quinta-feira, 20 de novembro de 2008

O "efeito egípcio", segundo Mario Perniola







"O processo pelo qual a linguagem das aparências se autonomiza é o look: este não é a protecção ou o abrigo de algo de diverso, como era a moda clássica, porque é o todo; mas também não é o signo através do qual se manifeste algum conteúdo, como acontecia na anti-moda. Mediante o look obtém-se o efeito egípcio; a imagem torna-se coisa. O look anula tanto a nudez como a veste (...). (...) o look assinala a passagem do paraître para o parêtre, da moda para o modo, da aparência para uma espécie de ser." (pp. 86-87) (...) a civilização da coisa e do look não tem cara, ou então é só cara. (...) Só a múmia egípcia evoca uma vontade tão radical de tornar-se coisa." (p. 88) "(...) [a arte egípcia] não se apresenta como mimese da natureza, mas pretende criar entidades independentes dela, dotadas de igual dignidade e autonomia, que estão como coisas entre as coisas." (p.79)

Em "Enigmas. O Momento Egípcio na Sociedade e na Arte", Venda Nova, Bertrand Editora, 1994, o pensador italiano Mario Perniola (acima citado) tenta caracterizar a vivência actual através desta diluição da diferença entre pessoas e coisas, as primeiras sofrendo a experiência da coisificação, e as segundas parecendo dotadas de vida própria, como se de espectros se tratasse. Esse efeito egípcio é exactamente, como diz o autor, o de "uma estranha inversão: os homens tornam-se mais parecidos com as coisas, e, vice-versa, o mundo inorgânico, graças à tecnologia electrónica, parece substituir-se ao homem na percepção dos fenómenos."
Esta situação de colagem (de identificação) a um presente enigmático explica a atracção da arqueologia e, em particular, da egípcia, nas pessoas de hoje, continuando, por outras vias e razões, a que já exerceu nas épocas barroca e iluminista.
Podemos aliás dizer que estamos numa época neo-barroca, que coincide com o que muitos designam pós-modernismo. A vacuidade das pessoas apanhadas nesta ausência de projecto, ou nesta deriva de um projecto para outro, reflecte-se em novas canonizações e solenizações. Escreve o autor (p. 172): "
Já não existem elites, mas nasce o elitista: a manutenção da tradição religiosa, a protecção do ambiente, a conservação do patrimóno cultural e científico aparecem como causas nobres, susceptíveis de favorecem sucesso de actores sociais emergentes, e constituem dispisitivos solenes, capazes de criar solidariedade e ligações."
Numa sociedade móvel, fluida, nómada, despaisada ao máximo, em que as pessoas procuram desesperadamente âncoras afectivas, emocionais, intelectuais, nichos de identidade a que se agarram como tábuas de salvação, o enigma da esfinge ou da pirâmide pode ter essa atracção acrescida: ele permite um culto, um conjunto de ritos (ir pelo menos uma vez na vida visitar o Egipto), toda uma panóplia de símbolos distintivos que se inserem no "mercado" geral das consciências, desejosas de um emblema, de uma imagem, porque a imagem é toda a realidade.
Esta solenização, acentua o autor, é neo-barroca, isto é, privilegia a acção, o movimento, a descentração, sobre a centralidade "clássica" do sentido. Para o barroco, lembra Perniola, filosofar é agir (p. 180).

Berthold Brecht, n'
"A Vida de Galileu", põe na boca deste, que se dirige a Sagredo, as seguintes palavras: "Agora vês que é verdade. Continua a olhar pelo telescópio.Tu estás a olhar para uma nova verdade - não há diferença entre o céu e a terra. Hoje são dez de Janeiro de 1610. O homem escreve no seu diário: Céu, abolido."
Quer dizer, ao tele-aproximar a "terra" e o "céu", Galileu coisifica de certo modo o lugar da projecção dos sonhos, do fabuloso, do que se não podia ver senão a distância: a ciência da astronomia, que, como toda a ciência, é um regime de objectificação, de coisificação da experiência, de criação de uma "objectividade" que evidentemente é correlativa de uma certa forma de subjectividade. Ora, num livro que, pelo que li, parece ser notável (referido em postagem anterior deste blogue, e que acabei de encomendar - "Galileo and the "Invention" of Opera. A Study in the Phenomenology of Consciousness", 1997) Fred Kersten vai considerar como invenções barrocas quer a ciência moderna, quer a ópera. Há um "mundo barroco" que atravessa as artes, a música, a pintura, as ciências, a filosofia, a vida quotidiana (ver recensão ao livro em Human Studies, 2005, vol. 28, pp. 87-94, de onde aliás retirei a citação de Brecht acima transcrita). Ele é, para Kersten, baseado na distância e desconexão da vida real relativamente à sua representação (v. Charles Harvey, Husserl Studies, vol. 17, 2001, pp. 155-164), o que separa a consciência barroca (manipuladora) da clássica (contemplativa), que lhe é anterior. Nesse sentido, de trazerem para o mundo humano, através da janela ou do óculo, o mundo todo, de o trazerem para dentro de um espaço que pode ser o de um teatro ou de um laboratório, os seres humanos fazem com que a ciência e a ópera, cada uma delas com a sua tecnlogia, sejam aparentadas, gémeas. A visão deixa de ser centrada, a de um ser humano presentificado em relação ao quadro regido pelas leis da perspectiva centrada, para ser uma visão a partir de um nada, de um ponto abstracto, matemático, criando-se assim, diz Kersten (p. 164, citado por Harvey, recensão referida, p. 160), "o novo significado da coisidade das coisas, tornando todas as coisas conceptualmente com-possíveis."
Nós somos filhos dessa transformação radical na forma de estar no mundo que Galileu anuncia, mas que também o teatro barroco encena.
Esta estranheza de se estar num mundo em que somos impulsionados pelo desejo de objectivar, por esse vazio ("gap") que evidentemente continua até hoje.


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Fonte da imagem:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Egypt.Giza.Sphinx.01.jpg

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