terça-feira, 30 de outubro de 2007

Do Expresso de sábado passado (suplemento "Actual")


A lição de Fernando Gil

Lisboa e Porto evocaram, em conferências distintas, a obra e o pensamento do filósofo

Dos benefícios da controvérsia ao sentido do belo, da morte como opção à dúvida sobre a necessidade de filosofia por parte dos cientistas, do que nos ensina a filosofia ao modo como se relacionam políticos e filósofos, há todo um mar de hipóteses e uma infinidade de questões passíveis de serem suscitadas pelo pensamento filosófico de Fernando Gil. Esse foi o desafio lançado pelo Ipatimup, Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, a um conjunto de cientistas, médicos e filósofos, reunidos no Porto, à volta de uma mesa, todo o dia da passada segunda-feira durante a XI Conferência do Equinócio.
A partir de um tema geral, «A Lição de Fernando Gil», a iniciativa anual do Ipatimup, desta vez coordenada pelo neurologista João Lobo Antunes, quis prolongar as relações de alguma proximidade que existiam entre o instituto e o filósofo para de novo provocar um debate muito caro à instituição e que todos os anos tenta estabelecer a ponte entre os conceitos de investigação, de medicina e de cidadania.
Se algo define as conferências que ao longo dos anos têm levado ao Ipatimup os mais diversos especialistas de múltiplas áreas do saber para se dedicarem ao debate, é a vontade de a partir de um espaço de investigação científica por excelência, «pensar o local da ciência dentro de uma cultura de cidadania», como refere Rui Mota Cardoso, responsável pela conferência no âmbito do instituto.
Todos os oradores convidados - os filósofos Maria Filomena Molder, Paulo Tunhas e Danièle Cohn, o sociólogo Manuel Villaverde Cabral e João Lobo Antunes - tinham diferentes experiências pessoais de relacionamento com Fernando Gil, e de alguma forma as suas intervenções tornaram-se reflexo dessa vivência com um homem invulgar e um dos nomes maiores do pensamento filosófico português do século XX.
A partir do ensaio de Fernando Gil Mors Certa, Hora Incerta, Lobo Antunes, para quem a história da ética é fundamentalmente a história da sua inquietação, optou por falar das opções da morte e das opções na morte, que são de vária natureza: «A escolha do local da morte, a escolha do tempo de morrer (a «hora certa»), a escolha do modo de morrer, ou até, levar ao limite a pretensão insustentável de não morrer, ou seja o prolongar a vida até ao derradeiro fio biológico, que tem como interessante contraponto o dever de morrer no tempo próprio». Se a morte em tempos recuados era breve, mas muitas vezes envolta num sofrimento atroz, hoje, diz o neurocirurgião, «ninguém aceita que não se procure socorro e alívio em fármacos e tecnologias».
Fernando Gil, disse Lobo Antunes, «chama a atenção para os dois pólos de uma quase antinomia: o contraste entre a morte que não é um facto contingente mas necessário, e a nossa incapacidade de nos imaginarmos sem um futuro indefinidamente aberto e de quase infinitas possibilidades. Ou seja, o tempo de viver é sempre considerado em função da esperança, e é precisamente no lidar da esperança que mais ofensas morais se cometem na minha profissão».
Por exemplo, quando se abordam temas como a eutanásia ou o suicídio. O debate é quase sempre caracterizado «por uma violenta paixão moral que leva a posições de uma irredutível intolerância». A posição de Lobo Antunes sobre estas questões tem amadurecido, ao ponto de o neurologista não defender mais «a proibição absoluta da escolha, mesmo que isso implique denegar um dos princípios do juramento hipocrático, aliás hoje de tal forma desconstruído que, de certo modo, não é mais que a afirmação inofensiva de boas intenções, e de lá se têm expurgado a eutanásia e o aborto».
Há um sentido de controvérsia implícito nas afirmações de Lobo Antunes e esse foi o tema mais tarde explorado por Paulo Tunas quando, depois de deixar claro que os cientistas, «não mais nem menos do que toda a gente, precisam de filosofia», abordou longamente o tema da controvérsia que, nos seus aspectos científicos e filosóficos, entre outros, ocupou persistentemente Fernando Gil. De uma certa maneira, disse Tunas, «a tematização da controvérsia representou a outra face, simétrica e complementar, de um trabalho dirigido para as noções de prova, evidência e convicção».
Filomena Molder preferiu falar dessa «estranha ficção que é a filosofia, que exige que pensemos por nós próprios». E quando isso acontece, perdemos o pé e pode até gerar-se um certo mal-estar. Porém, como disse Molder, «a boa filosofia nunca perde esse estar em risco de perder o pé. A de Fernando Gil mostra que é uma boa filosofia, porque nunca tendo reduzido a zero a experiência de perder o pé, mantém a noção de antecipação e de expectativa».
Na parte final da conferência, Manuel Villaverde Cabral evidenciou as três dimensões em que Fernando Gil se cruzou com o espaço público: o político, a política e as políticas, enquanto Danièle Cohn optou por um longo ensaio sobre o sentido do belo.

Autor: Valdemar Cruz
vcruz@expresso.pt


Publicação em:

A lição de Fernando Gil

Publicação: EXPRESSO , Edição: 1826 , Caderno: ACTUAL , Rubrica: ACTUAL Sabado, 27 de Outubro de 2007 Pág.32

(Agradeço a autorização de reprodução)

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