segunda-feira, 27 de outubro de 2014

ZIZEK NO PORTO EM BREVE



ZIZEK NO PORTO EM BREVE !!!!!!!!!!!!!!!!!!


SEGUNDO GONÇALO LEITE VELHO, NO ÍPSILON 
(PÚBLICO) DE 24.10.2014:


"Claro que a apoteose do nosso programa será a vinda, em
 Novembro, do [filósofo] Slavoj Zizek, mas o projecto só fica 
concluído se deixar um rasto mais imanente.”

http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-futuro-vese-da-cooperativa-dos-pedreiros-1673589http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-futuro-vese-da-cooperativa-dos-pedreiros-1673589

domingo, 26 de outubro de 2014

já muitas vezes











Já muitas vezes me quiseram matar, e esse jogo insensato continua. Percebe-se que desconhecem a fogueira que arde dentro de mim, vem desde as raízes da terra e se ergue com orgulho desmedido, depois de me queimar todos os órgãos, até às nuvens que se suspendem, brancas e altas: pombas enormes e serenas, que nunca se movem nem se contaminam de fumo negro; são de uma serenidade que insulta os deuses. Os que me quiseram e querem matar, eles e elas, têm uma face visível e outra escondida. E esta última saiu diretamente de um quadro de Bosch: são imagens à beira das quais as palavras mais temíveis se paralisam, impotentes. 
Os que quiseram e querem matar-me usam com frequência o jogo do mais hipócrita silêncio: querem asfixiar-me pela indiferença. Conheço muito bem esses procedimentos, tenho uma parede da minha casa com o seu arquivo: qual naturalista do século dezoito, identifiquei-lhes os géneros e as espécies, as variantes, desenhei-os de frente, de trás, em perfil  e em secção: trato-os como um dedicado entomologista. Estão arquivados para o que der e vier.
Às vezes, pelas tardes, ponho as minhas coisas na pasta e vou encontrar-me com um desses inimigos: têm o aspecto mais variado. Começo por os imobilizar pelo olhar, pelas palavras; e depois disseco-lhes pouco a pouco o discurso, observando a sua estratégia, tentando delimitar a sua face horrível por detrás da atitude amável e benfazeja. Desejariam que morresse, claro, mas muitos não o sabem, e até me tratam como amigo, pelo menos enquanto isso lhes convém. Nunca lhes faço mal, não tenho vocação: apenas, sem o saberem, trago o lado da sua cabeça escondida, guardado em líquido incorrupto, dentro da mala, para ser arquivado em casa.
Ah se tantos deles soubessem como a sua maldade e hipocrisia, mais ou menos consciente, não perturba a pomba branca que pôs o grande ovo dentro do qual vivo, sobre as nuvens suaves. Aqueles e aquelas que me quiseram e me querem matar, silenciar, esquecer, apagar, jazem nas gavetas de vidro para onde posso todos os dias, quando me apetece, dirigir o olhar, vendo as suas línguas esticadas, de fora da boca, espumando do formol que exalam.

Mas, para ser totalmente franco, raramente me lembro desse arquivo, dessa biblioteca, desse museu da maldade. O ódio contamina-se, é doentio. Do que gosto verdadeiramente é de sair para o verde dos campos, saltando, e de encher o peito com a vida que pulula na atmosfera, entre as folhas, os insectos, e os seios túrgidos do meu amor.  E, às vezes, encontro alguns verdadeiros amigos ao rés da relva.


voj outubro 2014
imagem: hieronymus bosch


agitações










Lembras-te das ervas verdes, revoltas, se alçarem do chão como cabeleiras intermináveis, em agitação alta? O seu fervor vinha-lhes certamente das raízes, do interior vermelho da terra, do seu húmus, do seu suco de vida e morte. Era assim o nosso corpo unido: um mar, ou pelo menos uma onda ansiosa, que estendia os seus inúmeros braços pela platitude do momento, querendo alcançar algo mais além. Mas até as mais altas vagas acabam um dia por repousar, numa fotografia, numa pintura, num fim de dia: e as ervas aquietam-se, como os corpos param para que as gotas possam escorrer deles, reconfortadas. Sabemos que o ciclo recomeçará, não se sabe quando nem como, é esta força das cores contrastantes, esta vontade dos pés baterem no chão levantando pó, esta ansiedade que as línguas sentem pelo sumo do instante seguinte. Há momentos em que os ouros fulgem; em que as geometrias se cruzam para formarem jogos infinitos; em que as matemáticas ditam o jogo harmónico e desarmónico dos gestos, dos bailados, das vozes, dos corpos, dos sexos. Em que o centro vibra louco, em que a periferia desenha círculos de pedra, em que os vasos incham como ventres, uma imagem tremenda de excesso. E outros em que os próprios deuses pedem aos homens um pouco de paz; e tremem de frio e medo ante os campos de inverno para que os tempos os conduzem. Já tanta coisa ocorreu; é ainda possível um mar de ervas intermináveis, incrivelmente altas, se alçar de modo a tapar o céu, a satisfazer-nos apenas com a sua seiva, a sua cor nitidamente verde? Cobre o meu sexo com a tua mão, que eu assim farei com a minha no teu; acariciemo-nos sem pressa. E talvez algo aconteça de novo, a inverosimilhança deste alvoroço sem sentido, tão bom. A entrada ficará sempre entreaberta para que a Felicidade, cheia de plumas, e com o seu bico vermelho, venha pavonear-se na atmosfera sobre nós, e os anões músicos possam tocar os seus instrumentos italianos com a fúria que se lhes pede.


vou outubro 2014
para a Flor

acima: pintura de marx ernst