quinta-feira, 14 de setembro de 2017

MUSEU: UMA NÓTULA
Muito esquematicamente, e para quem nunca se abeirou destas questões:
Museu pré-moderno - basicamente constituído pela coleção, obtida de forma aleatória, em que o que une os objetos uns aos outros é a personalidade, o gosto, as obsessões do colecionador. Elemento de prestígio e gosto pessoal, o museu é um repositório de curiosidades sobrepostas, de raridades surpreendentes, de provas de viagem e de conhecimentos exóticos ou esotéricos, de objetos estranhos ou raros da “natureza” ou da “cultura”, convivendo lado a lado. As peças podem estar identificadas pela sua origem, região, eventualmente data de obtenção, mas a sua disposição espacial não obedece senão a critérios qualitativos, subjetivos. É a sobreposição. Estes gabinetes de coisas raras e “maravilhosas” nobilitam quem os possui e pode mostrar aos seus convidados: o museu foi sempre (e ainda hoje é) um elemento de prestígio, ligado à canonização de objetos, frequentemente associada a um culto, a um fetichismo: poder ver de perto o diferente, mesmo que através de um vidro, ou mesmo poder tocar-lhe sensualmente, ter esse privilégio da manipulação, etc. Mas nesta fase o museu está muito ligado à experiência de uma pessoa e de uma elite, que se distingue pelo seu gosto pelas antiguidades, raridades, ou coisas exóticas e estranhas: trata-se de um processo de nobilitação pela posse do acessório.
Museu moderno – o museu moderno obedece a critérios totalmente diferentes, à racionalização pública e universal, tanto do espaço como do tempo. As coisas depostas e expostas são para usufruto potencialmente de todos, ordenadas segundo taxonomias, cronologias, toda uma grelha que instaura um discurso universal de organização, de ordem estável. A coleção serve agora a identidade: de um país, de uma região, de uma atividade, etc. – serve para fixar essa ideia de conjunto e de essência. Mostrar, através de objetos, um poder que já não é o das curiosidades reunidas, mas o do domínio racional e imperial do mundo. O museu é um dispositivo de poder político. Ele fecha, canoniza, guarda e cuida do raro, do valioso, mas para o expor aos olhos do público maravilhado, dos cidadãos que ali reconhecem qualquer coisa de seu (ou do outro), ou seja, a confirmação de uma ordem, de uma estabilidade, de um progresso da história humana, assente num determinado território. Tudo devidamente etiquetado, contextualizado, hierarquizado segundo princípios racionais. O museu é, como a cidade com as suas lojas e montras espetaculares, um dispositivo de exibição, de encenação, ligado ao culto moderno da “Cultura” como elemento nobilitador e elevador social, da viagem, do domínio colonial, etc. Neste tipo de museu é fundamental a coleção permanente, que conta uma história, tem uma narrativa organizada que conforta, informa, e reforça o sentimento de pertença a uma comunidade.
Museu pós-moderno – este museu desconstrói o anterior: a sua racionalidade é de novo a sobreposição, mas a sobreposição do contingente, do fluido. O valor é agora o que circula, a pós-modernidade detesta o fixo, o permanente, tal como o capital: parado, não rende. É preciso substituir o programa identitário, permanente, por projetos que se sucedem, o modelo pela série. O museu pode manter uma coleção permanente de referência, que eventualmente o tornou conhecido como lugar de culto, mas não é tanto dessa aura e dessa contemplação silenciosa que multidões do turismo de massas vão à procura. A excitação substituiu o saber. O que importa é o novo (como nas televisões o “direto”...) a excitação juvenil do surpreendente. E vai-se de sensação em sensação, porque é o divertimento, e não a contemplação, que verdadeiramente interessam à sociedade hedonista. O museu torna-se lugar de eventos, de permanentes reformulações, de identidades compósitas e fluidas, como as dos próprios indivíduos pós-modernos, capturados pelo consumo e pela ideia de escolha individual (a partir de um número calculado de combinatórias elementares, é claro). Cultura é tudo, e por isso há museus de tudo, mesmo do imaterial: o que importa é o espaço em si, destacado do mundo exterior, mas na realidade sendo, como sempre, o seu reverso. O que se vai ver não são só as peças, as instalações, mas também os outros que estão lá para ver, para circular. A figura do curador de exposição substitui, no seu protagonismo, o do antigo diretor ou do seu staff. Eles existem, mas cada exposição é por assim dizer uma obra de arte, e é ela que atrai público, e portanto rende financeiramente em termos de bilheteira. O museu é uma máquina de fazer dinheiro. Lugar de eventos, preenche o seu vácuo através desta movimentação e mobilização constante dos indivíduos.
voj julho 2017, loures

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