quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

cornalina



que há no rosto que lhe é tão oblíquo?
o que está nele de ausente,
para onde olha o que não olha
nele?

por que é que o nosso olhar lhe fica sempre
um pouco abaixo?
por que vergamos os olhos perante
o poder com que se retrai,
olhando-nos?

o segredo não está no corpo,
nem na sua auréola,
nem no gesto,
nem na avidez do nosso
olhar.

por isso todas as perguntas são vãs,
e já foram desde sempre feitas
por todos os que aqui vieram.

uma fugaz conjunção
de forças, de sugestões nuas,
de átomos de sentido dispersos
como estrelas em volta;

essa aura,
esse invisível que o visível
só deixa entrever,

e eis-nos olhados para sempre, presos
ao que nele não há,
ao que ele – esse inominável –
eternamente adia.

e vemos uma legenda,
talvez extraviada
de outro expositor,
de outro altar:

“cornalina -
variedade de calcedónia,
de cor vermelha
ou amarela.”

e ficamos à espera de um sinal do rosto.
uma luz de vitrais que conjugue
coisas tão díspares,
texturas tão desencontradas.

uma linha iluminada que caminhe
sobre este chão de capela,
de museu, de biblioteca,

entre os expositores, os esquifes,
os artifícios do alabastro,

até dentro das vitrinas
onde estão depostos
os especímenes,

e onde tudo, por contraste,
é claro, nítido
na sua taxonomia,
na sua caligrafia de sangue
coagulado.

esperamos
essa outra coisa
que na sua própria ausência,
na sua improbabilidade,
se anuncia,

os pés puros,
ornados de anéis,
que um dia hão-se chegar,

traçando linhas no chão,
cartografias, orientações,

com o próprio brilho dos minerais
e das pedras preciosas.

será para essas inverosimilhanças,
para o lugar oblíquo,
inexistente,

que o segredo do rosto
se reclina,
como a querer esconder a sua cor,
a textura pétrea
da sua interrogação?

paramos no centro do espaço,
como sombras atemorizadas
pelo silêncio dos ícones,
pelas suas vozes entrecruzadas
de passado, tentando ouvir
um som nítido,

descortinar
uma antecipação grená.

sobre as grandes rosas-dos-ventos
desenhadas nos chãos de mármore,

encontramos-nos estupefactos
de tanta irrealidade
que nos submerge,

segurando os verbetes
onde sonhámos guardar o mundo.

na verdade, com tudo adiado:

enquanto o rosto se não decidir a olhar
com a benevolência que dele espera
o desejo ardente,

os arquivos milenários

- onde se esvai o sofrimento
dos condenados à repetição
(fazendo contas,
cálculos, listas,
previsões) -

não poderão largar
sobre os telhados brancos
os bandos de pombos,
também brancos,

que a imaginação aprisiona.

estaremos assim pendentes
da sensualidade das cores,
da suspensão das imagens,
do peso das amostras,
agarrados ao tempo como geóides:

olhando o rosto.

copyright voj 2007

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