sábado, 10 de março de 2007

os arqueólogos


poema 5 do meu livro "A Suspensão do Mundo", V.ª N.ª de Gaia, ed. Ausência, 2003 (com fotos de Joaquim Hierro e prefácio de Isabel Pires de Lima)

aos que trabalharam
no castelo velho
e no castanheiro do vento,
vila nova de foz
côa, portugal



os escavadores (refiro-me aos arqueólogos)

têm, quando vistos num filme sem som,
uma luminosidade especial.
independentemente das horas do dia.
do vento que agita as ervas em redor.
das roupas sobre os corpos em movimento.
há neles um encantamento, uma luz,
que não se nota necessariamente no olhar
(o qual pode até estar oculto),
nem num gesto ou atitude particular.
também não é do verão, do ruído intenso dos ralos,
do calor que rodeia tudo,
ou do facto de, ao longe,
sobre as colinas arredondadas de xisto,
o deslizar das sombras ir compondo permanentemente
cenários diferentes.

esta fascinação é um enigma.
a música que se escuta num local destes permanece,
como subsistem ao longo de todo o inverno
os odores violentos das ervas secas contidas nas
[jarras.

intensidade, luminosidade, como uma dor
ou um prazer insustentáveis.
os arqueólogos, que vivem debruçados
sobre os tempos longos, têm dificuldade em explicar
por que é que estão ali.

mexer na terra, confundir-se com a cor do solo?
só isso, não.
adquirir, pela longa exposição ao sol e ao vento,
uma textura de argila, de pedra, uma rugosidade,
que seja a pátina de qualquer sabedoria?
também creio que não.
estarem juntos entre blocos de luz e sombra,
perto dos rastos dos bichos, do zumbido dos insectos?
qualquer explicação é insuficiente.

o que é certo é que quem os visita,
e logo parte, nada tem a ver com isto,
não compreende nada do que se passa ali.
são vultos fugitivos, sombras da própria partida
logo desde a sua chegada: ausências.

os arqueólogos, os que ficam, parecem pessoas à beira
de uma cratera, o seu passo é captável como o
[daquele

que dá a volta a um vulcão, e em cujas lentes brilha
a cintilação da lava intemporal, da mica preta.

hão-de reparar de longe, nas imagens de um filme
[lento:

o seu movimento
é como um bailado interminável, como uma interrogação
que a brisa traz, mas ampliada em gemido
que algum pássaro produz ao roçar a imagem,
por detrás da câmara.

e vistos todos os filmes, pensadas
todas as imagens, uma interrogação persiste,
como quando viramos a objectiva para a luz
e um feixe insustentável enche o campo
da visão: há uma paragem na explicação,
como um atordoamento.

copyright voj



foto de Joaquim Hierro. Forum Romano, Roma, 2005

2 comentários:

Gonçalo Leite Velho disse...

Este é um dos meus poemas preferidos (e uma fonte de inspiração) que transmite várias imagens.
Imagem vividas (e vívidas), bem como fotos e vídeos.
Mas o que é que deve ser efectivamente a arqueologia?
Será que para respondermos a esta questão teremos de partir da arqueologia em si?

Vitor Oliveira Jorge disse...

Penso que a arqueologia, como qualquer outro campo, tem fronteiras abertas e deve ser uma realidade disponível para a diversidade, que é o mais difícil de aceitar...onde deve acabar essa tolerância e começar a estabelcer-se uma barreira? Não certamente entre a arqueologia e algo fora dela (até porque ela tem a ambição de alastrar a tudo, como quase tudo hoje recorre às metáforas arqueológicas), mas entre núcleos de intensidade, rigor e clareza de sentido (novos nós de uma rede) e aquilo que é simples fugacidade ou burocrática repetição, na qual a maior parte se atola, desgraçadamente. A arqueologia, como qualquer outro campo, pode ser a redenção e a salvação, e o que salva ou redime tem de ser reinventado por cada pessoa, por cada equipa, por cada projecto, sem esquecer os que dos outros nos merecem respeito, isto é, são úteis à energização da nossa própria trajectória. Em suma, e o mais difícil: o equilíbrio, que é sempre um desequilíbrio em auto-correcção...O que certamente não podemos contemporizar é com a falsificação, a banalidade, o comodismo... chegar ao "pelotão da frente do conhecimento" exige pernas e exige um esforço tremendo, a habituação à solidão mais absoluta. E, obviamente, essa frente é uma ilusão, porque se está (felizmente sempre) a ser ultrapassado! Mas é uma ilusão que nos põe a fazer, e a conseguir atingir metas que de outra maneira nunca imaginaríamos ultrapassar. Crfeio que estamos nesta época paradoxal: há muito de bom e muito de mau, confundidos, misturados. A única saída é fazer uma paragem interior, trabalhar muito, e quando menos "se" espera... pôr cá fora um livro, um blog, um projecto, um poema, um filme, seja o que for...uma arqueologia em rede com a cultura em carne viva!