RECINTOS NEOLÍTICOS E CALCOLÍTICOS DA PENINSULA IBÉRICA (IV- III MILÉNIOS AC) – ALGUMAS NOTAS E SUGESTÕES OCASIONAIS
Como ideias predominantes da jornada de trabalho de 17 de março de 2016 na FLUP, organizada pelo CITCEM e em particular como 4º encontro de ARQUEOCIÊNCIAS, parece poderem destacar-se (do meu ponto de vista, é claro, e sem ordem hierárquica) as seguintes, entre outras.
Estas ideias – acentuo - não são apenas minhas, são questões que foram debatidas em conjunto e, na sua maior parte, sugeridas ou propostas por outros autores que não eu. Creio ser este o objetivo maior destes encontros. Todavia, esta é a minha proposta de reflexão, que não pretende ser original:
- temos uma informação ainda muito deficiente sobre o objeto de estudo: muitos locais foram parcial ou totalmente destruídos, ou mal ou incompletamente escavados, outros são, pela sua própria natureza, invisíveis à superfície (daí a importância de ferramentas atuais não intrusivas, ou menos dispendiosas, como a magnetometria), e a própria abundância e dimensão dos sítios torna difícil aquilo que se imporia – a uma arqueologia digna desse nome – ou seja, um estudo exaustivo dos locais, e mesmo da sua envolvente, porque é óbvio que é todo o território que está aqui em causa, e não apenas, à moda tradicional, estações isoladas ou isoláveis do contexto. A maior parte destes sítios, para não dizer todos, fazem corpo, obviamente, com o território em que foram inseridos e com outros locais e acidentes de terreno próximos; seria até aconselhável a observação cuidadosa de todo o território, incluindo a escavação de áreas supostamente exteriores aos sítios, aos quais, obviamente, as comunidades nunca se acantonaram;
- este recintos, quer de fossos (estruturas “negativas”), quer providos de paredes ou muros, isto é, estruturas “positivas” (evidentemente que em certos casos, eventualmente em muitos, ambos estão presentes) eram, em geral, muito maiores do que a arqueologia tradicionalmente considerava - problema de dimensão, design, escala, concepção;
- a pequena “escala” das interrogações e das metodologias tradicionais (sondagem, escavação, métodos não intrusivos, etc.) traduzia-se numa visão completamente truncada da dimensão espacial dos sítios e, consequentemente, da sua morfologia, diacronia, eventual dinâmica, relação com o território envolvente, etc. – ou seja, numa total incompreensão dos sítios, na sua problemática riquíssima e complexa, do nosso ponto de vista atual;
- o querer determinar a função de sítios ou estruturas, numa clara projeção da nossa mentalidade atual (da qual obviamente nunca sairemos nem queremos sair, mas em relação à qual temos de estabelecer óbvia distância crítica se queremos investigar) não tem qualquer sentido, dada a pluralidade de significações e de conotações que os sítios, ou subáreas dos sítios, podem ter tido ao longo do espaço que ocupam ou foram ocupando e ao longo do tempo;
- os sítios ou estruturas são em geral multi-periodais, quer dizer, tiveram toda uma variação ao longo do tempo, que se traduz na reformulação de estruturas em positivo ou no enchimento intencional de estruturas em negativo, como fossos ou simples fossas, onde deposições diversas se intercalam com fases em que a mesma estrutura parece não ter sido alvo de atividade humana;
- a unidade mínima, por assim dizer, do “dado” arqueológico não é a peça inteira (o vaso, o artefacto, o osso – humano ou de animal – etc.), mas há todo um processo de fracturação de objetos anterior à sua deposição nos sítios, pelo que não são só os sítios que têm uma complexa “biografia”, mas também os elementos constituintes de deposições, as quais podem juntar, em momentos determinados, fragmentos de “coisas” que podem ter provindo de diferentes sítios e ter tido toda uma “vida” anterior;
- quer dizer, antes da sua deposição nos locais onde se encontram, os “materiais” tiveram uma vida mais ou menos complexa, evidenciando um sistema de transformações anterior à dita deposição;
- as construções têm evidenciado um crescimento ou edificação por junção de módulos, tanto em sítios de fossos como em sítios de muros, quer dizer, muitas vezes ter-se-á “colado” diferentes troços de construção segundo um “modelo” pré-definido, o que mostra, no mínimo, uma certa diacronia, uma repetição de gestos, intenções e formas, mas sujeita a um certo “design” e – perguntamo-nos – sendo estes sítios locais de concentração de grande investimento (concepção, construção, remodelação, manutenção, uso como enquadramento ou cenário de múltiplas ações e vivências) não terá tal facto resultado da coordenação de diferentes grupos? Não será essa adição de módulos – como aliás a adição de deposições, etc. – obra colectiva, no sentido de diversas fracções da comunidade contribuírem para a construção de uma realidade envolvente maior do que a de cada fracção, unindo assim simbolicamente a comunidade numa realidade superior à fracção, e, desse modo, construindo a própria comunidade? Não terá a deposição de fragmentos diversos e de variada natureza num mesmo “contexto”, quer dizer, num determinado momento do tempo, alguma conotação com a ideia de juntar o que estava disperso, unir o que estava fragmentado, mas a um nível simbólico?
- foi várias vezes acentuada a ideia de que o que parece presidir a esta proliferação de recintos, em toda a Europa neolítica e calcolítica, é uma intenção deliberada de marcar o espaço com um dentro e um fora, isto é, com um limite, criando de certo modo uma ideia de enclausuramento, sobretudo quanto esse limite (quando há valados, ou muros, paredes) limitava, para quem estava dentro do recinto, a visibilidade sobre a paisagem envolvente. Parece que o ser humano, em geral, se não coaduna com a fluidez, indeterminação, do espaço e do tempo (intimamente conectados) e que a sua forma de marcar unidades nestas épocas poderia ter sido, precisamente, o estabelecimento de limiares físicos no solo, fossem eles negativos ou positivos, fossem eles barreiras à progressão da passada ou da visão, ou simples barreiras simbólicas, como é evidente em casos de fossos pequenos ou recintos de menires;
- aliás, a própria habitação, por rudimentar que seja, é evidentemente caracterizada por definir limites, ou paredes, que são uma extensão do vestuário, ou seja, formas de abrangência, proteção, do corpo individual ou colectivo (grupo, comunidade) dentro de estruturas de proteção que, por vezes, assumem mesmo uma forma minimalista (tenda, cabana, casa soerguida mas muito aberta ao espaço envolvente, etc.), correspondendo tanto a necessidades físicas óbvias, como a necessidades simbólicas igualmente óbvias (habitualmente designadas “culturais” de forma simplista, porque oposta às “biológicas”, dicotomia evidentemente muito discutível e redutora);
- havendo nestes sítios passagens (interrupções em muros ou fossos) que podem estar conectadas astronomicamente, a sua obturação é por vezes complexa, envolvendo um tal requinte (por micro que seja) de construção que nos chegamos a perguntar se tal fechamento não foi a principal “intenção” da construção dessas “interrupções”, ou seja, se as “portas” não foram feitas, precisamente, para serem fechadas, isto é, mais uma vez, se não há aqui uma intenção simbólica predominante. Mas a dicotomia simbólico/funcional, no ser humano, é evidentemente errónea, pois precisamente o que o caracteriza é uma constante fusão de intenções práticas, ou imediatas, com intenções mais amplas, que costumamos designar “culturais”, conotativas, performativas: a ação humana não visa apenas a sobrevivência, nem visa “primeiro” a sobrevivência básica, e depois sobrepõe-se-lhe o simbolismo das intenções; não, tudo isso está mesclado desde o primeiro momento;
- é por isso tudo que a designação de “povoado fortificado” nos parece hoje, mais que nunca, mais que redutora – ingenuamente ridícula. Estamos aqui perante dispositivos muito complexos que têm de ser entendidos à luz dos conhecimentos das ciências sociais e humanas, e do que elas nos ensinam sobre a variedade infinita de comportamentos do ser humano, e não segundo um funcionalismo primário que é a projeção no passado da nossa atual funcionalização como pessoas adentro da sociedade pós-revolução industrial;
- foi acentuado que a construção destes sítios não visava estabelecer um local que só começava a ser “útil” a partir do momento em que estava acabado – se é que a ideia de “acabado” tem aqui sentido, tendo em vista a dinâmica dos locais, que os dados da arqueologia enganosamente reduzem a pretensos momentos os fases de estabilidade. Não, a construção era a parte mais importante da “razão de ser” destes sítios, com tudo o que isso implicava de coordenação, de empenhamento, de inscrição nos corpos e nas mentes de gestos coordenados, de “habitus” no sentido de Pierre Bourdieu;
- nessa sequência, veio de novo à colação o conceito heideggeriano de habitar (“dwelling”) por oposição ao de ocupação, ou utilização funcional de um sítio construído ou espaço usado. O ser humano (Dasein) está imerso no mundo, faz corpo com ele (e não o vê como uma paisagem ao modo ocidental desde o Renascimento), e nesse sentido “habita” o mundo, habita o espaço, mas sensorialmente, fenomenologicamente, e não destacado como observador externo, incluindo tudo o que faz, todas as tarefas, individuais ou em grupo, que executa nesse espaço; nesse sentido, obviamente, “fazer” (e certamente refazer de forma mais ou menos constante – sem excluir que os locais poderiam conhecer fases de relativa estabilidade, é claro) era o aspecto mais importante destes recintos, a sua construção era a construção da comunidade, numa retroação entre ser-se comunidade e fazer sítios comunitários, e vice-versa;
- portanto, aqui o conceito de habitar nada tem a ver com a trilogia arqueológica tradicional, que se afigura simplista e até ridícula, de sítios habitados – sítios de enterramento – sítios de culto ou rituais. É de abandonar tais terminologias infantis de uma vez para sempre, mesmo ao nível da classificação administrativa dos sítios, que tem de acompanhar o desenvolvimento do conhecimento, e não fossilizar categorias de denominação que pertencem ao passado;
- veio também ao debate a questão da visibilidade/invisibilidade dos sítios ou das estruturas e contextos, sendo óbvio que isso está em relação com o problema terminológico de lhes chamarmos, muitas vezes, “monumentos”. Sítios de altura, alcandorados e visíveis de longe (pelo menos de certos pontos de vista, não de todos), sítios de vale, sítios de encosta, sítios que envolvem territórios atravessados por cursos de água, enfim, a variabilidade é enorme. De “povoados fortificados” certos locais de altura passaram a designar-se “recintos monumentalizados” e, depois, “colinas monumentalizadas” (quando se percebeu que era toda a elevação de terreno, e não só o seu topo, que era significante). Alguém referiu que o que importa no conceito de monumento (como é sabido, do latim monumentum, do verbo monere, fazer recordar, advertir, lembrar, e instruir) não é tanto a sua visibilidade, imponência, articulação visual com outros acidentes da “paisagem”, etc., mas a sua ligação à memória. Por muito que o monumento tenha, ao longo dos séculos, perdido a sua hegemonia memorial, substituída por outras formas de fixação e de colectivização da memória. Mas é claro que, sendo assim (os recintos, a sua edificação e “uso”, prende-se também com a questão de memorizar, o que aliás parece altamente defensável, sobretudo num sentido alargado de memorizar) a questão que se põe é a mesma que já se colocava para os chamados monumentos megalíticos “funerários”, ou seja, uma vez feita a oclusão do corredor e câmara pelo montículo envolvente, quem ficava de posse de tal memória, depositário de tal “segredo” ?... Estabelecer-se-ia assim, como tantos autores sugeriram, uma hierarquia social, embrionária que fosse?... poderia tal aplicar-se aos recintos, ou a certos deles, ocluídos a partir de determinado momento? É que a nossa centralidade ocidental na importância que damos à questão da visão pode enganar-nos neste questionamento. Por isso, não sei, mesmo em relação a sítios de altura (isto é, salientes no território, e admissivelmente construídos não apenas no seu topo, mas também nas encostas voltadas aos arredores), a que temos chamado “colinas monumentalizadas”, se esta designação será a melhor... ou se não será de manter a questão em aberto até novas ideias surgirem... de facto, é reconfortante conviver com um pensamento que não pretende fechar-se, explicar tudo, fazer sistema;
- e, como fazer recordar algo que deixou de ser visível, a determinado momento?... pode ser, e tem implicações sociais e ideológicas potencialmente interessantes, como é bem sabido... quem dispõe de informação, quem e quando a transmite, etc., são questões a que somos hoje especialmente sensíveis, sabendo bem que a chamada “sociedade da informação” é aquela em que a dita informação se transformou numa realidade rentável, fazendo portanto do que não é transmitido precisamente o seu duplo mais importante, a garantia do valor, o seu controlo por determinadas fracções da comunidade. Como se põe essa questão para sociedades anteriores ao capitalismo ou, se quisermos, à sociedade baseada no valor capital, como valor central e de referência?...
- ao contrário da antropologia social e cultural, que permite o contacto com comunidades vivas, e a diferente “visita” por diferentes investigadores ao longo do tempo à mesma “comunidade”, a arqueologia apresenta-nos uma realidade sem pessoas e que tende para sugerir modelos “fixistas” de interpretação. Ora, a realidade social, qualquer que ela seja, caracteriza-se pelo seu dinamismo, e o “espírito” humano pela sua ambiguidade, pela sua criatividade, pela sua extrema complexidade. De certo modo, ao interpretarmos os sítios arqueológicos, temos em vista perceber a realidade implícita, social, que lhes deu origem, uma espécie de “inconsciente” desses sítios. O mesmo de algum modo fez a antropologia, nomeadamente a estruturalista: através do estudo comparado de narrativas (mitos, por exemplo) tentar estabelecer as suas regras de composição e de transformação inconscientes. Nós, ocidentais, através da ciência, iríamos dar aos “outros” (vivos ou mortos) aquilo que era a explicação do que eles faziam sem demasiadamente o consciencializarem – a nossa visão mais abrangente e explicativa de “cientistas”;
- estamos longe, hoje, de tais pretensões. Somos extremamente humildes em relação àquilo que o próprio conhecimento produzido nos ensinou: cada ser humano é um mundo próprio, cada comunidade humana um mundo próprio, cada sítio arqueológico um mundo à parte, é preciso ter imenso cuidado com as generalizações. Sem nunca perder de vista que o conhecimento – pelo menos o nosso, de que não podemos separar-nos – é sempre enviesado, é sempre parcial, é sempre situado, mas visa, em última análise o universal, a compreensão do todo. O que devemos é estar preparados, creio, não só para a revisão de cada aspecto, mas também das próprias bases epistemológicas em que construímos, individual e coletivamente, esse todo;
- sou particularmente devedor de ideias de outros colegas, expostas ou não neste encontro, e em particular e especificamente, pela ordem em que nele falaram, António Valera, Ana Vale, Maria de Jesus Sanches, João Muralha Cardoso, Lídia Batista, José Enrique Márquez Romero – sem desconsiderar muitas outras pessoas, desde as que também intervieram, até às que, tendo dado contributos importantes ao logo de décadas que estas investigações já conhecem, não puderam ou quiseram estar presentes. Certamente, como foi dito, nenhuma investigação está jamais terminada. E eu estou aberto, evidentemente, a todas as críticas, correções, acrescentamentos, etc., que os meus colegas queiram fazer-me; porque neste tipo de atividade todas as ideias são colectivas, nascem e desenvolvem-se a partir de trabalhos de equipa e de debates com abertura de espírito, tão avessa ao autocomprazimento ou ao incentivo, hoje dominante, à concorrência.
Na verdade, expus aqui estas notas porque as disse oralmente à minha mulher, quando cheguei do encontro, a que ela, por motivos profissionais, não pôde estar presente. E com o mesmo modesto sentido de partilha assim as divulgo, enquanto a memória não se apaga das ideias mais interessantes que partilhámos.
Vítor Oliveira Jorge
DCTP-FLUP (aposentado; convidado pela organização como “moderador” do encontro); IHC – FCSH Lisboa
Loures, Março de 2016.