveniu”; e acrescentou, numa súbita revelação; “jaspe”, “o código só pode ser jaspe!”
“porquê’ perguntou ainda o sistema (ou o técnico, pois homem e máquina eram só um).
“porque foi esse o título que eu escolhi para esta operação de busca, e para o texto que a há-de descrever. jaspe, a mulher de costas tem olhos cor de jaspe, é esse o código.”
“negativo”, foi a resposta obtida, “o texto não acaba ainda neste ponto: código irreconhecível.
“a única coisa que lhe posso aconselhar é a seguinte: voltar ao início da procura, recomeçar tudo outra vez. há sempre uma solução, estamos aqui para atender toda a gente. além das FAQ (frequently asked questions), há sempre uma linha de recurso para as restantes. o modelo é pois inclusivo e infalível.” e começou a cantar “the answer is blowing in the wind” de bob dylan, com ar de ser a música/imagem de repouso do sistema.
o homem disse uma palavra em estónio começada por f, esperando que não houvesse sobre ela uma regra para apanhar a pessoa desprevenida. atravessou a estrada que dava acesso às vias de escoamento da capital, e encontrou um camionista que se encontrava parado na fila há duas horas, aguardando pela sua vez de progredir um pouco mais sobre o asfalto.
e, decidindo-se a tirar enfim do bolso do casaco uma foto que muito prezava, e a expô-la assim à invernia, virou-a para o camionista, e perguntou: “conhece esta mulher ? é vital para mim.”
“também para mim”, respondeu aquele surpreendido, “isso é uma foto de uma fulana de leste que uma vez se me enfiou no meio da carga, e foi um grande trabalho para a tirar de lá: tinha uns belos olhos de jaspe, mas, como não era portadora de visto, nem de ninguém que a orientasse, ficou colada ao arame farpado da fronteira, onde acabou por se ver electrificada.”
“como, electrificada, que quer dizer com isso?”, disse o interrogante com um ar que, ao motorista, pareceu já algo alucinado.
“interprete como quiser, foi uma cena muito bonita, com ela em forma de cruz grega; lembrava uma imagem de cristo no seu máximo apogeu, mas em jeito de ícone ortodoxo. era uma mulher de fronteira, uma mulher com olhos de jaspe, o que, juntamente com a noite, o frio, o óleo que escorre naquelas paragens, o azul intermitente das lâmpadas dos carros de polícia, os homens que circulam permanentemente fora de horas, fez com que, enfim, tudo aquilo fosse o mais esplendoroso que se podia esperar. “
e acrescentou – “se quiser venha comigo, suba para o meu lado, tenho aí uma foto parecida com a sua, que me faz companhia quando atravesso a europa.”
“o senhor está-me a mentir”, afirmou o indagante, “isto é uma simples foto tirada da internet, de um site vulgar de fotografias de mulheres nuas.”
“sem dúvida. procuramos ambos o mesmo. venha comigo.” insistiu o camionista.
ao trepar para o assento direito do tir, e ao contemplar pela primeira vez a mesma foto, mas de frente, o indagante sentiu um imenso, inexplicável, alívio.
afinal estar face a face com o invisível, ou com o que se procura, é uma coisa, hoje em dia, vulgar, mesmo num qualquer veículo. pode-se não andar, ficar eternamente no mesmo sítio, de um mesmo lado de uma certa fronteira, suspenso nas cores e nos sons. mas não há tropeções nem ansiedades, cada um olha de frente, de forma precisa, o sentido que escolhe.

copyright voj 2007

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