sábado, 18 de agosto de 2007

Pai, por que me abandonaste?

Imagem (reprodução autorizada): Andrzej Malinowski
Fonte: http://www.galerieduchateau.com/
PHOTOS/MALINOWSKI/Christ.htm



Nascemos, vivemos e morremos na agitação, sem compreender nada. Mas que seria compreender, e sobretudo compreender tudo? Desejo insensato.
O tipo desta agitação é que muda ao longo da vida: há uma certa lentidão que se vai apropriando dos gestos, um certo embotamento dos sentidos, e, nos mais "cultos", um importante desenvolvimento de faculdades antes insuspeitadas: com excepção dos muito dotados ou precoces, a qualidade é como o vinho. Por isso a capacidade de vivermos mais tempo, hoje, pode trazer um acréscimo importante à humanidade em aspectos positivos.
Todo o ser humano sabe que vai morrer (não quer é que seja em breve...) e que essa morte tem todo o sentido, é ela que permite a sua existência, que o introduz na historicidade, que faz dele um ser, uma pessoa com uma biografia e com um desejo que o move, nem que seja o desejo de não fazer nada, absolutamente nada.
Há muitas pessoas (cada vez mais) que voltam às religiões (ou delas nunca sairam) e esses como outros rituais de pertença correspondem a uma necessidade muito antiga: uma pessoa sozinha, como indivíduo autónomo e isolado, é uma invenção do capitalismo e do mercado (nada tem a ver obrigatoriamente com uma democracia, velha utopia que se deseja solidária e que, no limite, não exclua nenhuma forma de outro como modo de afirmação de si).
Mas a crença ingénua - sublinho ingénua - em Deus, que é a da maioria dos crentes, está de facto em contradição com a própria condição da modernidade, tal como ela é entendida por nós, europeus, a qual desembocou na ideia de que cada um é que tem de decidir se acredita em Deus, se Deus existe ou não. Ou faria isso parte dos "planos de Deus", era ele também algo imperfeito ou masoquista por forma a criar uma criatura que o viesse a contestar, dizendo-lhe: é a mim, à minha consciência, que cabe decidir se tu existes ou não? Mas tem sentido perguntar isto aqui num pequeno planeta perdido num universo infinito, onde há milhões de possibilidades de formas de vida e de consciência? O saber é como todo o desejo insensato, mas a crença, que é o saber dos outros (ao querermos desqualificá-lo) ainda o seria então mais, assumindo na prática formas de vida gregárias e que a um europeu "culto", habituado a distanciar-se criticamente, parecem primárias e ridículas. Estar demasiado convencido de uma qualquer "verdade" é um dos modos do cómico, do apalermado. Mas os seres não prescindem do jogo: e o jogo para todos é o futebol, cultura simples e sem precisar de grande preparação, mas que põe em jogo as velhas pulsões da competição e de algo mais profundo que está em todos nós: este desejo de comunidade.
O estádio de futebol, ou a igreja cheia de fiéis a rezar, ou o centro comercial cheio de consumidores irmanados na sua fé em cada um deles e dos produtos que vão adquirir (da sua aventura programada em ar condicionado), ou as migrações de todo o tipo, incluindo os pacotes turísticos, são manifestações desta agitação das gentes que se têm de ver permanentemente incluídas num rito. De que o trabalho é apesar de tudo um dos mais importantes, e por isso a perda ou precaridade de emprego tanto contundem com as pessoas, com a sua identidade...

Ou será que Jesus, a personagem mais importante e axial da nossa cultura de ocidentais, disse por nós na cruz aquilo que sabe todo o que vai morrer, na sua angústia do desaparecimento: "Pai, por que me abandonaste?"
Porque na verdade, para um crente que se sabe justo, e sobretudo para o Filho, essas palavras não têm sentido, na medida em que ele sabe que a morte é na sua libertação, na sua apoteose, o cumprimento de algo que tinha começado na agitação do parto, no trauma do nascimento.
O fim de tudo, incluindo as preocupações, o medo, a angústia, a ansiedade, nossas companheiras de todos os dias. Por isso o estado de repouso das figuras divinas, tal como as representamos nas nossas estátuas, por isso o culto mesmo popular à serenidade, representado através de todos on indícios, mesmo os das lojas kitsch que vendem budas e pauzinhos de incenso.
O fim da agitação e, portanto, também, da pergunta.
Richard Hamilton tem razão, ao apresentar a sua anunciação, o seu anjo anunciático, como uma mulher belíssima, desnuda, acercando-se de outra mulher. Os anjos cansaram-se de não ter sexo, é aborrecido terem de fazer a gestão do maravilhoso entre Deus e os homens, desde o início do tempo até ao Juízo Final.
E os seus duplos, os diabos, esses ainda terão de martirizar os pecadores no inferno por toda a eternidade.
Desculpem-me os teólogos se disse algum disparate. Vou continuar a ler o Agamben para ver se entendo isto.
Deus está morto?... Se ele precisa do homem para o seu reconhecimento, haver um só ateu é já prova do seu enfraquecimento. Ou previu Deus a dúvida e a contestação como motor do seu reforço? Mas se precisa de ser reforçado, se, ao contrário dos deuses de outras religiões, teve de enviar o seu filho à terra para completar de algum modo o trabalho da Criação, então não é perfeito, omnipotente. Os paradoxos estão no cerne da nossa cultura cristã. Essa a sua beleza e o seu desespero.
O problema é o da qualidade da agitação que a vida constitui. Creio que a beleza (apesar de ser um conceito muito desqualificado) é a chave, ligada à situação de inconformismo e de reacção ao consumo mais kitsch, mais artificial. Questão de distinção, claro, questão de um pequeno-burguês que se quer afirmar pelo capital simbólico, que quer entrar na roda de uma elite que o não é porque já assim nasceu, mas que o é porque assim se fez à custa da permanente procura e inquietação criadora.
Presunção, ambição? Sem dúvida.
Às vezes quem me dera ser um pouco mais primário e curtir todos os prazeres do corpo sem pensar tanto. Mas cada profissão cria os seus tiques, os seus corpos, impregna na pessoa um certo número de estigmas. Eu habituei-me a pensar, e tento especializar-me nessa actividade (todas as pessoas pensam, refiro-me ao pensar reflexivo e caracterizado pela permanente auto-crítica e atitude de se pôr em causa, de compulsivamente querer aprender). Isso causa insónias, inibições, bloqueios. Envelhece-nos, torna-nos pesados. E os outros abandonam-nos, fartos que estão do stress da vida, desejosos cada dia de abandonar rotinas e maçadas. Como eu, que tenho de ler em pleno Agosto uma tese sobre Zooarqueologia. E, como sempre, à pressa, quando estou no Porto disponível para me esticar pelos dias e fazer o que de facto gosto e posso (a maior parte das coisas de que gostávamos não podemos, maldição...). Ai de mim! Leveza dos seres comuns, por que havia eu de ter decidido abandonar-te e vir para esta profissão de pensar, que é muitas vezes a profissão de apenas fingir que se pensa ????????
Por que procuram muitos profissões de rotina, em vez da criatividade tão propalada como valor? Ou por que transformam, ou se dedicam a, tal criatividade apenas em termos circunscritos? Sentem-se aconchegados na rotina, sabendo que não podem estar parados ou isolados, mas que também não querem o esforço de arriscar. De arriscar a sairem do ovo protector, certo padrão familiar e sobretudo maternal em que se sentem, quais crianças, protegidos?
Por que são as pessoas, na sua maior parte, e naquilo que mostram (por qualquer forma) tão pequeninas? Sentem-se abandonadas, com medo de pisar o risco, e perdendo cada dia o gosto de viver a vida intensamente, num orgasmo exaltante e espiritual. Abandonando-se umas às outras, correndo cada uma para o seu destino, sem perceber que, às vezes, certas raras vezes, era melhor voltar para trás, não se agitarem tanto.
Ou não será assim? Como dizia um professor de liceu que eu tive, e que era muito chato.

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