sexta-feira, 30 de outubro de 2009

de través




























Enquanto caminho, desejoso de chegar
Ao meu objectivo, vencendo, com a força das pernas,
De todo o corpo, este atrito da atmosfera que
Atravesso –

Ouvindo o som que os meus pés calçados
Em botas grossas fazem nos grãos da areia
Das áleas, o som interior do corpo trabalhando
Como o da casa de máquinas de um navio –

Enquanto atravesso assim a noite entre o esperançado
E o indeciso, nesta permanente fluidez de sensações
Que me percorre, e vejo as árvores penderem
Numa certa direcção, como se quisessem
Também caminhar –

Avanço, parece-me que se aproxima o meu objectivo,
E que aquilo que foi o mundo em meu redor
Vai escapando para trás
E arredondando-se, e abrindo-se, à minha frente –

Sinto-me imerso na noite como se esta fosse uma tinta,
Uma onda de tinta enorme que tivesse descido
E me envolvesse, dificultando o que mais gosto,
Ver os contornos nítidos, recortados até fenderem a vista,
Dos objectos –

Enquanto caminho assim triturando os grãos de areia
Por fora, e triturando, dentro, os meus órgãos que nunca vejo -

Nesta pressa de chegar, nesta antecipação de tanta coisa,
Que nunca chega a aparecer como esperada –

Enquanto caminho do nada para o nada,
Ou do tudo para o tudo, neste sem-sentido
Pleno de razões, que para mim próprio repito -

E fotografo, com detalhe e precisão, as cores, os ramos, os troncos,
Coisas a que ninguém liga agora neste jardim anoitecido
Onde só os lampiões acesos parecem marcar, aqui,
E mais além, a vibração eléctrica de um peito humano -

Atravesso a própria devastação, como se atravessasse
Um filme que já vi, e sem qualquer esperança de encontrar
Quem quer que seja, como se habitasse um jardim de bancos e
Janelas iluminadas ao longe, triturando pouco a pouco,
No início da noite, mais uma vez e naturalmente, a minha morte -

Com um passo apressado, como se fosse ao encontro
Do amor, eu, o desencantado eternamente encantado,
Por esse próprio movimento vou, esses sons, pelos jardins abandonados,
Em direcção a destinos inventados, onde já chegou toda a gente -

Antes de mim, e a multidão vestida, arranjada, se acumula
Como se estivesse tudo reunido em torno de algo crucial,
Como se, tal como as árvores inclinadas -

Tudo se voltasse ansiosamente para o acontecimento,
Numa espécie de excitação que lá fora a noite não deixava adivinhar.

Piso o espanto, desço as escadas do espanto, entro nos átrios
Iluminados pelo espanto, as caras lívidas dos que vieram aqui
Passam para trás de mim, para o meu passado, enquanto o mundo
Se arredonda à minha volta, como se eu estivesse a filmar
O meu próprio movimento -

Nesta cinematografia atravessada de azul escuro e
Reflexos de través.





texto e foto voj porto out. 2009

1 comentário:

Blogat disse...

Deve ser assim a "passagem" para uma outra vida,dentre tantas vidas que vivemos nessa mesma vida,nesse encanto desencantado sem fim.
Abraço.