quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Cultura material” - uma expressão sem sentido




“Quanto mais os objetos são afastados dos contextos da vida quotidiana nos quais são produzidos e utilizados – mais eles dão a impressão de serem objetos estáticos destinados a uma contemplação desinteressada (como nos museus e galerias) -, mais os processos que lhes deram origem são ocultados pelo produto ou objeto sob a sua forma final. Temos pois tendência para procurar a significação do objeto ou da ideia que ele exprime negligenciando a atividade à qual ele estava originalmente ligado. É precisamente esta atitude contemplativa que nos leva a considerar os objetos correntes do nosso ambiente quotidiano como objetos da “cultura material” cuja significação não se baseia tanto na sua incorporação num uso regular como na sua função simbólica.”

Tim Ingold

“Marcher Avec Les Dragons”, Bruxelas, Zones Sensibles (difundido por Les Belles- Lettres), 2013, pp. 216-217

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Na escavação, o arqueólogo depara-se em regra com objetos (de todas as dimensões) fragmentados, fragmentos esses que correspondem à penúltima fase da sua vida (a última é obviamente a exumação pelo próprio arqueólogo e o estudo científico a que procede, além de tudo o que vem depois na sequência disso...). A vida desses objetos (inteiros, ou já fragmentados "de origem", isto é, depositados como fragmentos) pode ter sido longa e "atribulada", ou seja, o objeto sofreu, desde a sua confecção, variadas vicissitudes de todo o tipo (ou pelo menos assim devemos pressupô-lo como mais provável).
A própria "fabricação"do objeto não foi a imposição de uma forma pré-concebida mentalmente pelo artesão a uma matéria bruta, mas o produto de um complexo jogo de forças, em que o corpo do artesão e várias circunstâncias em que decorreu esse "fabrico" interagiram constantemente.
Nós, obviamente, desconhecemos por completo as etapas deste mais ou menos longo e complexo processo, pelo que é claro que é impossível reverte-lo até à sua fase 0, ou reconstitui-lo ao longo das várias etapas. Todavia, seria isso o que mais importaria para a compreensão do dito objecto (desde um simples vaso a uma localidade inteira).
Significa isso que a arqueologia está condenada a uma visão estática da realidade com que se depara - é museográfica por excelência, por mais que queira embalar a realidade objetual com que lida num certo discurso de dinamismo. Obviamente, essa é a atitude de toda a objetivação, de toda a ciência: cristalizar os processos dinâmicos da realidade em processos observáveis. Até se deparar com o princípio de incerteza de Heisenberg e outros enigmas - estarei a entrar em terreno perigoso?...
Nós, arqueólogos, como parte de uma atitude museográfica mais geral, tendemos a reduzir o que foi um complexo processo de vida dos objetos a apenas duas fases do espectro, dois dos seus extremos, o inicial, e o final. Um, será a ideia (função, simbolismo, etc.) que teria "presidido" ao objeto, à sua confecção inicial (o que é um óbvio mentalismo, uma óbvia e tosca projeção no "passado" de uma concepção contemporânea). A outra, no extremo oposto do espectro, será a que se liga à atitude de expor o objeto para contemplação, o que se liga a uma óbvio voyeurismo da sociedade centrada na visão, na prioridade da imagem sobre tudo o resto (a que a própria tendência fenomenológica na filosofia não escapará, ou de que será sintoma - a obsessão de captar o vivido no seu aspecto mais imediato, nu, elementar, directo - como se isso fosse possível...). A essa contemplação do objecto (que pode ser uma cidade romana inteira como Pompeia, por exemplo) liga-se um feiticismo óbvio do "objetual", do material, ao qual depois se sobrepõem, para disfarçar, uma série de narrativas imaginárias, variáveis de acordo com a formação cultural do arqueólogo (ou do simples curioso de arqueologia). Sobre uma coisa passada pode dizer-se muita coisa, porque a coisa é muda e não responde. A arqueologia lembra-me às vezes um velório, em que cada um diz o que lhe vem à cabeça ou ao sentimento sobre os restos mortais do defunto.
Enfim, isto é uma caricatura. E dirige-me muito particularmente à pré-história, a área em que tenho trabalhado. Eu sou, ou pretendo ser, um arqueólogo. E toda a minha vida tentei ligar a arqueologia ao resto da cultura, o que é um processo que demora décadas e nunca estará terminado. Por outro lado, não sou o único - esta ºe decerto uma preocupação de todos os meus colegas.
Mas quando já não se é mais obrigado a produzir papers, nomeadamente segundo as regras dos burocratas que nada pensam excepto nas regras que inventam para impor aos outros, está-se mais livre para ir diretamente às leituras que importam e às reflexões que de súbito tornam claro o absurdo pseudo-produtivo de muitos campos do saber e da aprendizagem.
Eu próprio passei a vida a ensinar coisas em que já não acredito. Sim, não acredito. Porque a crença, a intuição, o insight, é a base de tudo.
E a permanente capacidade se uma pessoa se pôr em causa, até onde puder.

voj nov. 2015, Loures


RECINTOS NEOLÍTICOS E CALCOLÍTICOS DA PENINSULA IBÉRICA (IV- III MILÉNIOS AC) – ALGUMAS NOTAS E SUGESTÕES OCASIONAIS
Como ideias predominantes da jornada de trabalho de 17 de março de 2016 na FLUP, organizada pelo CITCEM e em particular como 4º encontro de ARQUEOCIÊNCIAS, parece poderem destacar-se (do meu ponto de vista, é claro, e sem ordem hierárquica) as seguintes, entre outras.
Estas ideias – acentuo - não são apenas minhas, são questões que foram debatidas em conjunto e, na sua maior parte, sugeridas ou propostas por outros autores que não eu. Creio ser este o objetivo maior destes encontros. Todavia, esta é a minha proposta de reflexão, que não pretende ser original:
- temos uma informação ainda muito deficiente sobre o objeto de estudo: muitos locais foram parcial ou totalmente destruídos, ou mal ou incompletamente escavados, outros são, pela sua própria natureza, invisíveis à superfície (daí a importância de ferramentas atuais não intrusivas, ou menos dispendiosas, como a magnetometria), e a própria abundância e dimensão dos sítios torna difícil aquilo que se imporia – a uma arqueologia digna desse nome – ou seja, um estudo exaustivo dos locais, e mesmo da sua envolvente, porque é óbvio que é todo o território que está aqui em causa, e não apenas, à moda tradicional, estações isoladas ou isoláveis do contexto. A maior parte destes sítios, para não dizer todos, fazem corpo, obviamente, com o território em que foram inseridos e com outros locais e acidentes de terreno próximos; seria até aconselhável a observação cuidadosa de todo o território, incluindo a escavação de áreas supostamente exteriores aos sítios, aos quais, obviamente, as comunidades nunca se acantonaram;
- este recintos, quer de fossos (estruturas “negativas”), quer providos de paredes ou muros, isto é, estruturas “positivas” (evidentemente que em certos casos, eventualmente em muitos, ambos estão presentes) eram, em geral, muito maiores do que a arqueologia tradicionalmente considerava - problema de dimensão, design, escala, concepção;
- a pequena “escala” das interrogações e das metodologias tradicionais (sondagem, escavação, métodos não intrusivos, etc.) traduzia-se numa visão completamente truncada da dimensão espacial dos sítios e, consequentemente, da sua morfologia, diacronia, eventual dinâmica, relação com o território envolvente, etc. – ou seja, numa total incompreensão dos sítios, na sua problemática riquíssima e complexa, do nosso ponto de vista atual;
- o querer determinar a função de sítios ou estruturas, numa clara projeção da nossa mentalidade atual (da qual obviamente nunca sairemos nem queremos sair, mas em relação à qual temos de estabelecer óbvia distância crítica se queremos investigar) não tem qualquer sentido, dada a pluralidade de significações e de conotações que os sítios, ou subáreas dos sítios, podem ter tido ao longo do espaço que ocupam ou foram ocupando e ao longo do tempo;
- os sítios ou estruturas são em geral multi-periodais, quer dizer, tiveram toda uma variação ao longo do tempo, que se traduz na reformulação de estruturas em positivo ou no enchimento intencional de estruturas em negativo, como fossos ou simples fossas, onde deposições diversas se intercalam com fases em que a mesma estrutura parece não ter sido alvo de atividade humana;
- a unidade mínima, por assim dizer, do “dado” arqueológico não é a peça inteira (o vaso, o artefacto, o osso – humano ou de animal – etc.), mas há todo um processo de fracturação de objetos anterior à sua deposição nos sítios, pelo que não são só os sítios que têm uma complexa “biografia”, mas também os elementos constituintes de deposições, as quais podem juntar, em momentos determinados, fragmentos de “coisas” que podem ter provindo de diferentes sítios e ter tido toda uma “vida” anterior;
- quer dizer, antes da sua deposição nos locais onde se encontram, os “materiais” tiveram uma vida mais ou menos complexa, evidenciando um sistema de transformações anterior à dita deposição;
- as construções têm evidenciado um crescimento ou edificação por junção de módulos, tanto em sítios de fossos como em sítios de muros, quer dizer, muitas vezes ter-se-á “colado” diferentes troços de construção segundo um “modelo” pré-definido, o que mostra, no mínimo, uma certa diacronia, uma repetição de gestos, intenções e formas, mas sujeita a um certo “design” e – perguntamo-nos – sendo estes sítios locais de concentração de grande investimento (concepção, construção, remodelação, manutenção, uso como enquadramento ou cenário de múltiplas ações e vivências) não terá tal facto resultado da coordenação de diferentes grupos? Não será essa adição de módulos – como aliás a adição de deposições, etc. – obra colectiva, no sentido de diversas fracções da comunidade contribuírem para a construção de uma realidade envolvente maior do que a de cada fracção, unindo assim simbolicamente a comunidade numa realidade superior à fracção, e, desse modo, construindo a própria comunidade? Não terá a deposição de fragmentos diversos e de variada natureza num mesmo “contexto”, quer dizer, num determinado momento do tempo, alguma conotação com a ideia de juntar o que estava disperso, unir o que estava fragmentado, mas a um nível simbólico?
- foi várias vezes acentuada a ideia de que o que parece presidir a esta proliferação de recintos, em toda a Europa neolítica e calcolítica, é uma intenção deliberada de marcar o espaço com um dentro e um fora, isto é, com um limite, criando de certo modo uma ideia de enclausuramento, sobretudo quanto esse limite (quando há valados, ou muros, paredes) limitava, para quem estava dentro do recinto, a visibilidade sobre a paisagem envolvente. Parece que o ser humano, em geral, se não coaduna com a fluidez, indeterminação, do espaço e do tempo (intimamente conectados) e que a sua forma de marcar unidades nestas épocas poderia ter sido, precisamente, o estabelecimento de limiares físicos no solo, fossem eles negativos ou positivos, fossem eles barreiras à progressão da passada ou da visão, ou simples barreiras simbólicas, como é evidente em casos de fossos pequenos ou recintos de menires;
- aliás, a própria habitação, por rudimentar que seja, é evidentemente caracterizada por definir limites, ou paredes, que são uma extensão do vestuário, ou seja, formas de abrangência, proteção, do corpo individual ou colectivo (grupo, comunidade) dentro de estruturas de proteção que, por vezes, assumem mesmo uma forma minimalista (tenda, cabana, casa soerguida mas muito aberta ao espaço envolvente, etc.), correspondendo tanto a necessidades físicas óbvias, como a necessidades simbólicas igualmente óbvias (habitualmente designadas “culturais” de forma simplista, porque oposta às “biológicas”, dicotomia evidentemente muito discutível e redutora);
- havendo nestes sítios passagens (interrupções em muros ou fossos) que podem estar conectadas astronomicamente, a sua obturação é por vezes complexa, envolvendo um tal requinte (por micro que seja) de construção que nos chegamos a perguntar se tal fechamento não foi a principal “intenção” da construção dessas “interrupções”, ou seja, se as “portas” não foram feitas, precisamente, para serem fechadas, isto é, mais uma vez, se não há aqui uma intenção simbólica predominante. Mas a dicotomia simbólico/funcional, no ser humano, é evidentemente errónea, pois precisamente o que o caracteriza é uma constante fusão de intenções práticas, ou imediatas, com intenções mais amplas, que costumamos designar “culturais”, conotativas, performativas: a ação humana não visa apenas a sobrevivência, nem visa “primeiro” a sobrevivência básica, e depois sobrepõe-se-lhe o simbolismo das intenções; não, tudo isso está mesclado desde o primeiro momento;
- é por isso tudo que a designação de “povoado fortificado” nos parece hoje, mais que nunca, mais que redutora – ingenuamente ridícula. Estamos aqui perante dispositivos muito complexos que têm de ser entendidos à luz dos conhecimentos das ciências sociais e humanas, e do que elas nos ensinam sobre a variedade infinita de comportamentos do ser humano, e não segundo um funcionalismo primário que é a projeção no passado da nossa atual funcionalização como pessoas adentro da sociedade pós-revolução industrial;
- foi acentuado que a construção destes sítios não visava estabelecer um local que só começava a ser “útil” a partir do momento em que estava acabado – se é que a ideia de “acabado” tem aqui sentido, tendo em vista a dinâmica dos locais, que os dados da arqueologia enganosamente reduzem a pretensos momentos os fases de estabilidade. Não, a construção era a parte mais importante da “razão de ser” destes sítios, com tudo o que isso implicava de coordenação, de empenhamento, de inscrição nos corpos e nas mentes de gestos coordenados, de “habitus” no sentido de Pierre Bourdieu;
- nessa sequência, veio de novo à colação o conceito heideggeriano de habitar (“dwelling”) por oposição ao de ocupação, ou utilização funcional de um sítio construído ou espaço usado. O ser humano (Dasein) está imerso no mundo, faz corpo com ele (e não o vê como uma paisagem ao modo ocidental desde o Renascimento), e nesse sentido “habita” o mundo, habita o espaço, mas sensorialmente, fenomenologicamente, e não destacado como observador externo, incluindo tudo o que faz, todas as tarefas, individuais ou em grupo, que executa nesse espaço; nesse sentido, obviamente, “fazer” (e certamente refazer de forma mais ou menos constante – sem excluir que os locais poderiam conhecer fases de relativa estabilidade, é claro) era o aspecto mais importante destes recintos, a sua construção era a construção da comunidade, numa retroação entre ser-se comunidade e fazer sítios comunitários, e vice-versa;
- portanto, aqui o conceito de habitar nada tem a ver com a trilogia arqueológica tradicional, que se afigura simplista e até ridícula, de sítios habitados – sítios de enterramento – sítios de culto ou rituais. É de abandonar tais terminologias infantis de uma vez para sempre, mesmo ao nível da classificação administrativa dos sítios, que tem de acompanhar o desenvolvimento do conhecimento, e não fossilizar categorias de denominação que pertencem ao passado;
- veio também ao debate a questão da visibilidade/invisibilidade dos sítios ou das estruturas e contextos, sendo óbvio que isso está em relação com o problema terminológico de lhes chamarmos, muitas vezes, “monumentos”. Sítios de altura, alcandorados e visíveis de longe (pelo menos de certos pontos de vista, não de todos), sítios de vale, sítios de encosta, sítios que envolvem territórios atravessados por cursos de água, enfim, a variabilidade é enorme. De “povoados fortificados” certos locais de altura passaram a designar-se “recintos monumentalizados” e, depois, “colinas monumentalizadas” (quando se percebeu que era toda a elevação de terreno, e não só o seu topo, que era significante). Alguém referiu que o que importa no conceito de monumento (como é sabido, do latim monumentum, do verbo monere, fazer recordar, advertir, lembrar, e instruir) não é tanto a sua visibilidade, imponência, articulação visual com outros acidentes da “paisagem”, etc., mas a sua ligação à memória. Por muito que o monumento tenha, ao longo dos séculos, perdido a sua hegemonia memorial, substituída por outras formas de fixação e de colectivização da memória. Mas é claro que, sendo assim (os recintos, a sua edificação e “uso”, prende-se também com a questão de memorizar, o que aliás parece altamente defensável, sobretudo num sentido alargado de memorizar) a questão que se põe é a mesma que já se colocava para os chamados monumentos megalíticos “funerários”, ou seja, uma vez feita a oclusão do corredor e câmara pelo montículo envolvente, quem ficava de posse de tal memória, depositário de tal “segredo” ?... Estabelecer-se-ia assim, como tantos autores sugeriram, uma hierarquia social, embrionária que fosse?... poderia tal aplicar-se aos recintos, ou a certos deles, ocluídos a partir de determinado momento? É que a nossa centralidade ocidental na importância que damos à questão da visão pode enganar-nos neste questionamento. Por isso, não sei, mesmo em relação a sítios de altura (isto é, salientes no território, e admissivelmente construídos não apenas no seu topo, mas também nas encostas voltadas aos arredores), a que temos chamado “colinas monumentalizadas”, se esta designação será a melhor... ou se não será de manter a questão em aberto até novas ideias surgirem... de facto, é reconfortante conviver com um pensamento que não pretende fechar-se, explicar tudo, fazer sistema;
- e, como fazer recordar algo que deixou de ser visível, a determinado momento?... pode ser, e tem implicações sociais e ideológicas potencialmente interessantes, como é bem sabido... quem dispõe de informação, quem e quando a transmite, etc., são questões a que somos hoje especialmente sensíveis, sabendo bem que a chamada “sociedade da informação” é aquela em que a dita informação se transformou numa realidade rentável, fazendo portanto do que não é transmitido precisamente o seu duplo mais importante, a garantia do valor, o seu controlo por determinadas fracções da comunidade. Como se põe essa questão para sociedades anteriores ao capitalismo ou, se quisermos, à sociedade baseada no valor capital, como valor central e de referência?...
- ao contrário da antropologia social e cultural, que permite o contacto com comunidades vivas, e a diferente “visita” por diferentes investigadores ao longo do tempo à mesma “comunidade”, a arqueologia apresenta-nos uma realidade sem pessoas e que tende para sugerir modelos “fixistas” de interpretação. Ora, a realidade social, qualquer que ela seja, caracteriza-se pelo seu dinamismo, e o “espírito” humano pela sua ambiguidade, pela sua criatividade, pela sua extrema complexidade. De certo modo, ao interpretarmos os sítios arqueológicos, temos em vista perceber a realidade implícita, social, que lhes deu origem, uma espécie de “inconsciente” desses sítios. O mesmo de algum modo fez a antropologia, nomeadamente a estruturalista: através do estudo comparado de narrativas (mitos, por exemplo) tentar estabelecer as suas regras de composição e de transformação inconscientes. Nós, ocidentais, através da ciência, iríamos dar aos “outros” (vivos ou mortos) aquilo que era a explicação do que eles faziam sem demasiadamente o consciencializarem – a nossa visão mais abrangente e explicativa de “cientistas”;
- estamos longe, hoje, de tais pretensões. Somos extremamente humildes em relação àquilo que o próprio conhecimento produzido nos ensinou: cada ser humano é um mundo próprio, cada comunidade humana um mundo próprio, cada sítio arqueológico um mundo à parte, é preciso ter imenso cuidado com as generalizações. Sem nunca perder de vista que o conhecimento – pelo menos o nosso, de que não podemos separar-nos – é sempre enviesado, é sempre parcial, é sempre situado, mas visa, em última análise o universal, a compreensão do todo. O que devemos é estar preparados, creio, não só para a revisão de cada aspecto, mas também das próprias bases epistemológicas em que construímos, individual e coletivamente, esse todo;
- sou particularmente devedor de ideias de outros colegas, expostas ou não neste encontro, e em particular e especificamente, pela ordem em que nele falaram, António Valera, Ana Vale, Maria de Jesus Sanches, João Muralha Cardoso, Lídia Batista, José Enrique Márquez Romero – sem desconsiderar muitas outras pessoas, desde as que também intervieram, até às que, tendo dado contributos importantes ao logo de décadas que estas investigações já conhecem, não puderam ou quiseram estar presentes. Certamente, como foi dito, nenhuma investigação está jamais terminada. E eu estou aberto, evidentemente, a todas as críticas, correções, acrescentamentos, etc., que os meus colegas queiram fazer-me; porque neste tipo de atividade todas as ideias são colectivas, nascem e desenvolvem-se a partir de trabalhos de equipa e de debates com abertura de espírito, tão avessa ao autocomprazimento ou ao incentivo, hoje dominante, à concorrência.
Na verdade, expus aqui estas notas porque as disse oralmente à minha mulher, quando cheguei do encontro, a que ela, por motivos profissionais, não pôde estar presente. E com o mesmo modesto sentido de partilha assim as divulgo, enquanto a memória não se apaga das ideias mais interessantes que partilhámos.
Vítor Oliveira Jorge
DCTP-FLUP (aposentado; convidado pela organização como “moderador” do encontro); IHC – FCSH Lisboa
Loures, Março de 2016.
Working paper (algumas notas ocasionais apenas...)
Outro com letra grande: o nosso Interlocutor em última (e primeira...) instância e... uma breve referência ao modo capitalista de funcionamento
por
Vítor Oliveira Jorge
(Instituto de História Contemporânea – IHC – FCSH- UNL)
Quando vamos ao facebook, este (a máquina automática montada por esta multinacional) pergunta-nos, a nós, seus trabalhadores gratuitos e voluntários (isto, obviamente, até lembra a antiga questão filosófico-política da “servidão voluntária”...): “EM QUE ESTÁS A PENSAR ?”
E nós respondemos, de algum modo, fazendo um postagem, uma publicação, de qualquer coisa. Muitas pessoas fazem citações, outras remetem-se ao silêncio, deixando neste caso pressupor que “criaram uma conta” no facebook, entre outras coisas, mais para observarem os outros, do que para se exprimirem.
Mas o silêncio é também uma forma de ação, claro; e há além disso várias modalidades, que vão desde pôr ali coisas “só para o prque r isso Lacan elizusivamente filospetentes do que eu; a, por um Grande Outro completamente histamente o burocriva, desmesuradóprio se divertir” (a atitude blasée de quem finge não ligar muito a àquilo...) até criar lojas online ali, para publicitar um negócio qualquer, ou eventos culturais e científicos, que proliferam.
A QUEM ESTAMOS DE FACTO A RESPONDER?
A essa coisa abstracta chamada facebook, que nos aparece como uma simples ferramenta de comunicação? Aos nossos “amigos” de lá, muitos dos quais nem conhecemos bem, ou nem mesmo nunca vimos? Que resposta é essa, nesta sociedade em que somos obrigados a dar-nos a ver como espetáculo, a expormo-nos naquilo que se pode considerar “identidades encenadas”... porque, obviamente, escolhemos pôr ali certas coisas, que até podem ser muito pessoais (retratos de família, imagens ou recordações da nossa infância, desabafos, etc., etc.) mas são sempre produto de uma escolha (há muita matéria que em princípio não iríamos publicitar ali, estaria deslocado ou levantaria problemas de vária ordem, a começar pela censura que a máquina nos faz ( se eu publicar uma imagem da Vénus de Milo é capaz de ter uma séries de likes, se eu publicar uma boa fotografia erótica contemporânea pode haver uma mentalidade puritana que imediatamente faz queixa e eu tenho de a tirar para o facebook não me bloquear, etc., etc.- todos sabemos bem isso).
Respondendo à minha pergunta acima:
ESTAMOS A RESPONDER ÀQUILO A QUE LACAN CHAMARIA O GRANDE OUTRO (grand Autre) POR OPOSIÇÃO AO SEU PEQUENO OUTRO (petit autre, ou objeto pequeno a).
Que é esse Outro com letra maiúscula? Isso daria, e tem dado, para longos trabalhos... certamente por pessoas muito mais competentes do que eu; mas simplifiquemos aqui, nesta breve nota.
Como explica por exemplo Jean-Pierre Cléro no seu “Dictionnaire Lacan” (Paris, Ellipses, 2008, pp. 41 e segs) nós costumamos – na nossa tradição de pensamento, inclusivamente filosófico - distinguir o outro empírico, com que contactamos todos os dias, do Outro como abstração que em si mesma contém todos esses outros particulares. Tudo o que fazemos, expõe o autor (para nos fazer entender o pensamento de Lacan) pressupõe em última análise esse Outro último, por assim dizer.
“O Outro – escreve ele, Cléro – é o outro essencial, a alteridade do outro, o conjunto dos modos estruturais pelos quais entramos em contacto, recusamos o contacto, nos cremos em contacto ou sem contacto, com outrem.” (p. 42)
O Outro é portanto a outridade, no seu sentido mais geral. O que dá sentido e sustenta a ordem simbólica que nos permite viver. Como diria S. Zizek, sob a cama do amor em que o casal se junta está sempre o Grande Outro, que murmura, que permite a fantasia que transforma o ato algo desgostante da copulação em ato amoroso, satisfatório, eventualmente feliz; que permite desde logo que a cópula se consuma, que ocorra o desejo.
Por isso no encontro de duas pessoas (que é também, como a psicanálise nos explica, sempre um des-encontro; isso que Lacan resumiu na célebre proposição segundo a qual “não existe relação sexual”...) está sempre presente, pelo menos, uma terceira entidade: o Grande Outro. O erotismo (e de uma maneira geral todos os atos, desde os mais banais, até aos mais “importantes” para nós, aqueles em que investimos mais) só é possível com a fantasia de estarmos a “representar” para uma terceira figura, um lugar simbólico, ou posição, que é esse Outro.
ORA É A ESSE GRANDE OUTRO QUE TAMBÉM RESPONDEMOS ALI NO FACEBOOK, claro. É para ele que vamos ali (mais ou menos pressurosamente) encenar identidade(s).
Mais adiante, acrescenta aquele autor (Cléro) : “O grande Outro” e o “pequeno outro” estão em relação dialética contínua: nenhuma das posições pode estabilizar-se, uma vez que o outro dá uma garantia existencial frágil relativamente ao Outro, embora nenhum outro seja jamais suficiente para encarnar o Outro, única “verdadeira” referência dos nossos afectos, das nossas ações, dos nossos juízos.” (op. cit, pp. 42-43).
Quer dizer que, para que qualquer outro empírico nos interesse, desperte a nossa atenção, e mesmo eventualmente nos seduza, alguma coisa (indefinível, claro, estamos aqui ao nível do inconsciente) tem nele que reportar para o tal Outro, para essa posição simbólica (fictícia, evidentemente, mas suporte da própria ficção que é a realidade em que nos movemos – a realidade tem a estrutura de ficção, como Lacan nos ensinou) “última” e “primeira”... ora, isto é muito interessante, entre outros aspectos porque se pode conectar com a questão da ideologia. E assim permitir passar do nível radicalmente individual em que a psicanálise (pelo menos a lacaniana) tendencialmente e desejavelmente se move, para o âmbito da esfera política. Superar uma psicanálise apolítica e ahistórica é capital, para que ela (a psicanálise) tenha um verdadeiro valor no âmbito que excede a clínica, para ser fonte inspiradora do pensamento crítico. Isto parece óbvio.
Que é a ideologia, tal como começou a ser magnificamente teorizada desde Marx?... não um conjunto de ideias, por certo, ou mesmo um conjunto de crenças ou convicções que possamos objectivar facilmente, olhar de fora, e até alterar... dito de uma maneira muito singela, a ideologia é o cimento fictício (mas totalmente invasivo e eficaz, porque não atua, não se posiciona, ao nível consciente, mas sim do inconsciente) que sustenta a sociedade, mesmo a mais absurda, ou detestável, como a hitleriana, a estalinista, ou a neoliberal burguesa.
A ideologia é o que define o contorno último do horizonte das pessoas, o próprio ar que respiram, aquilo que lhes surge como absolutamente evidente e inquestionável, o que se não discute, mesmo que se aceite ter aspectos particulares discutíveis. A ideologia suporta-se no Grande Outro, não em qualquer outridade menor. Quando se toca, ou “ofende”, a ideologia de qualquer pessoa, aquela em que ela está imersa (e todos estamos, de um modo ou de outro, imersos hoje na ideologia consumista, por exemplo, que é um conjunto de ações e de habitus no sentido de Bourdieu, mas também de noções naturalizadas e portanto jamais questionadas), a pessoa muitas vezes reage de uma forma que nos parece excessiva, desmesurada. Essa desmesura é sintomática (sintoma, ideia importante que como sabemos Lacan complexificou de modo muito pertinente) de que algo de outro nessa pessoa beliscou o seu Grande Outro de referência, poder-se-ia dizer, um pouco toscamente (porque estas coisas são muito mais complexas, é claro...).
Veja-se por exemplo a ideologia burocrática, que é uma das facetas principais da dominação do Estado (e desses pequenos Estados que são as regiões, onde elas existem, ou as autarquias, etc.), nomeadamente do neoliberalismo hoje dominante.
A maior parte das pessoas passa a vida, nos regimes burocráticos, de um ponto de vista substantivo, a FAZER NADA, isto é, a preencher papelada (ou formulários no computador), ofícios, despachos, respostas a demandas de outrem, nomeadamente de chefes, preenchimento de questionários, programas, avaliações, enfim, uma parafernália interminável e enlouquecedora de rituais que NÃO PRODUZEM NADA e servem apenas como máquina que já só se justifica a si mesma, e permite a existência/ocupação de lugares de “trabalho”, a distribuição de poderes, a ocupação de tempos, um factor essencial para a docilização dos sujeitos, verdadeiramente assujeitados à falta de Tempo para pensar.
Essa é uma das formas da alienação contemporânea, tão bem representada nas obras de Kafka, por exemplo: o próprio absurdo elevado à categoria de razão e de princípio de organização, que em última análise tem uma função de domínio, de dominação, de assujeitamento.
É uma organização e economia suave (um modo de oprimir sem violência física) de subjugação de sujeitos, tornados servos de uma máquina sem sentido. O que se poderia articular com questões caras à problemática do biopoder e da filosofia política, para a qual autores como Foucault deram um contributo fundamental e bem conhecido. O poder alienante, nomeadamente o burocrático, não se exerce apenas a grandes níveis do aparelho de Estado: funciona na gestão corrente dos pequenos poderes, dos poderes difusos e subtis, de inclusão e exclusão, de favorecimento de uns em detrimento de outros, etc., etc.
Todos sabemos isso: mas não apenas - como às vezes pensamos - uma perversão do aparelho: não, essa “perversão” é o seu próprio núcleo e modo de ser, a sua própria estrutura, máquina de funcionamento de reprodução das desigualdades, da disfunção contemporânea, do enlouquecimento de muitas pessoas, tonadas de frustração ou depressão resultante, em última análise, da sua inserção obrigada nestes esquemas repressivos quase invisíveis, tornados habituais, tornados naturais pela ideologia, por um Grande Outro completamente histórico e “fabricado” pelo modo de produção capitalista. Para este tema é muito interessante o pensamento de Béatrice Hibou (veja-se por exemplo “La Bureaucratisation du Monde à l’Ère Néolibérale”, Paris, La Découverte, 2012).
Este tema é certamente muito caro aos meus colegas professores universitários e investigadores ainda no ativo, vitimados por toda uma máquina de avaliação que sobre eles se abateu, enquanto que a sua vocação seria em princípio absolutamente a oposta, ou seja, trabalhar com os estudantes para produzir conhecimento, no sentido mais amplo do termo, e não papelada (e por vezes, coitados, desdobrarem-se na produção de trabalhos para publicar em revista indexadas, que são a garantia da sua avaliação e portanto do seu posto de trabalho muito mais precário do que dantes...).
Enfim, tudo isto representa, como Bernard Stiegler tem repetidamente afirmado, um processo de embrutecimento, de desenvolvimento da bêtise, nas nossas sociedades, quando estas dispõem agora da tecnologia necessária e disponível para permitir a muito mais pessoas cultivarem-se e pesquisarem – isso não lhes é possível porque a burocracia lhes “come” literalmente o tempo, factor fundamental de liberdade, de felicidade, sem as quais nenhum saber verdadeiramente digno do ser humano se cria.
É claro que este embrutecimento geral da sociedade burocrática se relaciona com formas de autoritarismo antidemocrático (mesmo no sentido da democracia burguesa tradicional) que estão já a ter expressão em muitos países e potências e países ao mais alto nível do aparelho de Estado.
E corremos o evidente risco de se propagarem, ao ponto de nos perguntarmos, em relaçnos chegam veiculadas oelos media, propagarem, ao onal,rificou de modo muito importante) nte histamente o burocriva, desmesuradão a notícias que nos chegam veiculadas pelos media, se estamos a assistir à realidade habitual ou a algo que é do domínio do paródico ou do terrorífico (duas faces às vezes da mesma moeda, como Chaplin tão bem encenou no seu maravilhoso filme sobre Hitler, “The Great Ditactor”, de 1940).
A falta atual de um espaço público que possa funcionar como “Grande Outro”, ou “Outro” com letra maiúscula, a mercantilização das soluções religiosas (que se desdobram em múltiplas seitas, por vezes com grande poder económico, atuando como verdadeiras multinacionais) e o achatamento de hierarquias justas, baseadas no mérito, numa perspectiva horizontal (pseudodemocrática, e populista, que leva à banalização do saber sustentado, à obsessão pela opinião desinformada, à degradação da aprendizagem, ao desinteresse dos jovens), a de que “somos todos iguais” quando se facto na prática aumentam as desigualdades de forma nunca vista – tudo isso é, entre muitos outros aspetos, a razão de ser do facebook se ter tornado uma das maiores empresas do mundo.
Loures, fevereiro de 2017
Notas despretenciosas e ocasionais enquanto releio algum Foucault


As coisas, as palavras e... os discursos, as formações discursivas, ordenadas em “figuras de conjunto” que dão as disciplinas universitárias, a partir do século XIX...
Ao contrário de tanta banalidade absurda que se continua a inventar sobre a relação entre coisas (a “realidade”) e palavras (a suposta descrição, compreensão, apreensão, etc. dessa realidade), nomeadamente nas equívocas filosofias “simétricas” de “retorno aos objetos”..., Foucault revela já em 1969 a originalidade e (quanto a mim...) pertinência, ainda hoje, do seu empreendimento nestes termos (“L’ Archéologie du Savoir”, Paris, Gallimard, 1969, pp. 66-67), nos quais caracteriza a sua tarefa:
“ Tarefa que consiste em não - em nunca – tratar os discursos como conjuntos de signos (de elementos significantes reportando para conteúdos ou representações) mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que elas falam. Claro, os discursos são feitos de signos; mas o que eles fazem é mais do que utilizar signos para designar coisas. É este mais aquilo que os torna irredutíveis à língua e à fala. É este “mais” [plus] que se torna necessário fazer aparecer e que se torna necessário descrever.”
Claro que para perceber isto é indispensável compreender o que Foucault isolou como discurso, como a prática discursiva, a contrapelo do que os historiadores faziam e muitos fazem: irem aos documentos (quaisquer que sejam, mas, claro, nomeadamente os escritos...) e extrair-lhes uma espécie de tutano, ou sentido, ou conteúdo, segundo as regras da prática historiográfica rotineira. O que Foucault faz é deslocar toda essa relação habitual entre o que supostamente existe e o que se supostamente se diz ou faz, ou quer dizer, para compreender precisamente o interstício entre uma coisa e outra.
Trata-se de abandonar, a um só tempo, a tradição antropológica e a tradição humanista. De ultrapassar a história presa ao documento, o que evidentemente não significa descartá-lo, longe disso. Não se trata é de, como ele escreve na Introdução da obra, reconstituir o passado a partir dos documentos, que dele supostamente emanam.
Trata-se da descrição dos acontecimentos discursivos, uma massa imensa de elementos, um campo enorme mas não infinito: o conjunto dos acontecimentos discursivos, acompanhado da pergunta (op. cit., p. 39) “ (...) como é que determinado enunciado apareceu, e nenhum outro, em seu lugar?”. O enunciado aparece como o acontecimento, um acontecimento “estranho” , diz o autor (op. cit. p. 40) porque: “(...) está ligado por um lado a um gesto de escrita ou à articulação de uma fala [parole], mas por outro lado abre para si próprio uma existência remanente no campo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros, e de qualquer outra forma de registo; depois porque é único como qualquer acontecimento, mas oferece-se à repetição, à transformação, à reativação; por fim porque está ligado a situações que o provocam, e a consequências que ele incita, mas, ao mesmo tempo, e de acordo com uma modalidade muito diferente, a enunciados que o precedem e que a ele se seguem.”
Trata-se de um pensamento relacional a muitos níveis.
Evidentemente, este método histórico, que subverte a “história dos historiadores”, inventado por Foucault, refere-se sobretudo às relações entre enunciados, e como essas relações se acabam por cristalizar em práticas e em conjuntos (por exemplo, a loucura) através de “superfícies de emergência” (família, por ex.) , de “instâncias de delimitação” (medicina, por exemplo) e “grelhas de especificação” (alma, corpo, etc.), criando “figuras de conjunto”. Estas últimas são por exemplo a psicopatologia, a economia, a gramática, a medicina, etc. , ou seja um conjunto de práticas discursivas sujeitas a “(...) um conjunto de regras que são imanentes a uma prática e a definem na sua especificidade.” (p. 63)
Por exemplo, e agora falando de arqueologia dos arqueólogos (como eu) seria muito interessante fazer uma reflexão sobre como se constituiu, e se foi transformando, esta prática discursiva: não uma história de descobertas ou descrição de sítios, não uma história das várias tentativas que os autores fizeram de os domesticar através de narrativas mais ou menos importadas do senso-comum ou de outras práticas discursivas, mas analisando a superfície mesma das práticas discursivas diversas que se cristalizaram neste campo, até hoje.
Muitas vezes baseadas num equívoco fundamental: o de que existiu um passado, que se esboroou no seu sentido (como se o problema do próprio passado não fosse sempre o de hoje, o da nossa interrogação retrospectiva hoje), e que temos de recuperar, de reconstituir, interpretando coisas, objetos, realidades materiais, no que elas ardilosamente escondem dessa realidade, por assim dizer, metafísica, desse “passado”. Quais detectives, assim partimos para certas parcelas da realidade atual, que trabalhamos segundo metodologias mais ou menos consolidadas, e lá vamos, qual Penélope travestida de Sísifo, fazendo o tricot dessa narrativa que estabelece a nossa continuidade com a natureza, aplicando teorias e mais teorias para acordar o passado que supostamente jaz, semi-morto, morto-vivo, nas coisas.
Empreendimento delirante, algo histérico? Quiçá. Mas desde que forneça histórias, estórias para contar, dá que fazer, constitui um instrumento de entretenimento e de “rassurance” das pessoas relativamente ao fio de continuidade que supostamente existiria entre cada um de nós e a origem do mundo.
E se lá nesse princípio estiver um pai protetor, um deus ou divindade qualquer, então é ouro sobre azul. O mundo faz sentido, foi criado, e nós havemos de ser no fim (?) redimidos de todas as maldições e sofrimentos. A narrativa é coerente, alimenta instituições, pesquisas e pessoas, e une-se miraculosamente à nossa infância, a idade em que a gente vivia simultaneamente num mundo mágico e num mundo de perguntas: ó pai, por que é que há sol? Ó pai, por que é que há isto e mais aquilo?...
É isso que os visitantes procuram nos sítios pré-históricos. Uma resposta rápida como um tweet, para a seguir irem para outro sítio, como meninos num parque de diversões (no turismo somos todos meninos de novo). Procuram uma archè, de bolso, resposta rápida que a família já estará impaciente à espera, algum fundamento, algo que os liberte da loucura de estarmos sós perante o espetáculo do firmamento, perante este terrível silêncio cheio de ruído de fundo, quer dizer, perante a nossa morte, a nossa efemeridade, a nossa não-razão, a imperfeição da realidade e de nós próprios como parte dela.
Que viver desencantado e, paradoxalmente, encantado (porque a eternidade seria o infinito tédio, a condenação mais horrível...), não é para qualquer um: nem vende bilhetes nem junta massas de aderentes.
Foucault vivo hoje. Como tantos outros pensadores. Essa a dificuldade. Nenhum possui a chave, é preciso procurar continuamente e encontrar as ligações inesperadas que podem existir no diálogo de pensadores tão diversos e que tanto às vezes se negaram uns aos outros.

voj maio 2017, loures
Pouca sorte de um possível campo de estudos interdisciplinares




O problema da história das ciências sociais em Portugal em certos aspectos é muito interessante de pensar.
Como é bem sabido, Salazar detestava-as e proibiu-as. Portugal no 25 de abril de 1974 era opaco a si mesmo, como Boaventura S. Santos e outros acentuaram. Era um país fechado.
Num certo sentido, tudo isto teve, para o meu interesse nuclear, um efeito profundamente debilitante.
Qual o meu interesse nuclear inicial? Aquilo que antigamente se chamava a “história primitiva do homem”, as "sociedades primitivas" (no tempo ou no espaço), isto é, no fundo, o problema de como é que apareceu o nosso género e espécie, este "escândalo da natureza": um ser que se pensa a si mesmo!
Este estudo implicava, e implica, uma relação interdisciplinar de raiz: a união de uma antropologia das sociedades pré-estatais, ou se quisermos, não-estatais, por um lado, e, por outro, o desenvolvimento de uma ciência que, como todas, é cara, e pouco “vistosa”, a arqueologia pré-histórica.
Enquanto nos grandes países centrais (certamente também em relação com a sua postura imperial) isso se desenvolvia, em Portugal tal não aconteceu.
Salazar só desenvolveu a actividade dos engenheiros do património (DGEMN) concentrada sobretudo em castelos e igrejas, os símbolos da nação para ele e para o seu regime.
Entretanto, havia arqueólogos que se dedicavam à pré-história, sobretudo no litoral, mas em grande parte para nosso mal. Eram na maioria simples amadores, e muitos deram cabo de muita coisa. Alguns eram mesmo extremamente ávidos de recolher materiais, à pá e pica, a abrir buracos. Essa é a triste verdade.
Assim, e salvo excepções, é claro, a arqueologia pré-histórica não se desenvolveu como nos países mais industrializados.
Quando se deu o 25 de abril, e como é natural, a maior parte dos antropólogos, alguns deles recém-chegados ao país, formados no estrangeiro, não se voltou para as "comunidades primitivas", cujo estudo seria fulcral também para a arqueologia pré-histórica. Quais comunidades seriam essas? Refiro-me a uma antropologia das sociedades não-estatais, existentes ainda, à altura, em muitos pontos do mundo, para os quais nunca enviámos equipas, concentrados que estávamos nos graves problemas de atraso do nosso pais. É compreensível.
O país era aliás ele mesmo um museu de si próprio. Que fizeram esses autores que desenvolveram uma nova antropologia em Portugal? Tentar ir para além do que antes de mais sério se tinha feito - ou seja, o estudo da chamada "cultura material" por Jorge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira, Benjamin Pereira e Fernando Galhano, tendo também Jorge Dias realizado estudos de comunidades segundo uma problemática e um método que já se tinham, também eles, tornado anacrónicos noutros países mais evoluídos neste domínio ... há aqui, em Portugal, um fenómeno de constante anacronismo... produto de décadas de fechamento.
Então os antropólogos depois do 25 de abril foram-se voltar sobretudo para comunidades presentes, e depois também, mais recentemente, para outras "exóticas", mas já em rápido processo de transformação, nos países de língua portuguesa...etc.
Ou seja, hove um desfasamento sempre entre pré-história e antropologia. Certas figuras ligadas ao regime evidentemente faziam essa ponte, como por exemplo Mendes Correia, mas apesar da sua intensa actividade, com algum mérito, obviamente a sua ação, embora envolvendo muitos contactos internacionais, aparece-nos hoje como também anacrónica, à luz do que se fazia nos países mais avançados da mesma época, obviamente.
Uma das áreas que sofreu muito com esta simetria inversa foi a arqueologia pré-histórica e de um modo geral o estudo interdisciplinar das “origens do homem”, apesar de todos os progressos que se efectuaram na primatologia, no estudo do Paleolítico, da geologia do Quaternário, etc., etc.
Explico-me melhor: antes do 25 de abril, interesse quase puramente amador pela arqueologia pré-histórica - por parte de portugueses, mas o que nos legaram os estrangeiros foi sobretudo o Zambujal, em Torres Vedras, caso isolado - e interesse do Estado pelos monumentos históricos; ausência de interesse por sociedades "primitivas". Sou testemunha da própria dificuldade que tive na elaboração dos meus trabalhos para realização de licenciatura... com os meus 69 anos, tenho essa visão do antes e do depois, que muitos, mais jovens que eu, poderão não ter, pelo menos de forma vivida e sentida “na pele”...
Depois do 25 de abril, desenvolvimento de várias arqueologias, referentes a todas as épocas, onde a pré-histórica foi sempre filha menor, e interesse antropológico pela contemporaneidade para colmatar o vazio anterior das ciências sociais.
Com tudo isto, em balanço final, a arqueologia pré-histórica ficou sempre a perder.
Antes do 25 de abril a única arqueologia decente que se fazia cá era a romana, com o casal Alarcão em Coimbra (Universidade) e Conimbriga. Mais nada, praticamente, de trabalho condizente com aquela época, actualizado, exceptuado um ou outro caso de amadores de melhor qualidade (como Eduardo da Cunha Serrão).
A única antropologia decente, interessante, era a da equipa de Jorge Dias, mas esta estava totalmente desconectada dos arqueólogos, e, a certa altura, das mais recentes tendências da antropologia mundial. Eu pude falar com Jorge Dias, infelizmente, apenas uns 5 a 10 minutos, nada mais...
A nossa única grande oportunidade (a de pessoas que estudavam a chamada pré-história) de aparecer à tona e de conseguir para a arqueologia um novo estatuto e para a arqueologia pré-histórica um maior prestígio - e por isso também criou um certo mal estar - foi o Côa, em 1994/95/96/97.
A maior parte da população alheou-se do assunto, apesar da sua mediatização, e de ele ter inclusivamente aberto telejornais...
As pessoas mais atentas e inteligentes aperceberam-se porém de que havia ali algo de novo. O Côa parecia ser o 25 de abril da arqueologia portuguesa.
Era também a afirmação da pré-história, que pela primeira vez conseguiu inscrever como património mundial da Unesco um património de facto único no nosso território, as gravuras do Côa no seu contexto (1998).
Porém, sabe-se as dificuldades por que tem passado aquele trabalho, que muito deve ao esforço de alguns arqueólogos. É um património fabuloso mas difícil de entender, de transmitir, implica uma cultura que muitas pessoas não têm.
O ensino primário e médio não ajuda, o ensino superior vai fazendo o que pode, há investigação de qualidade em certos casos, indubitavelmente, mas o grande salto que se esperava não chegou a dar-se, por várias razões, o que em última análise se deve a falta de consciência cultural (a todos os níveis) e a problemas de falta de financiamento.
Infelizmente, os sítios pré-históricos não dão em geral para grandes "vendas de bilheteira"...
Enquanto o valor for este, o da rendibilidade sobretudo material, e não o da qualidade de vida, do gosto, do refinamento do gosto, do amor daquilo que é precioso mas que se não se traduz em dinheiro, as disciplinas e saberes que não têm tanta visibilidade estarão sempre em posição de submissão e de vulnerabilidade. Os que querem instrumentalizar a produção de conhecimentos para as industrias culturais atraentes evidentemente não estão interessados em nada disto, mormente agora em época de chamada “crise”.
Veja-se o que aconteceu no caso do Interior – durante muito tempo desconhecido, até pela dificuldade de transportes, de acessibilidades - e de 3 barragens, que puseram na ordem do dias patrimónios fantásticos: as gravuras do Tejo ficaram debaixo das águas da barragem de Fratel, antes do 25 de abril; as do Côa foram miraculosamente salvas até hoje, e esperemos que para sempre; mas o que ficou debaixo do grande lago do Alqueva, onde os arqueólogos até tiveram durante algum tempo algumas boas condições de trabalho dadas pela empresa construtora, foi incalculável.
Realmente não houve hipótese alguma de conseguir algo de alternativo a uma enorme barragem que era apoiada por toda a gente…e por todos os partidos…
Mas a motivação primeira desta nota era acentuar por que razão em Portugal nunca se fez o casamento da arqueologia pré-histórica com a antropologia das chamadas antigamente "sociedades primitivas", terminologia que evidentemente entrou em desuso.
Esse casamento não se deu nem ao nível da investigação, nem do ensino, e cada vez se torna mais difícil de realizar em Portugal.
Falemos então, daquelas “sociedades primitivas”, como sociedade desprovidas de Estado, as quais, embora hoje decerto em estado de rápida transformação devido à globalização, seriam um elemento crucial de comparação para a interpretação das comunidades pré-históricas.
Essa não colaboração, esse não desenvolvimento mútuo, dificultou até hoje muito, entre outros factores, o desenvolvimento da chamada investigação pré-histórica em Portugal.
É certo que hoje em dia há muito trabalho publicado em muitas partes do mundo que se pode facilmente utilizar.
Mas aquilo a que eu aqui me refiro é a uma ciência feita por iniciativa de portugueses ou a partir de Portugal, projectos nacionais ou internacionais com a participação ativa de investigadores portugueses, dirigidos a comunidades sem Estado e simultaneamente à problemática da chamada Pré-história. Esse seria o objecto de um centro de investigação, para não dizer de um departamento universitário ou mesmo de um curso, se os tempos fossem outros. Hoje, com esta funcionalização do ensino rápido, é uma utopia. Uma utopia total.
Claro que agora, no mundo globalizado, os investigadores estão em relação com os seus pares de toda a parte, pelo menos potencialmente.
Mas eu estou a querer focar o caso da ciência portuguesa, da sua iniciativa, da sua interdisciplinaridade, da sua visibilidade nacional e internacional ! Foi com isso, julgo que legitimamente, que sonhei. Como certamente outros colegas meus, eventualmente já desiludidos.
O pano de fundo de tudo é que a escolaridade aumentou enormemente em Portugal desde 1974, mas as condições económicas não facilitam nem a pesquisa, nem o interesse das pessoas, canalizado para coisas mais visíveis do que os sítios pré-históricos, mesmo quando restaurados e quando se tenta inscrevê-los em “rotas”.
E depois do 25 de abril, que ocorreu já em plena fase de início de crise do sistema capitalista mundial, e ao contrário do que muitos esperariam da “democracia”, com a transformação dos valores e do modelo da sociedade, cada vez mais integrada nesse mundo capitalista, com a reversão de certas realidades obtidas pela revolução, desenvolveu-se uma "cultura mediana" (inflação de diplomas, cursos curtos, estudos superficiais e rápidos, ambiente geral hedonista ligado ao consumo, etc., enfim, degradação da qualidade em proveito da quantidade e da banalidade... e de uma minoria...), abarcando uma população facilmente colonizada pelos media e por entretenimentos de toda a espécie, que não quer saber, em geral, da Pré-história, sendo atraída apenas pelo pitoresco (tipo “passe um dia na pré-história” em tal sítio, “venha ver como eles talhavam a pedra no Paleolítico”, etc.), e pronto.
Como pode desenvolver-se um trabalho sustentado na área que inicialmente eu tinha escolhido como “minha” opção, ou seja, a da emergência do homem estudada através simultaneamente da arqueologia e da antropologia, unidas?... é difícil, mesmo muito difícil.
Desenvolverei este tema em textos mais amplos e explícitos.

Vítor Oliveira Jorge, abril de 2017, Loures.