sábado, 21 de junho de 2008

o barato sai caro, etc - continuação


Por que é que a ideia de reconstituição do passado se mantém tão obcecantemente em arqueologia (como aliás noutras "ciências" que envolvem a temporalidade, e nas quais não vou entrar)? Porque essa é em última análise a justificação conceptual de uma arqueologia low cost. Uma arqueologia low cost é uma actividade sem quase dinheiro/tempo nenhuns, actuando em acções pontuais (de "minimização de impactes", dizem) totalmente dominada do ponto de vista político por "empreiteiros", ou seja, por outros interesses que pendem sobre o território, tendo como função justificar perante a opinião pública que o Estado e os empreendedores, que se baseiam em considerações de performance financeira, até respeitam a cultura e a história, porque chegam a pagar para o seu estudo, reconstituição e conservação, ou seja, para o património. Investem no inútil. Como diz Zizek, a caridade (de um Bill Gates, por exemplo) é um elemento fundamental do capitalismo contemporâneo, a sua justificação. Porque antes de distribuir riqueza é preciso produzi-la. Mas depois de a produzir fica-se com 99% do bolo e distribui-se por acções humanitárias e de "protecção do património" 1%, de acordo com as leis de incentivos fiscais, ou seja, vai-se através do mecenato recuperar a totalidade do bolo, tanto financeira como simbolicamente. É o jogo perfeito.
Ora, se se trata de reconstituir um puzzle, ele, antes de ser puzzle, foi quadro (o "passado realmente acontecido"), depois dividido em infinitas peças. De modo que se não é possível recuperar todas as peças (isso seria absurdo, pois a própria "natureza" se encarrega de degradar a maior parte delas) por muitas delas já se vai progredindo na compreensão do puzzle geral. Este obedece a uma regra, digamos, única, embora dividida em múltiplos labirintos e complexidades, de modo que basta obter alguns elementos ILUSTRATIVOS do puzzle. Aliás, a parte mais importante dele diz respeito às sociedades estatais, mais recentes, sobre as quais até há documentos escritos e assim (supostamente) estamos bem informados. Pelo que tendo de haver "desenvolvimento" e não podendo nós parar as paisagens e os territórios no tempo, estudando, conservando e musealizando tudo, o que se trata é de pescar bocadinhos que funcionam como alegorias, ou metonímias, do todo que representam. Como se fossem espécies: eu, para compreender o que é uma pescada, basta-me conhecer e compreender uma delas. Para estudar o "campaniforme", ou saber o que era e como "funcionava" uma vila romana, o ideal era ter o maior número de vasos campaniformes possível, ou o maior número de vilas romanas estudadas e preservadas, está claro. Mas, sendo tal desiderado por definição impossivel, absurdo, megalómano, alucinado, basta-me ter alguns EXEMPLARES para reconstituir o todo. Há portanto aqui um processo de universalização claro (embora não dito, oculto) na base, que é o de que uma parte vale pelo todo, REPRESENTA o todo inantingível. Há aqui implícita uma filosofia da representação. Por isso se fala de minimização de impactes. É pena perdermos tanta coisa - agora que sabemos que é à escala regional e em interacção de elementos, no plano do território e não no plano do "arqueológico estrito", que se poderia perceber algo - mas, paciência, é melhor que nada, o desenvolvimento e as obras e o presente estão primeiro, o passado vem depois. E ele é sempre recuperável no seu essencial, tanto mais que excesso de passado, excesso de memória não só entravam o presente, atravancam o espaço, como acabam (pensa e sente o senso comum) por se tornar uma obsessão doentia. Que diabo, vila romana a mais ou a menos, não é por causa disso que não vamos compreender a história, porque nós dispomos de TIPOLOGIAS, de formas de reduzir a diversidade à unidade e a partir de um fragmento chegar ao todo. Tal como as almas que se vão juntar aos corpos no dia do Juízo Final, há aqui uma escatologia: nós havemos de perceber, nós HAVEMOS DE RESGATAR A UNIDADE PERDIDA. Se o passado tem um sentido, nós havemos de conseguir lá chegar, tal como o Indiana Jones ao segredo procurado. Ainda por cima as dificuldades, as aventuras, os obstáculos, as incompreensões dos outros fazem parte desta história heróica, desta saga dos respigadores do perdido, dos reconstituidores do passado através dos seus bocadinhos que, como que por esmola pela qual devemos ficar gratos, nos deixou a natureza e a sociedade do desenvolvimento e da informação. Ou seja, a consciência pública.
Ao percebermos porém que as coisas não são assim tão fáceis, e que é frustrante a arqueologia dita do salvamento, da emergência, da minimização (faça cada um a sua escolha terminológica para esta acção de prestidigitação), e que ainda por cima esse mercado de trabalho é volátil, precário, e em muitos casos mal pago, muitos arqueólogos, em vez de tentarem elaborar um discurso crítico, fazem como as personagens dos filmes neo-realistas: voltam-se uns contra os outros. Casa em que não há pão todos discutem e ninguém tem razão.
Não tendo tido, na maioria, formação que lhes permita ir muito além do seu campo de licenciatura low cost (3 anos ou quatro), ou até mestrado, e mesmo doutoramento - estes últimos, cursos high cost (sobretudo agora com o sistema dos graus de produção em série, e mesmo assim em funil, porque o numerus clausus e o valor das propinas não permitirá à maioria subir), não dispondo de tempo livre nem de motivação psicológica para PROCURAR, a maior parte dos jovens interessados em arqueologia sente-se à deriva. Porquê? Porque procurar, mesmo com um utensílio como a net, é PERDER TEMPO, é derivar, á sair do seu campo disciplinar, dessa camisa de forças, E OLHAR PARA ELE DE FORA. E esse tempo a maior parte das pessoas não o têm, foi-lhes cerceado. Até nos casos em que tiveram a sorte de entrar num bom organismo e a partir daí terem algumas condições de trabalho. De trabalho para quê? Para produzirem mais do mesmo, desmultiplicando-se em contactos internacionais onde vão repetir o já dito, con-firmar o já sabido, ou quando muito obter bibliografia e referências para o que não vão ter jamais tempo para ler.
A INVESTIGAÇÂO é a aventura da deriva, mas não de uma deriva ao acaso (como alguns colegas e até amigos, por exemplo, pensam em concreto de mim... que ando perdido sem saber para onde vou). É O CONTRÁRIO DISSO. A investigação é dar-se tempo (dar a si próprio tempo) para as boas ideias virem ter connosco, E ESSAS IDEIAS PODEM OCORRER QUANDO SE ESTÁ A VER UM FILME, A OUVIR UMA CONFERÊNCIA SOBRE UM ASSUNTO TOTALMENTE NOVO, A PASSAR HORAS DENTRO DE UMA BOA LIVRARIA (COISA RARA EM PORTUGAL), A OUVIR UMA MÚSICA DE JEITO, A TENTAR PERCEBER UM LIVRO DE FILOSOFIA OU DE OUTRA MATÉRIA NÃO FAMILIAR. De repente, o link, o FAMOSO LINK acontece. A intuição de que ali está um caminho possível, embora a pessoa ainda não saiba qual é. Mas sente (sabe, fenomenologicamente) que é por ali que pode encontrar algo de verdadeiramente interessante e motivador. Esse é o momento da alegria, do júbilo.
O interessante e motivador, acrescente-se, não surge pois por geração espontânea, nem por iluminação mística. A maior parte das coisas interessantes vem como o peixe na rede, misturada com outras coisas que é preciso deitar fora. Há sempre uma certa des-ilusão na revelação, ela não é absoluta, exige procura, ir contra a sua vontade. O trabalho, mesmo para se obter prazer, é sempre uma força que temos de encontrar para dominar a vontade de seguir as forças mais evidentes, os ritmos mais óbvios, o que é mais evidentemente correcto ou sancionado. É preciso ter uma certa rebeldia, um grande desejo de fazer diferente, como aquele desejo que trabalha os artistas, sem horário.
Agora se não dispomos de tempo, ou se utilizamos o tempo disponível para a gestão chã da vida chã, se não resistimos ao mais fácil, logicamente nunca poderemos fazer nenhum trabalho que seja interessante PARA NÓS e (usando uma linguagem comercial) PARA EXPORTAÇÃO, isto é, que realmente ultrapasse os limitados muros da nossa disciplina e da nossa rotina, e estabeleça redes alargadas de interesse.
É preciso criar condições de distância e de certa clausura, ir contra a vaga de animação e de trepidação tola da sociedade em que vivemos.
Dir-me-ão que apenas uma elite dispõe deste tempo. Mas mesmo nós, professores universitários seniores, que talvez dantes nos pudéssemos considerar uns privilegiados por fazer parte da nossa carreira a investigação, hoje estamos a ser largamente cerceados nessa disponibilidade de tempo. Os tentáculos burocráticos como que querem operar aí derradeira castração: estamos à defesa (salvaguardando a nossa liberdade mínima) para PODER PENSAR, para no fundo podermos servir a nossa missão, que não é a de uma universidade tecnocrática, mas a de uma universidade autêntica. Essa universidade autêntica não está nos ditames de qualquer poder, está na consciência mais íntima de cada profissional com vocação para isto.
Por isso os que podem, reformam-se, cansados, frustrados, desejosos de fazerem o que facto sentem que sabem fazer melhor, incapazes de suportar tanta passagem para as suas mãos do que dantes era trabalho de serviços e de funcionários administrativos, eles também reciclados ou em diminuição, substituídos por sistemas de máquinas que seriam utilíssimos se nos ajudassem (como os computadores nos prometeram fazer nos fins dos anos 60) a ter mais tempo para o essencial, em vez de nos tornarem seus servos. Porque são sistemas que a prazo, se forem melhorados, podem ser óptimos, mas até ver constituem uma prisão, um dispositivo maquínico cego que, em vez de nos servir, nos acorrenta.
Porém quem se reforma perde os seus alunos. E essa componente está no sangue e na paixão do professor. Ele não é só arqueólogo, ele não é só investigador, ele é também necessariamente um comunicador, uma pessoa que aprende ensinando, inserido numa instituição, prestando um serviço. Não debitando matérias como uma máquina, mas furtando-se à mera relação burocrática e criando um novo espírito de aprendizagem mútua e multipolar, interactiva, ajudando os outros a pensar para que estes, com a sua experiência, o ajudem a ele.
Para se fazer algo de interessante nesta vida, é preciso lutar continuadamente. A era do canudo e a seguir do emprego já passou. É preciso mesmo investir na imagem própria (hoje tudo é imagem), na divulgação, na comunicação - esse aspecto é nuclear. Havendo tantas teias de interesses, de bloqueio de uns e de promoção de certas figuras (sempre em círculos restritos), que há-de um cidadão que quer PENSAR COMUNICANDO (e sem sentimentos de despeito, ou vontade de vedetismo, o que a prazo não dá qualquer "rendimento") fazer?
Ora é para isso que existe, entre milhões (ou biliões?) um blogue como este. As horas que me exige são horas preciosas para o meu bem estar, para o meu equilíbrio e felicidade, e, espero, de alguma valia para ti que me lês. Este blogue é um apelo à tua palavra, ao teu esforço também. A uma partilha em que eu não seja o mestre, o guru, mas apenas um companheiro de equipa, um elemento à volta de uma mesa de debate aberto e, se for preciso, duro e exaltado. De coisas soft estamos fartos. É maravilhoso discordar em amizade e consideração mútua, ser diferente entre pares. A concordância é sempre um momento de compromisso entre pessoas que só são interessantes se se afirmarem serenamente na sua diferença radical de indivíduos.
Sem essa felicidade e auto-realização não há trabalho criativo possível - só a corveia, o infinito calvário das tarefas para obter objectivos que, em si mesmos, são ocos e frustrantes.
Incluindo os de uma arqueologia rotineira e alienada. Há uma nova ecologia do saber de que ainda poucos tiram partido.
Quão raro é encontrar uma pessoa mesmo interessante e poder interagir com ela! Esse é o maior bem da vida. O que implica uma atitude de disponibilidade, mas também de extrema escolha... o mundo está cheio, infelizmente, de parasitas, ou de gente que nos quer mastigar como a pastilha elástica.
Voltarei a este assunto (claro).