domingo, 7 de dezembro de 2008

função - umas notas para os meus alunos



No nosso país, felizmente, a arqueologia deixou há muito de ser apenas uma prática de amadores e de entretenimento.
Há duas gerações, pelo menos, que ultrapassaram isso: uma que é aquela a que pertenço, e que trouxe para as universidades (sobretudo após o 25 de Abril) uma nova maneira de ver as coisas, propriamente científica, o que quer dizer problematizante dos métodos, dos objectivos, e das interpretações.

A outra, a seguinte, e que esquematicamente poderia ser a de um filho meu (agora por exemplo teoricamente na idade entre os 30 e os 40) que tornou a arqueologia progressivamente uma prática profissional implantada no terreno.

Sobre essas modificações, e suas implicações sociais e teóricas, tenho-me debruçado em muitos textos, nos livros publicados, etc, e não vou repetir-me constantemente. Reporto para eles.
Queria apenas focar uma noção de senso comum que percorre muitas das preocupações/interpretações de arqueólogos, incluindo os mais jovens, e que tem a ver com a determinação das supostas funções dos vestígios arqueológicos.
Já Gordon Childe, na primeira metade do séc. XX, falava do tríplice aspecto da classificação arqueológica, que corresponderia a dar satisfação a três perguntas sobre um artefacto: para que servia? (função) quando foi feito? (cronologia) quem o fez? (autoria).
Podíamos dizer que a arqueologia experimental e a comparação etnográfica nos ajudaram muito no primeiro aspecto, a datação pelo radiocarbono no segundo e... o terceiro foi sempre um grande problema.
De facto, quem é esse "quem?" Uma cultura? Um sistema social?... a arqueologia processual dizia que o que o arqueólogo procura, por detrás do artefacto, é o homem (ou mulher) que o fez, e por detrás deste(s), o sistema em que estava(m) incluido(s)
.
Como se deve observar uma realidade arqueológica, seja ela muito remota, ou muito recente? Obviamente que a nossa tendência espontânea é de logo responder às três perguntas.
Mas, que é a função de um objecto?... não há palavra mais ambígua.
E porquê? Porque o ser humano não vive apenas num mundo denotativo, isto é, claro e simples, mas num mundo conotativo, metafórico, se quisermos, onde tudo aponta para outra coisa. Se isso é assim agora, em que eu posso interrogar uma pessoa para que serve uma coisa, e outra que está ao lado pode divergir, acrescentar outras informações, ou até discordar, o que não será relativamente a um artefacto arqueológico, cuja história completa eu não sei, e sobre o qual não tenho possiblidade de cotejar interpretações, ou conotações, daqueles que foram seus contemporâneos...
Tenho então de ter muito cuidado, para não me deixar levar por lugares-comuns, preconceitos, projecções do que para mim é evidente (mas para outros não), ideias retiradas de uma sociedade de consumo, onde tudo me aparece codificado como um conjunto de mercadorias prontas para uso, e cada qual classificada segundo a sua função ou multifunções. Numa sociedade destas, é fácil a tendência de julgar que há uma espécie de necessidades universais, a-históricas, básicas ou menos básicas, do ser humano, às quais cada objecto corresponde, para ajudar a satisfazê-las. Ora, como qualquer um sabe, não é nada assim. De modo que a palavra função tem logo à partida um lastro redutor, justamente dito funcionalista, num sentido pejorativo.
Uma função ou uso pode ser realizada/conseguido com recurso a objectos muito diferentes, e objectos iguais podem corresponder a funções ou usos muito diversificados.
Quando, para caracterizar genericamente certas formas, e as integrarmos numa tipologia, numa nomenclatura, lhes damos um nome tradicional, consagrado pelo hábito, pela tradição da disciplina, como "raspador", "lareira", "fossa" ou outro qualquer, sabemos que estamos a usar apenas uma convenção terminológica, que pouco ou nada diz sobre a ideia ou ideias que poderão ter estado presentes nas distintas etapas de vida que o objecto teve, até hoje. Porque os objectos tiveram a sua biografia, e por assim dizer, a sua sociologia.
Não nos podemos deixar levar por classificações a priori, sejam elas derivadas de um contexto local (se é algo revolvido, pode ter sido uma lixeira, por exemplo) ou mais geral (se uma construção com muros está no topo de um monte, é defensiva) ou da observação directa de um artefacto, a uma pequena escala: se um vaso tem restos de comida carbonizada, é porque foi usado para a fabricação de alimentos, ou então foi produto de um ritual que envolvia o consumo (festivo ou não, colectivo ou não) de determinadas substâncias.
Um objecto teve a sua vida. Nada nos garante quais as suas etapas, quais as conotações e os contextos em que foi transcorrendo, até ir parar à posição em que o encontramos, posição essa quase sempre produto de acções naturais e humanas imbricadas.
Um objecto não é em regra um elemento passivo, espelho de uma ideia, materialização de um design mental apriorístico. É um elemento activo, é parte de um sistema simbólico (não confundir toscamente com ritual), e normalmente está conotado com crenças, com conotações, que vão muito para além de uma atribuição funcional simples. Uma seta, por exemplo, poderia ser considerada inoperante se não fosse pintada com determinada tinta, ou ornada com as penas de determinado pássaro. A sua funcionalidade "dependia" dessas conotações, ligadas a toda uma formação discursiva, a toda uma disposição da consciência, a todo um dispositivo, que ia muito para além até do verbalizado, ou expresso, ou eventualmente escrito. O que há de mais importante no funcionamento de uma sociedade é pressuposto.
Simetricamente, temos também de ter cuidado na pretensa caracterização de objectos ditos de culto ou de ritual, porque em muitas sociedades, incluindo a nossa, há conotações simbólicas para tudo (não deixo a minha escova de dentes em geral à vista num hotel, sobretudo barato, porque temo infectar-me através da pouca higiene de quem limpa os quartos, por exemplo - o que se relaciona com toda uma subjectividade "minha" que eu próprio não controlo) e isso às vezes é difícil de distinguir de rituais ou de outras intencionalidades.
Quer dizer, e em suma: temos de utilizar nomenclaturas para caracterizar a realidade arqueológica (lamentavelmente designada como "registo arquelógico", numa infeliz tradução da não feliz expressão inglesa "archaeological record"), a diferentes escalas, desde a mas micro à mais macro. Mas não devemos confundir os planos da análise, uma taxonomia com uma interpretação, embora as duas estejam relacionadas, como é óbvio. Certas normas disciplinares têm de ser partilhadas, como num hospital, por exemplo; mas quando se trata de pesquisa médica, o paper interessante é aquele que aporta novas maneiras de fazer e, sobretudo, novas maneiras de pensar esse fazer, obrigando-o a mudar. A rotina é a morte da imaginação, a redução do profissional a um tecnocrata, a um executor. A investigação é o contrário disso, é a anti-rotina, é a ousadia!
Criar, investigar, é estar atento à complexidade do real, e isso implica cultura geral, cultura geral essa para a qual não basta nem um curso universitário (sobretudo agora na sua versão reduzida de Bolonha), nem uma série de técnicas aprendidas, nem a intuição do senso-comum.
É preciso a instisfação intelectual que resulta de um meio-ambiente "enervado" (no bom sentido), energético, que problematize e desconforte os assentos fofos da vida pequeno-burguesa.
Em suma, é preciso lutar constantemente contra a tendência para o óbvio, e isso só se consegue estudando, lendo, olhando transversalmente, procurando outras visões, inter e transdisciplinarmente, para esclarecer melhor a realidade que nos cerca. Esclarecer melhor é um brilho, é um algo-mais... é o fulgor da inspiração, que vem depois de muito trabalho e de muito treino.
Quando o conseguirmos, seremos os primeiros a atrair a atenção de imensa gente interessante e inteligente, e a conseguir um estatuto para a arqueologia que ela, hoje, confundida pelos ignorantes como uma mera técnica, ainda não tem.
Não se trata de "fazer filosofia" - trata-se simplesmemte de nos inspirarmos, sem restrições, em tudo quanto possa inspirar-nos para a descentração, o recuo, o olhar distanciado.
Foi isso o que disse - ou pretendi dizer - no final,ontem, do debate no Centro Unesco, debate esse aliás amplamente divulgado e aberto a quantos nele quisessem participar, nomeadamente os meus alunos, após a bela conferência que ouvimos.



8 comentários:

Anónimo disse...

Estou praticamente de acordo com tudo o que está escrito. Excelentemente escrito.

Mas levar as pessoas a compreender todas as implicações duma outra forma de fazer arqueologia é trabalho que não se confina apenas ao artigo publicado, à postagem num blogue, a uma eventual conferência, ou até a uma aula..embora aqui já haja muito espaço para o essencial, que é, do meu ponto de vista,a relação, face a face, com o outro. Desconstruir lugares comuns implica, para além de conhecimento, uma verdadeira vocação pedagógica. Coisa que não falta ao dono deste blogue. Vocação pedagógica quer dizer tempo para ouvir,para argumentar, para seduzir, tempo para voltar atrás...e parar. Tempo para deixar que o outro "respire" e sedimente o que para nós, por vezes, já está tão incorporado que nos parece irrelevante voltar a insistir na sua pertinência.. Este trabalho é uma tecelagem. Não tem fim. O trabalho de aprender com o ensinar não tem realmente fim.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Há 40 anos que teço...e me procuro tecendo, e partilhando com entusiasmo.
Que hei-de ainda fazer mais? Eu acho que sei.

Gianna disse...

Mi spiace non comprendere.

Ciao

➔ Sill Scaroni disse...

Olá Vitor !

Que arte maravilhosa é esta de deconstruir lugares comuns ...
Estou fascinada com o teu blog aonde encontro a analogia entre a Arqueologia e a Psicanálise que Freud chamou de Metáfora Poderosa que anunciava o mesmo paradoxo fundamental porque as duas ciências buscam ir além do resgate da Memória em uma profunda investigação que quase sempre dilacera todos os pré-conceitos já estabelecidos.

Saudações.
Sill

Vitor Oliveira Jorge disse...

stella: do you understand English? From time to time I take the risk to write in English...
Best
Vitor

Vitor Oliveira Jorge disse...

Sill: sim, ambas têm muitas afinidades.
Nasceram praticamente ao mesmo tempo!
O meu gosto é fazer links entre coisas que a convenção separou, e que, se juntas, servem para perceber, para cruzar écrãs... mesmo as pessoas mais notáveis, na sua maioria, espartilham tudo em disciplinas e tornam o mundo uma repartição cinzenta. A própria palavra diz tudo: repartição. Por mim não gosto da burocracia e dos burocratas... que infelizmnente temnos de suportar do nascer ao morrer. Mas os piores são aqueles que não sabem que o são e continuam uma actividade totineira com o ar (aparente) de estarem muito distraídos e de se sentirem muito importantes.
Saudações do
Vítor

Vitor Oliveira Jorge disse...

No meu comentário anterior sairam algumas gralhas: queria dizer rotineira, claro.

Vitor Oliveira Jorge disse...

Cara Eliana: você, quanto a mim, diz uma série de coisas ajuizadas.
Mas quando chega a esta frase, escorrega; transcrevo:
"Não podemos querer "ouvir" mais do que aquilo nos dizem os factos, as evidências. "
Os factos, as evidências, de Flinders Petrie não eram os mesmos de Gordon Childe, estes não eram os mesmos de Lewis Binford, estes por sua vez são diferentes dos que estão a ser criados por Ian Hodder em Çatal Hoyuk... etc! Ou seja, um regime de objectividade e um regime de subjectividade são correlativos e são produtos históricos, e ainda bem. Mudam. Mas não se volta jamais ao ponto de partida de igual modo. Volta-se para o reler com novas lentes, como se volta sempre a Platão e Aristótiles, etc. Por isso os dados, os factos, vivem e morrem como tudo na vida. Só Deus sobrevive, coitado, e ou está muito aborrecido na eternidade, bocejando desde o início do tempo (já conhece de antemão todos os factos)ou então já se deve ter arrependido infindas vezes de ter criado o ALGO a partir do NADA.Para que havia eu de me maçar? Dirá para os seus botões. E ainda por cima de ter criado o ser humano, esse chato que está sempre a querer ir mais além, tem o diabo no corpo (e na mente) que é o desejo de nunca ficar satisfeito com o que já sabe, com os factos patentes. Há quem diga que Deus (o cristão) resolveu o problema, mandando à terra o Flho e morrendo com ele. Mas não estamos certos.Nem da nossa suprema invenção estamos certos, e no entanto para muitos Deus é um facto, indesmentível, e uma blasfémia falar assim dele. Bem hajam com a sua ingenuidade, assim sao abençoados. E os tolerantes relativistas dirão: deixem esbracejar os blasfemos, Deus está bem acima disso tudo.
Em suma, e para variar de registo: em arqueologia temos de olhar bem para a fossa, com detalhe, e registá-la. Mas se não nos afastamos um pouco caímos na dita fossa.Com dizia uma professora minha do liceu (muito chata): "eu só falo por parábolas. Quem quiser que me entenda." Julgava talvez que era uma espécie de Cristo, mas tinha o ar de estar a ser crucificada. Era o Cristo sofredor, não o Cristo em glória ressuscitado.Enfim, feitios.
Como dizia o Carlos Alberto a todos nós (e eu nunca fui aluno dele): " Ó menino (a), eleva-te!"