quarta-feira, 7 de abril de 2010

Fantasia e sintoma em Lacan: algumas notas


Advertência: há vários "Lacans", e o próprio autor nunca quis "fixar" a sua teoria; assim, qualquer "manual sobre" ou "introdução a" Lacan arrisca-se a ser uma falsificação que logo o autor rejeitaria.
A sua dificuldade não é um tique ou questão superficial (vontade de ser hermético por motivo fútil), mas antes pretende-se com um estilo, bem entendido, de tipo "barroco", mas também e sobretudo com a consciência muito sentida de que, ao usarmos a linguagem, e portanto ao estarmos embutidos num sistema simbólico, num mundo de espelhos que reflectem outros espelhos, estamos já sempre "ditos" por um Sentido, por um Grande Outro, ou Outro com O grande, que nos precede.


FANTASIA - cenário imaginário que, devido à sua presença fascinante, esconde a falta do Outro, da ordem simbólica, da sua consistência, ou seja, liga-se a uma certa impossibilidade fundamental implicada no próprio acto de simbolização, incluindo a "impossibilidade da relação sexual".
Para Lacan, que lhe dedicou todo o Seminário de 1966/67, a fantasia tem um efeito protector, defensivo da castração, ou seja, da falta do Outro: é, como diz Evans, uma "qualidade fixa e imóvel." (p. 60).
Por exemplo, a fantasia neurótica refere-se ao desejo do sujeito de corresponder ao desejo para ele enigmático do Outro, segundo a típica pergunta: "Que (me) quer?"... Lacan, que apreciava muito a lógica formal, expressou isso por um matema conhecido. Claro que cada "paciente" possui um cenário fantasmático próprio, a que compete ao analista estar atento. Essa singularidade exprime o modo de "jouissance" de cada indivíduo, modo distorcido próprio da fantasia como "formação de compromisso". A fantasia, escreve Evans citando também Lacan (p. 60) " (...) é assim quer o que permite ao sujeito manter o seu desejo, quer aquilo através do qual o sujeito se mantém a si próprio ao nível do seu desejo volátil, evanescente."
Há no (em cada) sujeito uma fantasia inconsciente fundamental, esperando-se do processo de transferência, na análise e depois dela, que o sujeito "atravesse a sua fantasia fundamental", que nele ocorra um modo novo de "jouissance".
Contra M. Klein, Lacan sustenta que "qualquer tentativa de reduzir a fantasia à imaginação é um erro arreigado." (Evans, p. 61)

Este conceito de "fantasia", como toda a gente sabe, era já central em Freud, que percebeu bem que realidade e fantasia se não podem opor facilmente, como se faz no senso comum, pois que a própria realidade é já discursivamente construída. Fantasia para Freud é uma cena consciente ou inconsciente, criada pela imaginação, e na qual se patenteia um desejo inconsciente.


SINTOMA (symptôme) - mensagem codificada na qual o sujeito recebe do Outro a sua própria mensagem (dele, sujeito) sob forma invertida.
O sintoma é distinto da estrutura, mas, ao contrário da medicina (Evans, p. 203), não há entre eles uma relação de superfície/profundidade (=o sintoma aparece como sinal de algo escondido que o médico tem de inferir e procurar curar).
Em Lacan, quando se fala de sintomas, são normalmente os sintomas neuróticos que estão em causa, e não outros (psicose, perversão, etc). "O objectivo da psicanálise lacaniana - escreve Evans, p. 203 - não é a remoção dos sintomas neuróticos, dado que quando um sintoma neurótico desaparece, ele é simplesmente substituído por outro. É isto que distingue a psicanálise de qualquer outra forma de terapia."
Nos anos 50 ("primeiro Lacan") o sintoma neurótico não tem um significado universal: é único, próprio da história de cada sujeito. Nem há uma relação bi-unívoca entre sintomas e uma estrutura subjacente. Quando muito, o analista procura perceber qual será a "questão fundamental que activa o discurso" do neurótico (Evans, p. 204)...e, num certo sentido, todos o somos...
A partir de 1962, a concepção linguística do sintoma tende a ser abandonada a favor de uma ideia do sintoma como pura "jouissance" (gozo) que não pode ser interpretada, o que leva à introdução por Lacan em 1975 do novo vocábulo "sintome" (Evans, p. 204), em relação com um grande interesse pela "topologia" de cada sujeito. Há no autor, ao longo da sua vida, uma passagem do ênfase na linguística (sintoma como significante, inconsciente estruturado como uma linguagem, etc) para o ênfase na topologia (in Evans, p. 189) (ver abaixo).

SINTOMA (sinthome - neologismo em francês) - dimensão do Um, ponto último da consistência do sujeito; marca aquilo que no sujeito é mais que ele mesmo e que ele ama mais do que a si próprio. Esse Um é o Um da jouis-sense (outro termo próprio a Lacan), do significante ainda solto, flutuante, permeado pela satisfação. Esta é o elemento que faz com que ele não esteja (ainda) articulado numa cadeia de significantes. Trata-se de uma temática que o autor começou a desenvolver a partir do Seminário XX (1975/76). O sintoma é o que permite ao sujeito viver, na sua singular organização do gozo (jouissance) (in Evans, p. 189). Assim, a tarefa da análise consiste em identificar-se com o sintoma (neste sentido de "sinthome").
O sintoma não é pois analisável. Lacan acaba por juntar ao laço borromeano (tríade do real, do simbólico e do imaginário) um quarto anel, o do sintoma, que dá "coerência" ao sujeito. A "função do sintoma - enlaçando o real, o simbólico e o imaginário - situa-se inevitavelmente para além do sentido" (in Evans, p. 189), sentido esse que se encontra na intersecção do simbólico e do imaginário. O papel da obra de Joyce neste "último Lacan" é fulcral: toda a obra deste autor é vista como um sintoma ("sinthome"), donde a criação de mais uma expressão própria a Lacan (são muitas centenas os neologismos que propôs). Citando um autor que colabora em Evans, p. 190: " Joyce torna-se um saint homme [repare-se que, dito em francês, soa como sinthome] que, recusando qualquer solução imaginária [para os seus problemas] foi capaz de inventar uma nova maneira de usar a linguagem para organizar o gozo [enjoyment]."


Esta nota, simples e rudimentar apontamento, é baseada de muito perto (por vezes é apenas uma tradução) em:
Slavoj Zizek, "Looking Awry", London, the MIT Press, 1992 (pb), p. 132
e ainda em
Dylan Evans, "An Introductory Dictionary of Lacanian Psychoanalysis", London, Routledge, 1996, pp. 59-61 e 188-190.


Útil por exemplo, em português, o "Dicionário de Psicanálise", de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, Mem Martins, Ed. Inquérito, 2000, para quem não tenha outro recurso; mas não há nada que substitua a leitura de Lacan e, escusado é dizer, de Freud, a quem Lacan se propôs retornar (no sentido da releitura atenta dos seus textos), em articulação com todo um vasto conhecimento científico e filosófico próprio dos meados do séc. XX. Por isso Lacan e Freud vão juntos e ajudam-se (ajudam-nos) mutuamente na compreensão da revolução psicanalítica, que não é nenhum dogma nem a única matéria indispensável, mas é algo sem o qual dificilmente se entende outras coisas. É como se nunca tivéssemos lido Marx ou Weber e quiséssemos pensar o social e o político, e por aí adiante. É claro que um arqueólogo não foge à regra.

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