quinta-feira, 15 de março de 2007

Violência, conflito, e algo mais - 1ª parte

VIOLÊNCIA, CONFLITO, GUERRA,
CRENÇAS, RELIGIÕES, PODERES, ESTADO,
ARQUITECTURAS E CORPOS
- UMA VISÃO “À VOL D’ OISEAU”
SOBRE A FALECIDA IDEIA
DE UMA “NATUREZA HUMANA”
1ª parte


Ao escrever estas breves notas sobre tão vastos assuntos, julgo saber os perigos que corro (como desde logo o de ser conotado com uma certa - para não dizer total- inocência).
A tratá-los como minimamente deveria ser, mesmo de forma muitíssimo sucinta, teria de escrever não bem um esboço de “história do pensamento ocidental”, mas uma reflexão de conjunto, baseada numa revisão de bibliografia pertinente, sobre a nossa ontologia específica e os modos como se gerou e continua a gerar - ou algo desse tipo, para o que evidentemente não sou para já competente, e não me sobra muito tempo para vir a sê-lo. Alguma inocência tem certas vantagens. O pouco tempo que me foi concedido para estudar a sério algo fora da minha especialidade, não me fez ainda perder o gosto de pensar. E pensar é inevitavelmente afoitarmo-nos em terrenos antes murados, cruzando fronteiras com a leveza necessária ao vôo. Pensar é pairar acima, para usar uma metáfora da elevação própria do ocidente.
Então, vamos apesar de tudo ver, no fim, se valeu a pena, ou não, deixar aqui estes apontamentos. A sua acuidade, ou utilidade, não se medirá pela extensão, inovação, ou profundidade, mas por eventualmente suscitarem alguma reflexão entre os que me lêem, pela própria atitude (excessivamente atrevida) em si.

Creio que alguns “fantasmas” pendem sobre o saber europeu ocidental e sobre o de outras sociedades por ele formado (no sentido de vertido em forma), através das elites educadas nas universidades ocidentais, expandindo-se à escala universal, tanto quanto podemos depreender. E isso, apesar das inúmeras resistências, persistências regionais de “tradições” e formas de novos localismos, decorrentes do processo de globalização, como é bem sabido.
Seriam essas obsessões, por assim dizer, entre outras, as seguintes:
- a ideia do uno e do múltiplo, de partes e de todos, do modelo e da série, ou do protótipo e da cópia, da imagem e do simulacro;
- o evolucionismo, que herdámos do séc. XVIII e das Luzes (ideologia do progresso e da complexificação e artificialismo crescentes, ou de como toda a diferença convergiria finalmente para a unidade, tipicada em nós);
- a concomitante dicotomia natureza/cultura (a história seria a narração das vicissitudes da passagem da primeira para a segunda) e sua outra versão, matéria/espírito, e corpo e alma ;
- a ideia de “primitivo”, ou de “estado de natureza”, ou de “sociedade primitiva”, que decorre do quadro anteriormente referido.
Estes conceitos, ou pares de opostos, estão todos conexos e derivam de um pensamento binário, hierarquizado, em árvore (todos os ramos vão dar ao mesmo tronco, que os subsume), sendo que muitas formas de pretenso “monismo” parecem reproduzi-lo a seu modo.
Por exemplo, em todos os campos das ciências sociais e na própria filosofia, que as antecedeu e que com elas hoje interage, ou no ensaísmo de certos “pensadores” (que às vezes não gostam de se classificar como filósofos, sociólogos, ou de outro modo), a ideia de “sociedade primitiva” é uma espécie de “operador” conceptual para pensar o Outro, o diferente no espaço e no tempo. Só que, ajudado pela “compressão” espacio-temporal, esse outro se instalou há muito dentro de nós próprios, cindidos que somos, cada um, em múltiplas identidades à procura de um sentido, por efémero que seja.
Tal é a grande ânsia do pensamento europeu desde os gregos, isto é, perceber a alteridade (claro que para a reduzir, para a absorver), e para pensar as origens, a realidade antes da Queda e da expulsão do paraíso. No fundo, uma “natureza humana universal”, de que as várias concretizações ou actualizações no espaço/tempo seriam meras decorrências, meras variantes.
Todo o nosso pensamento, mesmo o que se apresenta como mais extremadamente anti-religioso ou agnóstico/ateu (e portanto parecendo, por aí, abrir à diversidade e à relatividade, deixando de se preocupar com a “chave da cúpula”) tem uma matriz bíblica, representando talvez em muitos casos uma nostalgia, ou, se quisermos, uma síndrome de perda, de incompletude, que tem levado à dinâmica histórica conhecida, tanto no plano dos valores económicos, como dos simbólicos.
É como se houvesse uma vontade obcecante de totalidade que, por definição, estivesse sempre cindida de si própria, incapaz de se conciliar consigo mesma, porque desdobra permanentemente o uno em dois, como que para “se queixar” dessa ausência, dessa ferida.
Isto é particularmente visível nessas máquinas de produção de juízos sobre o outro (mesmo quando é o outro, ou outros, de nós de que se trata, é claro) que têm sido a antropologia, a parte da arqueologia que diz respeito a humanidades sem escrita, ou seja, o nosso próprio passado remoto (“pré-história”), e a psicanálise, consagrada àquilo que de nós estaria de nós escondido em nós próprios. Algo de inconcretizável, mas que serve de embraiagem à maneira moderna de pensar o humano.
A vontade de exumar todo este “velado”, escondido, trazendo-o à luz das Luzes, ao pensamento/experiência racional, que significa? É este o nó do problema (o que me desperta realmente curiosidade, porque imagino a partir daí poder perceber muita coisa) com que julgo confrontar-me desde há uns quarenta anos, quer dizer, quando decidi dedicar-me àquilo que na altura, ingenuamente, chamava “paleoantropologia cultural”. A arqueologia e a poesia foram sempre, apenas, “campos de treino” dessa busca, dessa “medição de forças” fundamental, que, obviamente, só agora retrospectivamente conceptualizo assim – mal de mim se fosse capaz de o fazer no começo do percurso, transformando este em estranha, quão louca, teleologia pessoal.

Violência

O problema fundamental parece ser: a violência (individual e colectiva, e tanto nas suas formas óbvias como subtis ou encapotadas) decorre de uma falta de “cultura”, de “civilização”, é um desvio em relação a uma norma que todo o indivíduo “equilibrado” naturalmente cumpriria, ou, pelo contrário, faz parte da “natureza” do ser humano e da sociedade, sendo as suas manifestações meras emanações do recalcado, quais tremores de terra reveladores, à superfície, de uma magma profundo? Ou seja, é possível conceber uma sociedade ou uma pessoa radical e absolutamente não violenta? Talvez a questão esteja mal formulada, no que pressupõe de “inteiriço”, de homogéneo, na dita pessoa ou sociedade.
Este problema é central porque assistimos, no último século, precisamente no coração das sociedades que se consideram, ou consideravam, no topo do “progresso” (suposto ser tanto no plano material como moral) a manifestações de violência que ultrapassaram largamente a imaginação de qualquer indivíduo do séc. XIX.
E essa violência não só continua por muitíssimas outras formas, e se propaga por toda a parte, banalizando-se, como já se não pode fazer uma distinção clara entre o mal e o bem, o esperado e o inesperado, o estado de sossego e o de sobressalto, o visível/óbvio e o invisível/visível subitamente chocante, surpreendente, a aparência e a afloração da estranheza total.
A violência está aqui, é minha vizinha, e está também dentro de mim, como um “outro” desconhecido de mim. Os dados estão muito baralhados. O que é a “natureza humana”, se é que tem sentido pensar nesses termos (confesso que do meu desagrado quase “instintivo”)? O que é o poder? Como se geram e gerem as forças e as tensões que existem no indivíduo, nas sociabilidades, nas comunidades, e no planeta no seu todo, pela primeira vez unificado?
Sem dúvida, a violência tem se ser contextualizada, e unificá-la, transformá-la numa realidade trans-histórica é a melhor forma de jamais a entender. Por isso ter pouco sentido uma história, ou antropologia, ou sociologia da violência, que são formas de reificação, quer dizer, questões mal colocadas, cuja melhor solução é passar adiante.

Conflito

À partida, pareceria ter-se do conflito uma ideia muito sobreposta à de violência. Como sabemos, não é nada assim. O conflito tem em geral mais a ver, nas nossas associações de ideias, com interesses que se confrontam no seio social, interesses necessariamente divergentes, e de toda a espécie, que estão postos em situação de competição, e mesmo de luta, porque são com frequência antagónicos.
Uma das explicações, aliás, mais correntes para a explicação de rituais e festas, fenómenos cíclicos em geral, é a sua necessidade como libertadores e canalizadores de energias, para que estas não deflagrem abertamente sob a forma de conflitos, e se mantenham numa escala e numa esfera toleráveis. Nesse sentido, a festa tem uma explicação fácil na necessidade de “mimar” a subversão, como a melhor forma de manter o “status quo”: o pathos e o apaziguamento que se lhe segue, e onde tudo “volta de novo ao normal”.
Enquanto alguns autores consideraram essa situação conflitiva universal, própria do ser humano, por em última análise ele ter consciência da morte e da sua radical individualidade, outros procuram antes relacioná-la com condições históricas precisas, mostrando que a primeira generalização é muito simplista.
Enquanto uns deram ao conflito uma conotação negativa, pelas situações de violência, e até de guerra aberta, que pode desencadear, outros tentaram mostrar como o conflito é gerador de mudança, de dinamismo, do encontrar de soluções que permitam ultrapassar situações de desafio ou de impasse. Seja como for, decorrendo esse conflito de constrangimentos externos (aumento demográfico, pressões do meio, etc) ou internos à sociedade (“luta de classes”, quer dizer, diferenciação interior das sociedades entre oprimidos e opressores), quase sempre os autores apontam para alguma forma de escatologia, de fim da história: como se fosse alguma vez viável ultrapassar todos os conflitos e voltar-se colectivamente a um estado edénico de igualdade, fraternidade, equilíbrio entre os seres humanos e os outros seres, e o próprio meio ambiente.
A noção de equilíbrio (tão presente em certa ecologia ingénua), de homeostase, da teoria dos sistemas, é uma noção mítica, que parece apontar para uma nostalgia de se estar fora da história, e da contingência. A não ser que se pense o “equilíbrio” como um horizonte de utopia, em que o desejo de ultrapassar os conflitos levasse a uma estado de beatitude que não só é utópico, mas provavelmente conduziria os indivíduos ao autismo ou à submissão total.
Conflitos de valores, de crenças, de interesses, de poderes, de todo o tipo, atravessam permanentemente o corpo social e a vivência dos próprios indivíduos, os quais, mesmo quando “saudáveis” (conceito também muito discutível, mas que permite pelo menos distinguir as pessoas classificadas como neuróticas ou loucas) experimentam mais ou menos frequentemente, com os outros e consigo próprios, momentos de tensão (incluindo a reabertura de feridas narcísicas, às vezes remontando à baixa infância, claro) sem os quais seria impossível a construção da identidade.
Este o “estatuto ambíguo” do conflito, em todos os seus níveis, escalas, planos. Conflito é uma forma de desequilíbrio, se quisermos, implicando o seu contraponto, o consenso, num jogo permanente onde há, às vezes, erupções mais fortes. É simultaneamente impossível viver sempre em conflito, ou sem ele.

voj

4 comentários:

Greenie disse...

a propósito do post, vou apenas deixar uns links caso exista curiosidade por parte do professor de os consultar:
http://leninology.blogspot.com/
http://www.zeztainternazional.org/
http://www.refuseandresist.org

Saudações cordiais

Vitor Oliveira Jorge disse...

Muito obrigado. Ainda não vi, mas vou ver.

Luiza disse...

Como colocar uma foto aqui? Podes ensinarme?

Vitor Oliveira Jorge disse...

Segundo o meu colaborador expert nisto, "É complicado colocar fotos nos comentários (era preciso que a foto estivesse num servidor de fotos...)
Se a foto estiver online tinha de se colocar o comando em html..."