quarta-feira, 27 de junho de 2007

Por um conhecimento do prazer, para o prazer do conhecimento



Qual a motivação, genericamente explicável, para a minha busca inter e transdiciplinar da vida toda, mas acentuada nos últimos anos? Por que razão sempre, na medida do possível, tive um pé dentro da arqueologia e outra fora dela, como quem receia, se puser os dois pés num mesmo sítio, ser engolido por uma areia movediça, sob a ilusão da estabilidade e do equilíbrio aparentemente fáceis?
Por que é que da arqueologia estive sempre a passar para a antropologia (cultural ou social), desta para a filosofia, e em geral para todas as ciências ditas sociais e humanas? Por que razão nunca quis ficar só dentro da arqueologia? Por que é que recusei pôr de um lado a ciência, como conhecimento racional, de outro a arte, como experiência estética e emocional, e de outro a vivência geral, como se esta pudesse passar sem aquelas, como se aquelas se acrescentassem a esta? Por que é que quis sempre procurar as articulações entre o meu campo de pesquisa (um domínio muito limitado dentro da arqueologia, como acontece com qualquer investigador) com as do meu campo de expressão (a poesia, que é também uma forma muito própria, muito pessoal, ou não é poesia, mas, tal como acontece em ciência, repetição, variação pouco criativa em torno de tudo o que já foi “achado” ou dito)?
Obviamente que todo este discurso auto-justificativo, retrospectivo, tem algo de ilusório: trata-se de uma coerência encontrada “a posteriori”, porque só se pode ver em perspectiva, isto é, depois do acontecido; tem algo de busca identitária, securizante, que numa pessoa de certa idade se reporta muito a uma narrativa, a um passado, que é a sua maneira de abrir a imaginação do futuro.

Quando estou posto perante uma realidade observável, uma realidade que eu procuro entender, de um modo ou de outro eu tenho em primeiro lugar a questão da moldura. Quer dizer, eu fixo a atenção num objecto (o qual pode ser abstracto, ou uma realidade em movimento) que enquadro segundo uma metodologia de observação. Claro que a escolha dessa moldura (aquilo que os jovens enunciam sob a forma da procura ansiosa de um tema para tratar nas suas “teses”) nem é totalmente consciente, nem é um acto simples ou individual. Implica um longo trajecto anterior, em que toda a experiência de vida é mobilizada, dentro de um ambiente social que sanciona positivamente a escolha (“a priori” ou a “posteriori”).
Escolher um tema e uma perspectiva são actos coetâneos, implicam-se um ao outro, e correspondem a uma arbitrariedade reducionista: eu decido ver isto, por uma janela determinada, colocando sob a égide da minha atenção algumas coisas para esquecer os milhões delas que estão em volta: concentro-me pois, e ao concentrar-me estou já a afastar-me da experiência sensorial corrente, da sua multiplicidade.
Num sentido, estou a provocar uma morte: o conhecimento “erudito” (científico, estético, filosófico) é um um nado-morto para a pessoa comum, que não assume aquela postura, que não está dentro daquele universo disiciplinar de reclusão onde, para se produzir um saber, há que renunciar à ilusão de saber/sentir quase tudo o que está em redor.
A fixação da atenção tem a sua máxima expressão na imagem ou no conceito, quer dizer, num discurso icónico, e/ou utilizando a linguagem, o texto, obedecendo a certos protocolos e regras (nem que seja para os negar) mais ou menos legitimados e partilháveis. Quer dizer, produz resultados que estão insertos numa cadeia semiótica destacada da semiose corrente, e incompreensível (indiferente) para o não iniciado. Por outras palavras, conhecer é produzir “coisas artificiais”, que aparecem como opacas ou absurdas (se não risíveis, paródicas, ou loucas) para o comum das pessoas iletradas (ou educadas segundo outros códigos).
Por mais que procure reconciliar-se com a vida corrente, o conhecimento fixa, tenta por assim dizer ir ao arrepio daquela: onde estava um sentimento, justapõe-se uma explicação; onde estava um dado adquirido, vem uma desconstrução desfazê-lo; onde estava uma ilusão vivida como verdade, o conhecimento vem revelá-la como ingenuidade; onde se existia sob o regime da evidência, o conhecimento instala o regime da suspeita, de tentar ver por outro ângulo. Por isso, por exemplo, uma jurista me dizia, e muito bem, mas com alguma candura (isto é, como se eu não soubesse isso), que, ao contrário do que se diz correntemente, de que toda a gente é inocente até prova em contrário, os juízes e de uma maneira geral todo o corpo do direito, intimamente pensam exactamente ao invés.
A pessoa que investiga, em qualquer campo, sobre qualquer assunto, instala uma política de observação, abre um dossier; instaura uma realidade como objecto, coisificado; aprende a desconfiar; exerce um poder, tem consciência plena disso, e sabe que esse poder é um valor raro, e caro, que tem uma cotação no mercado. Ou seja, o saber, o poder e o capital são três óbvios irmãos gémeos, constituem um eixo basilar da política (palavra que tem o mesmo radical que polícia). E mesmo o saber contemplativo, “desinteressado”, tem evidentemente implicada uma “economia” em todos os seus aspectos: uma economia simbólica, só permitida a alguns, pelo lazer, de acederem a uma interpretação diferente.
O diferente, específico, produto da actividade do indivíduo (mesmo que líder de uma imensa equipa, como nos modernos laboratórios, empresas, ou grandes empreendimentos “culturais”) – a inovação, a descoberta, a aplicação - tem uma mais-valia óbvia na época moderna e contemporânea da invenção e afirmação absoluta do indivíduo como entidade autónoma. A produção capitalista vive obviamente em íntima relação com as ideias de indivíduo-centro último da decisão e do juízo (em detrimento da comunidade local tradicional ligada por laços de sangue ou de vizinhança, de afectividades – positivas ou negativas - próximas), um indivíduo que circula numa “multidão solitária”, quer dizer, um indivíduo abstracto, afastado dos antigos laços de pertença. Por isso hoje nos soa a falso a expressão “as gentes desta terra” como um apelo patético a uma identidade ancestral (solidariedade mecânica, no dizer de Durkheim) que há muito se desfez, se é que alguma vez existiu (a maior parte das vezes é uma tradição inventada): trata-se de um recurso retórico, político, que tende a apelar para o fetiche da identidade local, para o rincão mítico que não existe: a sua própria repetição paródica (festas, rituais, partilha de símbolos) assinala eloquentemente o respectivo vácuo. Mas um vácuo útil: porque dividir é reinar, e as “localidades” (em permanente fabricação) são, ao nível colectivo, o correspondente aos indivíduos – num mundo globalizado, de seres anónimos e indiferentes, quanto mais diferente e destacado da massa melhor, na medida em que isso permite aumentar o capital relacional dos sítios e das pessoas (o conjunto de “cumplicidades” prático-afectivas/efectivas a que podem recorrer para resolver uma situação).
A forma mais fácil de objectivar um indivíduo, de o enquadrar numa moldura (e de o fazer sentir-se bem nessa moldura, ou nem sequer dar por ela) é evidentemente não só o de o tornar convencido de que esse é o seu desejo (a sua “liberdade de escolha”), como de lhe dar um corpo objectivo, isto é, de o identificar com o corpo próprio.
O indivíduo é objectivado como um corpo, um corpo desejante, erotizado, inserto no discurso do género e do sexo. Se para o puritanismo patriarcalista do século XIX a economia libidinal se distribuía na imagem pública do homem dandy, figura pública, e da mulher retraída no decoro do lar (“públicas virtudes, vícios privados”), essa dicotomia tornou-se absurda no capitalismo moderno. De qualquer modo, é no século XIX que desponta uma literatura mais ou menos cor-de-rosa, romantizada, alusiva, para as mulheres em particular, e para os homens em especial a pornografia e o erotismo, tornadas possíveis pela fotografia e depois pelo cinema. O sexo e o sentimento, ambos objectivados, separam-se nos seus lugares próprios de exercício e nas suas funções.
A emergência do corpo como central para a constituição ontológica da cada um articula-se por sua vez, como qualquer pessoa sabe, com o já referido campo da imagem: se reduzido a um indívíduo pretensamente autónomo (em última análise, num produtor/consumidor), o ser humano pode ser facilmente retratável numa imagem (que aparece nos seus vários documentos de identidade, etc.) que o objectiva e o permite fixar a um conjunto de identificações simples: nome, filiação, data e lugar de nascimento, etc.
A imagem individualizante por excelência é a do rosto: e na medida em que o regime da imagem surge numa sociedade dominantemente patriarcal, o rosto feminino é o símbolo mesmo da sedução. O rosto no seu todo, claro, mas também nos seus detalhes e em particular naqueles (lábios, por exemplo) que podem servir de alusão a (ou metáfora de) outras partes do corpo - então tapadas ou só visíveis como pornográficas – ou de formas de comportamento/desvelamento que apontam para a intimidade, para o núcleo do ser (conceito também moderno, evidentemente), como as pequenas expressões subtis, e muito particularmente os olhos.
Interrogar o rosto contemporâneo equivale pois a interrogar, a olhar de frente, e a tentar perceber os jogos (no sentido francês de “enjeux”), os ardis, que o próprio sistema de objectificação instaurou em relação a todas as coisas. A ausência de rosto, e mais genericamente de cabeça, ou a nossa incapacidade de o(a) vermos, é, no ser vivo, algo que está associado ao diferente, à monstruosidade ou à morte, ao horrível. Ou, então, a uma certa proliferação de formas naturais (por exemplo, geológicas) que o regime da visão instaurou em todos os saberes desde a Renascença (fósseis, espécies vivas que são resíduos de formas muito antigas, etc – todo esse apelo do regressivo, do primitivo, do longínquo petrificados e securizantes, apreciado por certos coleccionadores – que são modos de necrofilia, como a própria arqueologia o é, até certo ponto). Objectificação, colecção, classificação – é todo um “ordenamento do mundo” a que o espírito ocidental procede desde então, numa vontade de se substituir à (ou perceber, completar a) racionalidade do Criador, no sentido do “cogito” cartesiano.
Se aceitarmos que na nossa vida pessoal se dão uma série de modos de deslocação de uma centralidade inicial, infantil, e que a psicanálise (em particular a psicanálise lacaninana e várias das suas formas derivadas – nem todas por certo, pois proliferam em grande número) é ainda um útil instrumento para compreendermos as pessoas, os sujeitos (não tanto os de todos os tempos e lugares, numa busca insensata de uma “natureza humana”), mas pelo menos os modernos e ocidentais, então teremos que ver que há uma série de paradoxos que, também no campo da imagem e do conhecimento, são inerentes ao processo. Esses paradoxos estão intimamente ligados ao processo de individualização contemporânea, e à realidade ambivalente que constatamos: quanto mais exposto e anónimo nas grandes urbes cosmopolitas, mais o indivíduo cuida da sua imagem, se preocupa com o seu ego e inventa a sua interioridade. A arqueologia do ser (do nós, de cada um de nós) e a arqueologia do solo (da “realidade exterior”) convergem. Tudo se desdobra em múltiplos planos de espacialidade e de etapas de temporalidade.
No princípio não estará então o verbo, está a imagem; a imagem que a criança (bebé de 6 a 18 meses) vê no espelho e apreende a reconhecer como sua, percebendo pouco a pouco (à medida que certas capacidades da fala emergem, e muito antes ainda da coordenação motora ou sensorial) que ela é, e não é, ela criança, mas apenas o seu reflexo. Esse desdobramento ou fissura sucede à desvinculação da própria mãe como simples seio, como elemento de sucção, como lugar securitário por excelência.
Quer dizer que a imagem traz consigo, na memória individual, o traço desse reconhecimento paradoxal: a de que aquele que está no espelho sou eu, mas que eu sou, ali, um mero reflexo. Portanto a imagem revela e mente ao mesmo tempo: é uma simples miragem. E essa característica de miragem nunca deixará de a acompanhar pela vida fora. Eu olho o espelho e de lá, estranhamente, e de forma invertida, algo olha para mim que passa por ser eu, que eu, a partir do momento em que sei falar (aquilo a que Lacan designa passar da ordem meramente imaginária à do simbólico, que permite a atribuição de um sentido às coisas) me habituo a chamar eu.
O eu nasce assim cindido, cindido não apenas em dois planos, mas em muitos, porque ele também se vai apercebendo dos outros (e não vou agora entrar nas questões do triângulo edipiano, do papel simbólico do pai e da “ordem fálica”, etc.), e desenvolvendo uma teia de emoções que se nuclearizam em torno do narcisismo, da inveja, etc. São conceitos que qualquer pequeno manual de psicanálise explica (admitindo que os manuais explicam qualquer coisa... já que no meu entender são contrários ao conhecimento e ao próprio entendimento da realidade, na medida em que a neutralizam no que no seu conhecimento verdadeiramente nos apela).
Se toda a cultura ocidental moderna é apoiada na ideia de indivíduo, de imagem, de suposta liberdade de criação de uma identidade, de uma opção de vida, etc. (ideologia neo-liberal, com todos os seus paradoxos), é importante perceber o seu carácter radicalmente ambíguo, tal como a inspiração psicanalítica nos revela, desde os primeiros passos da constituição do ser como “entidade autónoma” (expressão agora aplicada aqui apenas no sentido fraco de entidade progressivamente “adulta” e capaz de viver por si).
Daí a fragmentação do ser humano, com particular acuidade na época de apogeu do capitalismo, sistema que sempre apresentou contradições aparentemente insanáveis, e sempre foi capaz de as superar numa lógica pragmática de transformar problemas em soluções, de chamar para o seu campo o que se lhe opõe (opunha) ou julga opor. Neste último aspecto é que está o nó da questão política actual: como criar bolsas de resistência viáveis (isto é, que não caiam no logro de o reforçar) a um sistema altamente predador que se revela em larga medida entregue a si próprio, fora do controlo dos estados e organizações internacionais, e nocivo para a maior parte dos seres que habitam o planeta.
A psicanálise trouxe para o centro do entendimento do ser humano a questão do desejo, ou seja, a vontade de preenchimento de uma falta que lhe é constitucional, e que certamente o sistema de consumo em que vivemos mais não faz que explorar, ou acicatar.
Mas a imagem mostra e esconde, é miragem esquiva; é um ícone, mera representação do inalcançável, e portanto frustrante por natureza, porque radica nessa descolagem inicial de mim a mim próprio, que me constitui no espelho. Ora, numa economia de imagens, de signos, em que o desejo vive muito desse ambiente da imagem, é evidente que ele está condenado a ser um permanente mecanismo de adiamento do gozo, da plenitude, apenas alcançada a espaços através do eterno jogo da sedução, em que pessoa sedutora e pessoa seduzida intercambiam permanentemente de papéis.
Sociedade em larga medida afastada do transcendente (apesar da proliferação de religiões, seitas, cultos de todo o tipo), e definitivamente prometendo aos indivíduos a satisfação, ela retira-lhes essa capacidade, castra-os pelo seu próprio modo de funcionamento, que se colou ao modo talvez mais geral do sistema psíquico, ao menos nas sociedades ocidentalizadas.
Ou seja, o “ethos” do sistema capitalista financeiro e a os modos com que a psicanálise nos abre novas perspectivas, são articuláveis entre si de forma perversa, porque o carácter potencialmente subversivo da psicanálise pode servir como mecanismo homeostático ao nível individual, fazendo proliferar discursos espartilhados e minoritários, que não têm capacidade nem vocação, dirigidos como estão à esfera do individual, para encontrar uma alternativa democrática à oligarquia instalada em rede sobre todo o planeta. Essa alternativa passa, de novo, por aquilo que foi a aspiração de Marx e de muitos outros autores dos séculos XIX e XX: o de mudar a realidade mesma, e não apenas as ideias; o de encontrar teorias que abram brechas no sistema tal como é vivido, e que se alimentem e reforcem conceptualmente dessas próprias fendas, por muito “geológicas” que pareçam.
Para mim, e para além da promissora existência de muitas vozes e movimentos alternativos no hemisfério sul, e de revoltas das pessoas em torno de problemas concretos que afectam o seu quotidiano (hoje ninguém quer teorias nem autoritários “gurus”, todos aspiram a ser actores sociais) há dois sintomas de mudança indesmentíveis que eu próprio senti ao longo de uma vida que já ultrapassou o meio século (nasci em 1948).
Por um lado, a aplanação das hierarquias ao nível das formas de comportamento; por outro, a progressiva emancipação feminina e a proliferação de alternativas à organização tradicional, conjugal, monogâmica, e heterossexual, da ordem amorosa.
A aplanação das hierarquias simbólicas não se dá evidentemente ao nível económico nem de outras formas de capital (pelo contrário, as diferenças entre incluídos e excluídos acentuam-se): mas dá-se no tratamento quotidiano e na progressiva consciência que os cidadãos têm (pelo menos aqueles que vivem em países onde podem sobreviver com um mínimo de dignidade) de que, no fundo, somos todos iguais, isto é, há um sinal de que a ordem ideológica da submissão em parte está a descolar, e só o medo burocrático (perda do emprego, repercussões maquiavélicas de toda a ordem) faz com que isso não estale mais depressa. O tecido social hierárquico das “categorias”, do senhor e servo, rompeu-se ao nível simbólico com a própria proliferação da ideia de consumidor e dessa unificação “por debaixo”.
A maior parte das pessoas vive revoltada, e sem uma mecha comum que acenda a sua mítica unidade (elas não se conseguem pensar em unidade, há como que uma fragmentação das próprias razões de revolta ligada ao individualismo. Aliás, a própria noção de proletariado também foi sempre algo de muito artificial, nomeadamente a partir do século XX e das adaptações capitalistas, sempre inovadoras); essa revolta solta-se apenas em casos pontuais. Quer dizer, enfraquecidas as classes médias, em que o Estado-providência se baseava e as quais tinha prometido ampliar, há uma gravíssima brecha no sistema social que não se sabe por onde vai rebentar, apenas se constatando no acrescer da violência, dos sem-abrigo, na proliferação de focos problemáticos a que os Estados nacionais já não conseguem pôr cobro. Na base dessa “insubordinação surda” está uma cada vez mais clara informação das pessoas, mesmo as que têm menores graus de escolaridade, em relação à obscenidade do sistema e à suas perversidades fundamentais.
As elites no poder (bancário, empresarial, político, de lobbies vários, nomeadamente parte do científico-tecnológico, este mais ou menos consciente de contribuir para a manutenção do “status” de uma minoria) apoiam-se principalmente no entretenimento alienante (publicidade, espectáculos, efeitos carismáticos televisivos), sem terem já nada de substancial a propor ou a resolver. Governam pela instauração de um medo burocrático de carácter soft e brando, em que o discurso que emitem é dirigido às emoções e à avidez que as pessoas têm de verem as elites ao lado delas, mesmo que percebam a hipocrisia da encenação (por exemplo, espectacularização do diálogo social através da televisão, com os líderes a responderem durante horas às perguntas de um auditório de “cidadãos comuns” – em Espanha, por exemplo, recentemente).
O capitalismo, baseado apenas nos lucros de uma pequeníssima minoria, que ainda por cima se dá a ver como espectáculo nos media, é obsceno e anti-democrático, porque vive no curto prazo (mesmo que se apresente como especialista em planeamento e tenha baterias de “experts” a preparar “cenários de futuro”) e opõe-se objectivamente ao interesse das grandes massas populacionais mundiais. A imaginação dos seus servidores é fértil, mas não sei até onde conseguirá controlar o crescente clima de insegurança (a todos os níveis e aspectos) em que se vive. A sua grande força tem consistido em incorporar constantemente todas as (mais ou menos pretensas) crises criticas por que tem passado, incluindo os “ensinamentos” das ciências sociais e das artes. Hoje, qualquer político sabe que se não “passar bem” na televisão não tem futuro, nem como politico, nem talvez sequentemente como reformado de político, em lugares de chefia de grandes empresas ou fundações.
Até onde aguentará o tecido social maioritariamente submetido e a asfixia progressiva das classes médias este tipo de espectáculos, em que o autoritarismo subjacente à própria concepção de conjunto é mal disfarçado pela “simpatia” das posturas, pela enunciação de ideias, até pela humildade encenada dos que “descem até ao povo”?
Outra questão. Trata-se do caso do feminismo e das enormes potencialidades que esta filosofia, nas suas várias versões e “gerações”, evidentemente oferece. Aliás, como disse, se algumas grandes revoluções “silenciosas” se deram, desde os séculos XIX/XX – e as grandes revoluções são sempre transformações de comportamentos e de crenças, de longa gestação e consequências - elas foram, quanto a mim, a anteriormente referida (uma espécie de “democracia de direitos” sentida, mas frustrada na sua correspondente afirmação social), e esta, a de uma certa emancipação da mulher (processo ainda em curso, evidentemente) nas sociedades ocidentais – a transformação das mulheres em seres humanos, pelo menos na teoria, de pleno direito.
São conhecidos os vários logros em que as teorias feministas se deixaram cair, na sua disputa de poder “aos homens”, e como pouco a pouco se está passando de uma bipolaridade homens-mulheres para uma multipolaridade compósita, ligada aliás ao experimentalismo pessoal e ao individualismo contemporâneo.
Nenhuma mulher inteligente vai hoje querer substitur-se ao homem, ou construir uma identidade “feminina” – isso não significa nada. Como não há uma identidade homossexual, lésbica, heterossexual, trans-sexual, etc. Há pessoas, sim, e algumas certamente achando novas formas de encontro, de bem-estar e de “jouissance”, e outras em grande sofrimento e a solidão. Como fazer um balanço de matérias tão sensíveis, do foro individual e íntimo? Mas essa opacidade é apesar de tudo bem melhor do que a hipocrisia em que a minha geração foi formada. Por mim, teria uma grande curiosidade (fetichista?) em conhecer pessoas com uma vida, ou orientação, diferente da minha, no sentido de me descentrar e de me perceber a mim próprio melhor, um pouco. Ou seja, de novo o aprofundamento de estudos de psicanálise, se neles não me perder (há neste campo um certa tendência, se não nos acautelamos, para uma explicação demasiado coerente das coisas, como se se aplicasse a histórias e pessoas toda uma série de modelos pré-formados). E é evidente que são insuportáveis certos livros ou programas televisivos de segunda mão sobre sexologia e assuntos quejandos, que nada trazem de novo no seu profundo simplismo, ou que são meros exercícios mentais “porno soft”.
O que é também certo, evidentemente, é que todos temos a ganhar com a chamada “emancipação das mulheres”, porque o problema é uma questão do conjunto da sociedade, e levanta questões práticas, mas também filosóficos de extremo interesse. O homem heterossexual tradicional – modelo em que, por exemplo, fui formatado, como milhões de outros – é um ser muito sofredor, até pelas muitas fantasias sobre as mulheres que foi construindo, e por certa predisposição para o coleccionismo consumista ao nível do sexo rápido e para as frustrações daí decorrentes: medo de contágios, complexos de culpa por infidelidade, angústia do desempenho, etc. Afinal o que se desmoronou foi o velho modelo machista do casamento impecável, com a mulher supostamente (acentuo supostamente, precaução que se aplica em particular a ambientes sociais de desafogo e a certos graus de escolaridade – mas a literatura está cheia desses “dramas”) submetida, e o homem multiplicando “aventuras” por fora - esse era ainda o verdadeiro “herói" do meu tempo de rapaz, o modelo para que tacitamente me prepararam.
Que é, verdadeiramente, a sedução, simbolizada no rosto sedutor? Um jogo ambíguo, de ganhos e perdas, como todos os jogos, mas onde os parceiros teriam muito de facto a ganhar se abandonassem de vez os mitos do amor romântico (com todo o sofrimento inerente quando acaba, o que é fatal acontecer) e estivessem preparados para viver de um modo mais equilibrado as boas, raríssimas, experiências de prazer e de satisfação que a vida pode proporcionar. A questão da felicidade vem sempre depois, quando se recorda. A ansiedade é a mais mortífera doença do nosso tempo, ao instilar-nos a obsessão do sucesso, e a depressão que muitas vezes não pode deixar de suceder ao falhanço de um projecto fútil.
Mais do que um direito, gozar é hoje um dever, na lógica hedonista contemporânea; e cada um tem de encontrar a sua forma própria de “jouissance”, de felicidade, sendo apenas fiel a essa ideia, a esse projecto. Assim, e parece ser essa a tendência “queer”, muita gente não quer ser hoje rotulada de hetero ou homossexual, mesmo que isso seja num sentido valorativo. A afectividade e suas formas, a sexualidade, os modos de vida são tão voláteis como a própria sociedade e os indivíduos no seu conjunto; e, afinal de contas, esta é a mudança mais “barata” de fazer, até pelo interesse público que desperta. As pessoas encontram-se num enorme supermercado de escolhas. E cada um não está a fazer discursos moralistas sobre as escolhas alheias – seria absurdo.
Assim, esbatem-se as fronteiras entre o erotismo e a pornografia, na consciência de que tudo é uma forma de entretenimento viável (e altamente rentável), desde que não prejudique terceiros. Algumas pessoas que se prostituíam afirmam que o não faziam por obrigação, mas pelo prazer e pelo lucro; e escrevem livros sobre isso, entram no sistema académico a preparar doutoramentos enquanto aparecem nos media a anunciar o testemunho da sua experiência. Óptimo! Grandes editores mundiais sobrevivem como empórios literalmente por publicarem belíssimas obras de arte, ilustradas, onde toda uma nova série de modelos estéticos é ensaiada, em torno do corpo, da sua performance, mas por vezes utilizando matérias kitsch e porno. Há aliás toda uma série de formas de arte que recuperam esses aspectos. Professores universitários, em fóruns mais descontraídos, podem apresentar estudos sobre filmes ou outros fenómenos “hard-core” e discutir a questão da distinção de Bourdieu em relação com as várias formas que cada um utiliza para se masturbar. E, pessoalmente, devo confessar que rejubilo com essa “liberdade”, com esse discurso emancipatório. Mas logo a seguir me pergunto: para que serve? Até onde vai a transgressão e até onde é que ela não é hoje, totalmente domesticada, ou totalmente transformada em espectáculo de consumo, nem sempre de grande qualidade ( o que há de melhor não tem divulgação). Até que ponto tudo isto são escapes, ou pseudo-escapes. Não sei.
Nesta liberalização o mercado tem evidentemente o seu papel, mas se a “queda de tabus” torna as pessoas mais felizes (e quem é cada um para se arrogar o direito de ajuizar da felicidade de cada qual?) não é o “académico” que vai arvorar-se em moralista e mostrar que certas quedas de tabus e certos discursos radicais são a guloseima do sistema.
Por acaso há dias vi de passagem na televisão um rapazinho (iraniano? afegão?? Não tive tempo de saber), talvez dos seus seis ou sete anos, que tinha muito medo de entrar numa carrinha de uma patrulha de assistentes sociais de salvamento dessas crianças. Pedia por tudo que não lhe batessem. Ao ser interrogado, disse ter sido “traficado”. Para mendigar de noite, declarava. Outros eram amputados para mais facilmente receberem esmola, ou lá o que fosse. A mãe tinha sido morta; o pai estava na prisão. Depois via-se o rapaz num vestiário a escolher umas calças e uma T-shirt para se vestir; mas sapatos não havia; lá ia descalço. E eu fiquei a pensar que este tipo de programas, bem melhores que outros, claro, serviam para comover pessoas como eu e para nós termos pena daquelas criaturas, enquanto mesmo à vista da minha varanda todos os dias dezenas ou centenas de pessoas se injectam e já fazem parte da paisagem. E fiquei a pensar na minha própria obscenidade, na minha impotência perante tudo isto.


voj 2007
Foto: Pascal Renoux (rep. aut.)
Fonte: http://www.pascalrenoux.com

2 comentários:

Anónimo disse...

Desde as cavernas (para simplificar) até hoje, os humanos vêm construindo grelhas de leitura para si próprios, para os tempos e para os lugares em que o período curtíssimo das suas vidas se desenrola e fazem-no com aplicação tal que os que vão chegando à cena, enquanto os outros a abandonam,logo recomeçam esse labor, quais formigas carreando, obsessivamente, migalhas para os túneis. Chegados aos tempos em que nós os actores deste drama,actuamos, verifica-se que as grelhas foram baralhadas, desconstroem o construído, negam o que afirmaram... Resta a estes humanos que tal como "Baldassare, genovês do Oriente e negociente de curiosidades"que buscava um livro que supostamente traria a Salvação ao mundo desamparado", se ocupem a procurar, depois de muitas aventuras o que possa dar sentido à sua existência, as grelhas estão exauridas...

amélia

Vitor Oliveira Jorge disse...

Pois é evidente que nós vivemos dentro do sentido, dentro da linguagem, dentro do simbólico, e que sem a procura de preencher esse vácuo (impreemchível) instalado pelo desejo a nossa existência seria incrivelmente entediante, impossível.Não somos formigas.
Mas há uma historicidade da busca do sentido, nós não pensaríamos nem sentiríamos como o fazemos se não tivesse havido uma série de gente que pensou antes. Nunca partimos da estaca zero...somos sujeitos históricos, situados na história,e as formigas são para nós um mistério, enquanto que para elas nem sei se nós existimos.
A ideia frequente de que a vida é curta, é preciso é gozá-la e deixarmos de procurar um sentido, é contraditória com o que de facto nos ocorre, mesmo que não leiamos um livro.Nós PRECISAMOS de fazer juízos todos os dias sobre o que nos ocorre; podemos é fazê-los mais documentadamente, mais pensadamente, ou menos. Claro que isto toda a gente sabe - até para não ser atropelado ou assaltado na rua eu tenho de ter a atenção desperta. Não vou como formiga...