quinta-feira, 22 de outubro de 2009

exílio






Edward Hopper, Excursion into philosophy,1959




Deixaram-te umas sílabas sobre o peito, e eu agora tento juntá-las sem o tocar, com a delicadeza do recém-chegado que conserva o chapéu na mão, que ainda não pousou a mala. Olho-te. Inundada pela claridade transcendente na distância. Sim, o teu peito nu, o teu peito intocado por mim, todo traçado de sílabas suaves, como se fossem fragmentos de sentido que eu tento compor para chegar, para acabar finalmente por chegar. São vestígios de beijos de outrora, pistas de outras bocas que por aqui passaram, e me fazem hesitar. Há uma depredação na tua nudez, parece-me, mas isso era de esperar, todos nós somos terra retalhada por inúmeros traços, e sinais, e feridas, e alvoroços. Às vezes risos, às vezes exaltações que elevam o peito, que trazem os teus seios acima, magníficos. E no entanto não os toco, como se viesse de um exílio, como se não soubesse sequer o teu nome, como se tivesse medo de te acordar da tua claridade assombrosa, assombrada. Não sei se poderia alguma vez habitar aqui, habitar-te, se me deixarias puxar pelo que ainda te cobre, e ver as sílabas todas. As sílabas vermelhas, o seu odor vindo de dentro. Transportá-las para dentro da boca, compor palavras novas, erguer um tecto nesta planície, chegar finalmente aqui por uma vez. E depois dizer-te parabéns, sem sequer saber se vai haver festa, se virão pessoas, se me sentirei a mais entre tantas bocas ávidas de álcool, do desejo de te marcarem de novas sílabas, de te deixarem palavras escritas sobre o ventre, que me excluem. Não sei. Exilado estou perante um conjunto de sinais. Preso me encontro na minha profunda inexperiência. Sou um predador também, sim, mas rodeado por gaivotas que se podem tornar agressivas nos seus bicos recurvados. Recuo. Pouco a pouco faz-se sombra sobre ti, e os teus seios adormecem em tons que cada vez mais se diluem no negrume. E a minha presença esvai-se também no branco que moldura a cena.


voj porto out 2009

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