quinta-feira, 12 de abril de 2007

poder

Num certo sentido, tendemos sempre a separar o pensamento da acção, esquecendo como os dois não só estão imbricados, como a sua imbricação é um problema essencialmente político. Não apenas de política geral, mas de poder disputado continuamente no espaço colectivo no sentido de se saber quem formula a cada momento projectos, e de se ver quem, e como, é capaz de os levar à prática, inviabilizando ou silenciando (directa ou indirectamente) projectos alternativos ou concorrentes.
O espaço social não é infinitamente elástico (mesmo ao nível dos actores individuais, cada um deles condicionado pelas suas circunstâncias específicas), nem os recursos extensíveis (mesmo que incluamos nesses recursos a imaginação humana mobilizável) para lá de certos limites.
De maneira que o terreno próprio do político é a disputa pelo agenciamento destes recursos finitos, através de formas de legimitação muito variadas e situadas a escalas e em graus de subtileza extremamente complexos e diversificados.
Um deles, muito importante sem dúvida, é o da "ideologia", designação simplificada que damos à aceitação como natural (algo desde sempre existente ou inconscientemente aceite como normativo) do que é uma realidade evidentemente produzida, que deve aparecer à consciência dos indivíduos não só como indiscutível, mas como o seu desejo mesmo, o próprio coração, ou núcleo, do seu projecto como indivíduos. Sem esta teia de crenças, por parte desses mesmos indivíduos, o laço social não se manteria, apenas apoiado em normas vivenciadas como exteriores.
As coisas têm de aparecer à consciência reflexiva dos indivíduos como convicções arreigadas para que tenham valor político, sobretudo numa "sociedade sem centro" (sem centro visível, claro) onde é o agenciamento do desejo ("liberdade") individual que aparece como horizonte mítico, como exsudação de cada um (qual bicho de seda) tecendo o casulo colectivo no próprio momento em que pensa "libertar-se" dele (a liberdade individual é por onde hoje passa o consentimento).
A retórica desta ingenuidade, desta "cegueira", é maravilhosa de analisar, caso a caso - como é que as pessoas se justificam na trajectória que dizem escolher.

Na verdade, enquanto uns actuam e pensam ao mesmo tempo, modificando as condições do ambiente (políticos, decisores, empreendedores, cientistas colocados em lugares de destaque com financiamentos que lhes permitem mobilizar clientelas), outros pedem para pensar mais tempo, ou até só já para pensar, no que são bem vindos, pois assim interiorizam definitivamente a sua impotência de actuar. Ficam num claustro, sem stress nem potência.
Na universidade, sobretudo nas áreas que não têm "aplicabilidade imediata", temos imensos exemplos destes efeitos: enunciações que darão lugar a outras enunciações, produções de discursos, enquanto extra-muros se fabricam realidades que a todos condicionam e mais tarde serão enunciadas como discursos, ou que podem até ter sido já antevistas como discursos pelos pensadores, mas sem ligação mútua entre pensamento e acção.
Há aliás uma certa ambiguidade nestas polaridades, tão depressa defendidas como os "locais" certos do enobrecimento (pensar com a mão apoiada na testa fica bem na foto, mas pode ser visto como um modo de inactividade), como, no extremo oposto, como formas de vida ridículas (um capacete de obra tem algo de carnavalesco na cabeça de um visitante-decisor, mas também pode dar um ar de que está em contacto com a realidade directa, ou seja, com a acção transformadora - cujas aparas lhe poderiam ferir a cabeça, se não protegida).

Os políticos, no seu pragmatismo, têm uma frase, a respeito do apontamento que estou a tentar deixar aqui, significativa: nós consultamos os técnicos, mas a vontade soberana do povo escolheu-nos para que tomemos as decisões, que por vezes são difíceis, especificamente políticas, embora com todo o respeito pelos técnicos entretanto consultados ou a quem até se encomendou serviços de estudo e aconselhamento. Quer dizer, uns pensam, só, podendo até dedicar-se a fazer doutoramentos sobre os assuntos mais exotéricos (exotérico não será o assunto, mas em geral o modo como "se lhe pega", que o pode tornar num produto inútil seja para o que for excepto o cv formal do próprio), mas aqueles que intervêm e "fabricam realidade" não se sentem estúpidos: além de pensarem, sobretudo fazem, incluindo coisas sobre as quais os outros depois ficam a pensar. Factos consumados que os historiadores se dedicam a periodizar.
Toda esta retórica dicotómica é fácil de desconstruir: o poder fala sempre desde o uno (o interesse comum) e sustenta-se na urgência (decisões inadiáveis - é a vida), não deixando de ter um sorriso irónico perante os "pensadores", importantes para que haja actividades de entretenimento de certo nível, um ministério da cultura, vernissages, inaugurações, acontecimentos, em suma (com a sua economia de animação, atraiem franjas de público e portanto de consumidores, etc.). Ora, com pouco orçamento, e devido ao ego insuflado dos criadores, os acontecimentos são um bom investimento "low cost": produzem imprensa, fervilhar social, permitindo até aos políticos (aos núcleos duros dos governos) algum descanso por detrás do écrã para prepararem e implementarem as "medidas de fundo", em grande medida traduções para o próprio país das medidas adoptadas no âmbito mais geral da UE.

As capacidades de actuar e os âmbitos do pensar (a sua inter ou transdisciplinaridade) são de certo modo homólogos, quer dizer, se eu me confinar à minha disciplina e ao seu ensino, jamais terei grande capacidade de intervenção no campo social para defender, na prática, a sua própria margem de manobra como agente de diálogo e de decisão. Há de facto aqui tensão entre duas formas de poder/saber, uma que vem da teologia, e que é o "saber puro", outra que vem da engenharia e da indústria, basicamente do séc. XIX, e que é o poder transformador.
O caso do ordenamento do território e em particular do urbanismo é flagrante. Não posso desenvolver este ponto aqui, mas leia-se por exemplo e excelente livro de Ignazio González-Varas "Conservación de Bienes Culturales. Teoría, historia, principios y normas", Madrid, Ed. Cátedra, 3ª ed., 2003.
Só um exemplo dos paradoxos típicos da modernidade, que o autor dá a pp. 341 e seguintes: em França, o barão Haussman (1809-1891) é o paladino da destruição da Paris antiga, medieval, em nome da modernidade, da racionalização, dos transportes, do lazer, da higiene, da acessibilidade dos controlos centrais às zonas mais problemáticas, etc. - de uma nova política. Corta a direito: mentalidade de engenheiro. Que seria Paris sem os seus grandes boulevards, um dos quais tem o seu nome?
Mas contemporâneo dele é Viollet-le-Duc, representante da outra face da modernidade: a do património, a da conservação e restauro monumentais, a que o autor espanhol chama "historicismo". È paradigmática a sua acção em torno do monumento medieval por excelência de Paris que é a catedral de Nôtre-Dame, logotipo da cidade antes da torre Eiffel. A arquitectura dita menor que embaraça a visão e contemplação do monumento a distância é eliminada, por forma a, restaurado no seu estilo original (mesmo que para isso a imaginação do restaurador não conheça limites), o monumento se integrar na cidade moderna e higienizada, espaçosa, aberta ao olhar do visitante e do turista. Veja-se como as duas atitudes se completam harmoniosamente. São duas formas de poder, do mesmo poder, mas a escalas diferentes, porque Haussman traça uma Paris nova, e le-Duc insere nela, como il
has, os locais do património, desprovidos do tecido original que lhes tinha dado, numa certa época, sentido e vida. É o começo de toda uma problemática dos "centros históricos" que vem até hoje, e que, salvo erro, e na minha perspectiva muito pessoal, nunca foi tratada em todo o desenvolvimento CRÍTICO, conectado com a história contemporânea, que merecia, apesar da proliferação bibliográfica infinita a seu respeito.
Quem trata do território, do espaço colectivo? O engenheiro, claro, mas também os variegados tipos de gestores que a modernidade criou, desde o indivíduo com formação de arquitecto paisagista, ou urbanista, ao géografo humano. O arqueólogo também ultimamente foi chamado a intervir, mas convenhamos que a sua actuação, quer no quadro do Estado, quer das empresas, é totalmente subordinada, simbólica no sentido corrente. A sua impotência deriva às vezes em frenesins fundamentalistas, de tipo mais ou menos "histérico". Mas na prática não tem qualquer poder, senão o de obedecer aos ditames do sistema, que está permanenbtemente a implementar soluções de carácter político, quer dizer, unilaterias no sentido de favorecimento dos grupos de interesses dominantes, como não podia aliás deixar de ser. Quem tem capital, manda. E o resto obedece, agradecendo que lhes mantenham o emprego, a bolsa, qualquer coisa que os (nos) faça sobre(viver). O arqueólogo fica com os restos do território que não servem para mais nada, retalhos onde se investe o mínimo para tirar o máximo rendimento turístico. As poucas tentativas que houve para criar circuitos e para implementar noções integradas de património, falharam ou foram-se esboroando. Hoje os jovens entram nos cursos de arqueologia sabendo, a maioria, que irá trabalhar para as empresas, dentro de uma lógica bem conhecida; ou então, uns "happy few" irão conseguindo postos precários ou bolsas sucessivas que lhes permitirão investigar alguma coisa, em troco de trabalho desalmado nas instituições para se tornarem indispensáveis ou não perderem o lugar. São faz-tudos.
Quanto aos seniores, são nobilitados como figuras simbólicas também, entretendo-se a produzir livros e a figurar em sessões solenes (às vezes envergando os seus nobilitantes trajes, espécie de nostalgia de tempos que já lá vão), por vezes num afã para junto de editores, decisores e jornalistas se fazerem notados.
Ainda os mais felizes, no meio disto tudo, talvez sejam os artistas, para os quais o seu trabalho liberal está mesmo a convir: têm o ego realizado, e têm o bolso cheio. Fazem arte e dinheiro, oh suprema perfeição e felicidade.

10 comentários:

Anónimo disse...

E se a realidade da arqueologia é assim tão má como diz, o que sugere para melhorá-lha? Que nos tornemos todos "artistas"? Parece que se esquece que, em Portugal, os artistas (bem como todos os outros) só fazem dinheiro quando são protegés de alguém e se movimentam em certos círculos
E será que os séniores (os tais que se entretêm a escrever livros e a envergar trajes nobilitantes) não têm quaisquer responsabilidade moral no estado a que as coisas chegaram? Por exemplo, será que os que estão nas universidades e ocupam agora lugares cimeiros, com uma palavra a dizer sobre quem tem ou não direito a uma existência e a uma carreira dignas neste país, chegaram efectivamente lá por mérito e comportam-se com um mínimo de ética e decência? Tenho para mim que, quando isto bater no fundo e as coisas começaram mesmo a azedar, no vale-tudo da luta desesperada pela sobrevivência, as hordas de jovens deserdados (da cunha, do nepotismo, do clientelismo) ainda vão pedir contas aos tais "séniores" pelo seu umbiguismo, pela sua cegueira e pela sua total e absoluta irresponsabilidade moral na condução do saber e da educação em Portugal nas últimas décadas.

José Manuel disse...

Excelente texto. Cada dia que passa sentimo-nos cada vez mais aprisionados nesta teia que se vai apertando cada vez mais. Estamos a viver um momento histórico dramático que é o fim do "Estado Social" e da ilusão (alimentada na Europa desde a década de 60) de que o desenvolvimento económico iria promover o desenvolvimento social e cultural das comunidades e de que a qualidade de vida das próximas gerações iria ser superior às das gerações que nos precederam. Puro engano! O nosso tempo é cada vez mais sombrio.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Ao anónimo: não comecei hoje a sugerir soluções, mas há quarenta anos...
Ao José Manuel: obrigado.Como de costume, estamos em sintonia.

Anónimo disse...

E que tal diminuir o tamanho do tipo de letra nos posts?...às vezes o que é demasiado grande ofusca.

Vitor Oliveira Jorge disse...

São gostos... o que custa a pensar e a escrever às vezes também se quer que se veja bem... ora o design deste blog obriga-o a uma coluna vertical, pelo que os textos se tornam de difícil leitura quando com letras pequenas.
É claro que um comentário sobre os "conteúdos" também seria bem vindo... bem como sugestões para pensar. Obrigado.

Anónimo disse...

a leitura tornar-se-ia mais fácil e reader-friendly se utilizasse uma letra um pouco mais pequena, numa cor sóbria, optando antes por separar o texto em parágrafos claros, com indentação. São sugestões...

Vitor Oliveira Jorge disse...

Obrigado pelas sugestões!

Anónimo disse...

"jovens deserdados (da cunha, do nepotismo, do clientelismo)" Se o anónimo se refere aos jovens docentes universitários, estes não são nenhuns deserdados, todos eles estão no meio académico também sempre por uma qualquer influência, PARTIDÁRIA, familiar etc. UMA PRÁTICA DE GENUÍNO SALAZARISMO perpetuada pelos feitores do novo regime, patente nos acontecimentos que envolvem o 1º ministro. Chegados a ESTE PONTO nada mais há a dizer. Os factos soam como trombetas.Penso que todos os jovens que foram banidos do sistema educativo, pela incompetência das elites que intencionalmente lhes traçaram caminhos impossíveis de superar na aquisição do saber e que os lançaram na mais absoluta desgraça e ignorância deveriam levantar-se e julgar em praça pública os responsáveis pelos crimes cometidos contra o povo português, contra a sua juventude que fica à margem,da mais elementer literacia... No entanto as elites que controlam o poder de decidir de forma errática, plagiando e mal, modelos estranhos à nossa realidade, prosseguem impunes, bem como as suas proles, verdadeiras dinastias, nos centros decisores. Aos outros, aos filhos dos que diariamente perdem o seu lugar de trabalho, oferece-se futebol e mentiras nas TVs, calando-os, rebaixando-os na sua dignidadede de cidadãos.Concordo que foram os séniores e depois os discípulos dos séniores que conduziram o País ao estado de vergonha em que se encontra no contexto europeu.

Anónimo disse...

Caro anónimo:
Os "deserdados" que refiro no meu comentário são, naturalmente, os mesmos deserdados que o anónimo descreve, mais os deserdados que, tendo percorrido (e muitos com grande mérito) todo o sistema educativo, incluindo a conclusão de mestrados e doutoramentos, se vêem agora banidos do mundo do trabalho, sem alternativas de vida ou sequer de subsistência a longo prazo. Foram defraudados e atirados para a sarjeta da forma mais vil, e isto depois de os paizinhos se terem sacrificado para além do que deviam para lhes pagar os estudos e um "futuro melhor".
Os efeitos "bola de neve de toda esta situação far-se-ão sentir dentro de muito poucos anos e não serão certamente agradáveis.

Anónimo disse...

caro anónimo

Não podia estar mais de acordo consigo. Então a aritmética dos deserdados pode fazer-nos pensar que estamos perante a "favelização" do nosso território com as consequências que se conhecem.

*entenda-se a minha expressão "favelização" enquanto empobrecimento forçado, a todos os níveis.